O nome dele pode ser Pablo, Pablito ou Horácio. Ninguém viu a carteira de identidade dele nos últimos 21 anos, tempo que o conheço e que o vejo na quadra entre 24 de outubro e Mata Bacelar, no Bairro Auxiliadora. Primeiramente, ele cuidava de carros à noite no “point” da Avenida Nova York, cheia de bares e frequentadores.
Passava frio, levava chuva no lombo, andava molhado. Fumava um monte, bebia “toneladas”, o que aparecesse. Não tinha cuidados com si próprio. Morava numa pensão ou em um destes hoteizinhos baratos que cobram meia dúzia de reais da zona Norte, mais para perto das ruas que ficaram alagadas há pouco tempo do que nas ruas secas. Dizem que gostava de jogar nestas casas clandestinas de apostas de azar. Mas nunca ninguém confirmou.
Pablo mudou a sua rotina há uns dez anos. Passou a fazer ponto durante o dia. Trocou de turno. As noites o castigavam demais. Fica no mesmo espaço entre 9h e 15h. Ganha algumas moedas, uns trocos e até comida recebe do pessoal que circula por ali e de alguns restaurantes self-service que foram se instalando na área. Continuava fumando e bebendo. Toda vez que algum conhecido passava, repetia o refrão “hoje está bom para uma gelada”, ou “paga um vício aí”.
Em tempos de eleições era Lula e o inelegível ao mesmo tempo. Gritava “Lula lá” ou “fora Bolsonaro”, dependendo da cara de quem passava e de qual ideologia imaginava que a futura vítima do seu “ataque” seguia.
Muitas pessoas na rua – seja lá quem for – já ouviram suas histórias. Conta que tem um filho que mora em Pelotas. “Uma hora dessas vou para lá”, mas já se passou tanto tempo e ele não foi. Ninguém sabe se é verdade. “Sou aposentado”, mas parece que ele não vislumbrou esta hipótese para melhorar a sua vida. “Ganho bolsa família” também parece não ser verdade. Aposentado ganha uma coisa ou outra, nunca as duas. Ainda não ouviu falar de auxílio reconstrução já que não tinha casa, era morador ambulante, de pensão em pensão, de hotelzinho em hotelzinho.
Há uns cinco anos, passou a contar uma história otimista sobre a sua vida. Tinha uns R$ 100 mil para receber do governo, não se sabe a origem da dívida, nem ele consegue explicar direito. Disse que tinha um advogado que cuidava do caso. Até hoje, nada. Verdades, delírios, ilusões ou confusão mental? Tudo parece divagação na vida de Pablo. Não há nada convergente ou um mais um, igual a dois. As histórias se repetem, parecem ter sido gravadas na sua memória, sem uma organização clara.
Ele está com 71 anos, vai fazer 72 anos no dia 5 de dezembro. É de 1952. Nas últimas semanas, ele não deixou de frequentar o seu emprego na quadra dos bares e restaurantes. Não cobra mais “pedágio” dos passantes ou de donos de carros, como diz um uruguaio, dono de uma banca de revistas, jornais, doces, cigarros e outros quebra-galhos que as pessoas volta e meia precisam. Está abatido. Emagreceu. Não tem vitalidade, energia, rapidez, não repete seus bordões. Está consumido, doente, perdeu a vontade de falar. Hoje, me disse que está com uma forte gripe.
Não sou médico, nem especialista em qualquer coisa desta área. Mas basta olhá-lo para ver que está cheio de doenças ou de complicações ou, como dizem, enfrenta múltiplas enfermidades. Precisava de um check up para ontem. Ultimamente, anda deitado na rua, em cima de uns papelões, sem cobertas, apesar do frio. Mas parece que ninguém se interessa por esta situação, nem ele próprio.
A vontade de viver está se esvaindo lentamente. Muitas ligações já foram feitas para órgãos municipais, responsáveis pela área social e de saúde, para o SUS e outras. Mas ninguém respondeu positivamente. Ninguém apareceu para socorrê-lo. A sua fragilidade é espantosa. Todo este desleixo com um ser humano talvez seja culpa das enchentes e de outros milhares de problemas que afetam ainda Porto Alegre e parte do Rio Grande do Sul.
O dono de um restaurante self service, olhando-o depois de lhe servir um cafezinho, disse: “Parece a crônica de uma morte anunciada”, nome de um livro do colombiano e Nobel de Literatura Gabriel Garcia Márquez. E completou: “Ele incomodava muito meus clientes, mas nunca fez mal a ninguém. Sempre na dele. Teimoso. Não aceita sugestões para se tratar, cuidar da sua saúde. Uma pena”.
Todo mundo sabe, até mesmo o próprio Pablo, que a situação não anda nada favorável. Há milhares de Pablos por aí. Porto Alegre é uma cidade pobre, por mais que possam dizer o contrário. A desigualdade é espantosa. Basta dar uma olhadinha para bairros como Sarandi, Humaitá, Lami e dezenas de vilas, favelas, becos e brejos espalhados por todos os cantos. Todos têm centenas de Pablos. Muitos morrem nas ruas todo o santo dia. Pablo é mais um caso. Um velhinho que está morrendo na rua, sem assistência, sem uma coberta quente e sem o carinho de um familiar.
* Jornalista
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko