Rio Grande do Sul

Coluna

Quando o pessoal é político e nós representamos o horror. Podem as palavras de um médico intoxicar?

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"Ainda estamos com as comemorações do 28 de junho, dia do orgulho na pele e nas agendas, mas se a gente tem que sair, falar, gritar, fazer Saraus, shows, filmes, peças de teatro é para mostrar que é muito mais do que amor, somos existências" - Reprodução/ EternamenteSOU
Viver desacomodando é uma forma de luta, de existência, de ser e de estar no mundo. E liberta

Que difícil é ser uma pessoa LGBT e ir ao médico. Ser uma/ume sapatão não binárie e ter que se expor num consultório méRdico na hora que você vai pedir ajuda porque não está se sentindo bem.

Ainda estamos com as comemorações do 28 de junho, dia do orgulho na pele e nas agendas, mas se a gente tem que sair, falar, gritar, fazer Saraus, shows, filmes, peças de teatro é para mostrar que é muito mais do que amor, somos existências.

Para essas outras pessoas somos o horror, porque temos autonomia, porque somos a dissidência, porque somos o próprio grito e porque já ninguém nos cala. Mas ainda temos que enfrentar deboches e violências.

Faz anos, não lembro quantos, perto de 15, me atendo com um cara que é um bom médico e uma péssima pessoa. Cansei de ouvir piadas sobre meu sotaque, que diga que eu não sei falar português (nisso ele tem razão, pois eu falo em brasilerês) e pretenda começar a consulta, sempre, tentando me explicar alguma coisa. Ele saberá de medicina, mas é um cara cortado literalmente com a tesoura do cis-hétero-patriarcado.

Eu não ia ir mais, mas a dor de ouvidos que venho sentindo e o cansaço me fizeram relativizar.

Quando cheguei, ele me chamou pelo meu nome de documento. Até aí normal, faz anos que não apareço por lá e ele não sabia que eu tinha trocado meu substantivo. Acho que a última vez que fui, nem quis falar disso, sabia das piadas que se seguiriam. Contudo, ontem me fez tão mal ser chamada por esse nome que já nada tem a ver comigo que decidi contar. (Não vou me alongar com suas insistências e burlas sobre Milei que é “meu presidente”. Moro por eleição há 23 anos no Brasil, mas aquele escroto é meu presidente porque eu nasci lá? Nem respondi.)

Isso foi no corredor, passei sozinha ao seu consultório. E sentei. Antes que ele continuasse com suas piadas sem graça contei que tinha trocado meu nome e comecei a explicar, ele me interrompeu dando risada e perguntou se também usava a letra E. Às vezes sim, respondi. Ai, doutorzinho começou a palestrar que não era por aí, que isso não muda nada. Também eu o interrompi perguntando o que ele sabia, sendo que ele gozava de todos os privilégios de ser um homem, branco, hétero, CIS. Será que ele sabe o que é ser CIS na vida, e por isso voltou a interromper e continuou explicando que isso não é assim. Tentei eu também explicar, mas ele não queria ouvir. Eu lhe disse que mais do que questionar, antes, deveria escutar. Hahahaha. Escutar! Na terceira tentativa de fala, e de não ser ouvida, aumentei o tom e disse que não estava aí para falar sobre isso, que se ele quisesse, na quarta-feira haveria um Sarau LGBT e lá seria o lugar perfeito, mas que eu tinha marcado uma consulta para falar da minha saúde.

Climão total. Ninguém fala assim com doutorzinho.

Se estou aqui escrevendo, gritando e desabafando é porque fiquei muito chateada. Eu falei tudo que era para ser falado, mas fiquei mal. Lembro de jovem, no primeiro grande encontro feminista que participei, havia uma palestra sobre iatrogenia. Eu nem conhecia a palavra. É quando algo, alguém, que deve te curar, fazer o bem, faz o mal, te adoece. Isso foi exatamente o que senti ontem e outras vezes, por isso não voltava. Suas palavras me deixam com sensação de intoxicação.

Também pensei em seguida nas pessoas trans, nas pessoas negras, especialmente nas mulheridades. O difícil que é ir, se despir, se expor a esse macharedo branco, hétero, CIS que se acha o máximo do modelo social e nós, o estrago, o resto, o outro. O lodo. A lama. Mas entre o lodo e a lama tem muita água que clama por desacomodar essa única realidade que eles receitam para nós.

Escrevo sobre tudo isto porque entendo que é um fato político, que à violência a gente a combate assim, com palavras, tentando entender. Tenho certeza que muitas pessoas que estejam lendo vão ter passado por situações similares e sei bem o conforto, o bem que faz ao coraçãozinho quando a gente se identifica e diz, sim, a mim também me aconteceu.

Minha escrita é polítika. Sou anarkista, nasci na Argentina, mas não são as bandeiras, nem as nações que marcam fronteiras as que me representam, sim os símbolos de luta, que libertam.

Muitas vezes eu falei que a arte salva. Parar, pensar, refletir sobre as linhas e as entrelinhas, sobre o tecido social e o nosso lugar nele, com certeza ajuda a entender. Viver desacomodando é uma forma de luta, de existência, de ser e de estar no mundo. E liberta.

* mariam pessah : ARTivista feminiSta, escritora, poeta e tradutora. Autora de Meu último poema, 2023; Em breve tudo se desacomodará, 2022; entre outros. Organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre, desde 2017, e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta.  Atualmente também tem uma coluna Conversa in vers(A) no Youtube do Jornal Poesi(A).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko