Além de inundar o estado e trazer imensas perdas para os gaúchos, o evento climático que assolou o Rio Grande do Sul expôs o despreparo dos governos para lidar com esse tipo de situação. A falta de um Plano de Contingência para atuar em situações de riscos amplamente conhecidas, com a definição das responsabilidades de cada segmento, fez o governador e os prefeitos tomarem uma sucessão de decisões improvisadas. Evidenciou também o quanto a diminuição da capacidade operacional do estado e dos municípios impediu que ações mais rápidas e efetivas fossem realizadas, trazendo mais insegurança às pessoas e elevando exponencialmente as suas perdas.
Viver em segurança é um dos principais objetivos de todos e essa deveria ser a principal preocupação dos governantes. Uma vida segura é aquela na qual as pessoas podem ter uma alimentação saudável; moradia adequada e protegida; emprego e renda para viverem com dignidade; acesso a serviços de transporte público, limpeza e saúde. Isso seria possível, não fossem as imensas desigualdades existentes na sociedade.
Esses direitos elementares para a construção de uma sociedade justa foram colocados de lado no debate público, que insiste em esconder a dimensão social, econômica e ambiental da segurança e bem-estar das pessoas. Uma das formas mais eficazes de ocultação da amplitude da questão é reduzir esse debate ao trabalho da polícia e estimular a posse de armas. É evidente que as forças policiais são fundamentais para qualquer política nesta área e precisam estar qualificadas para cumprir suas funções, mas é evidente, também, que isso é insuficiente para garantir uma sociedade segura. Dois exemplos mostram o quanto determinadas ações são capazes de elevar exponencialmente a insegurança da sociedade: a iniciativa do governador Eduardo Leite de alterar 480 itens do Código Ambiental do Rio Grande do Sul e a decisão de não dar ouvidos aos alertas climáticos que recebeu; e a escolha do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, de não realizar a manutenção do Sistema de Proteção contra as cheias na cidade, necessidade que ele conhecia desde a sua campanha, em 2020.
O governador Eduardo Leite usou como argumento, para as mudanças no Código Ambiental, a necessidade de equalizar as leis gaúchas com a legislação nacional. Um argumento infame, pois a existência de um Código Ambiental estadual só tem sentido se for mais restritivo do que a legislação nacional e “equalizar” com leis nacionais não é mais do que um engodo. Ao ser confrontado com o fato de ter recebido com antecedência a previsão de ocorrência de um evento climático extremo, o mesmo governador respondeu: “Você tem esses estudos. Eles de alguma forma alertam, mas o governo também vive outras pautas e agendas”, confessando que, diante da posse das informações, sua escolha foi não priorizar a segurança dos gaúchos.
O prefeito Sebastião Melo seguiu esse caminho indecoroso. Quando disputava as eleições municipais (2020), fez uma dura crítica ao então prefeito Marchezan e produziu um vídeo dirigido aos moradores da cidade: “Você que sofre muito com os alagamentos em Porto Alegre. A prefeitura perdeu R$ 80 milhões para reformar as casas de bombas e colocar geradores próprios. Quando vem a chuvarada, cai a energia e não tendo gerador próprio, a água não é bombeada e o cidadão continua sofrendo com os alagamentos”. Ao finalizar sua contundente crítica, na qual demonstra estar muito bem informado sobre as consequências da falta de manutenção do Sistema de Proteção contra as cheias, Sebastião Melo faz um apelo aos cidadãos: “Se o prefeito atual não mudou a sua vida para melhor, mude de prefeito.” A cidade mudou de prefeito, mas a manutenção não foi feita. O agravante é que houve intensas chuvas em setembro e outubro de 20023 e todas as precariedades foram expostas. A própria natureza lhe deu a oportunidade de lembrar das promessas, mas ele também escolheu não fazer.
Esses dois exemplos são reveladores do quanto a eleição de governantes treinados apenas para desfazer as capacidades operacionais do Estado – em seus diferentes níveis – e desmontar qualquer tipo de regulação destinada a proteger a sociedade e o meio ambiente, traz imensos prejuízos à segurança e ao bem-estar de todos. A lição trágica das enchentes no Rio Grande do Sul é a de que a pregação diuturna de desprezo a tudo que é público e a priorização de “outras agendas”, serve para ocultar as questões econômicas, sociais e ambientais que produzem as desigualdades e podem, de uma só vez, tirar todos os bens acumulados pelas famílias ao longo de uma vida.
As mudanças climáticas são uma realidade, não podem mais continuar sendo apenas discursos feitos para angariar votos e exige compromissos com o bem-estar e a segurança, que não podem ser oferecidos por um Estado mínimo, mesmo que armado até os dentes. Precisamos de políticas e ações capazes de mitigar esses eventos extremos e proteger a sociedade, que não pode permanecer exposta a perder todo o seu patrimônio, ou a própria vida, em razão de termos governantes preocupados apenas com “outras agendas”. Lembremos o conselho do prefeito Melo.
* Gerson Almeida é mestre em Sociologia e ex-secretário do Meio Ambiente de Porto Alegre.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira