Basta bater a porta de casa e ir para a rua para encontrar a miséria em Porto Alegre. A enchente ampliou o contingente de gente que não tem mais onde morar. Os abrigos são apenas um paliativo temporário. Nada é fixo, definitivo. Oficialmente, segundo o último cadastro do Sistema Único de Saúde (SUS), de 2022, a capital gaúcha tinha 4.887 pessoas em situação de rua. É fácil constatar que o número é fictício, muito abaixo do que a realidade mostra na nossa cara. Caminhando por aí, nos bairros Auxiliadora e Floresta, nesta quinta-feira (27) de sol, mas de muito frio, vi gente dormindo e abandonada por tudo e todos. É outra catástrofe que estamos enfrentando e que tão cedo não acabará.
Falei com alguns. São pessoas sem chão, sem rumo e sem nexo do que pode acontecer no outro dia, na outra semana, ou no futuro remoto. Elas teriam direito ao Bolsa Família, aposentadoria, ajuda de R$ 5,1 mil para reconstruir seus lares, que já eram precários em bens, mas que poderiam ajudá-las a ter um conforto para lá de mínimo. A maioria está desinformada de tudo, não tem qualquer meio que as faça acessar algum tipo de orientação. Sem celular e sem qualquer esperança. Pouco sabem de qualquer coisa. Grande parte é analfabeta. Nunca teve chance de ir a uma escola.
Rogério, 65 anos, “enjambrou” uma barraca na Rua Mata Bacellar. Foi arrecadando coisas em lixeiras ou descartadas pelos moradores e diz que está bem instalado. Não tem família. Só está acompanhado por sua cadelinha Judite. “Vou ver o que consigo. Tenho direito a alguma coisa, mas não sei bem o que é e o que representa de valor”, conta. Tem uma bíblia ao seu lado. Passa o dia lendo, captando alguns ensinamentos e guardando na memória algumas frases.
Logo adiante, já na Coronel Bordini, está Luís, 66 anos, faz aniversário várias vezes por ano para ganhar alguns trocados a mais dos conhecidos da rua ou algum presente. Neste dia de sol, ganhou uns livros velhos e montou um brechó, onde pede dinheiro para sobreviver. “Preciso matar um leão por dia”, afirma. É conversador, sabe convencer as pessoas.
Conta que passou todo mês de junho no abrigo para as vítimas da enchente do Grêmio Náutico União. “Ali pude tomar banho todos os dias, um milagre. Comi três vezes por dia e até consulta médica tive depois de vários anos”. Luís enfatiza que gosta dos ensinamentos da bíblia. Não sabe ler, mas gosta de ouvir os pastores da igreja. “Confio nas palavras da bíblia que eles leem, mas não nos pastores, desde que me enxotaram da igreja num domingo desses. Estava mal vestido e sem tomar banho”.
Perto de um supermercado, está Marquinho, 44 anos. Conheço este jovem há muito tempo. Sempre por ali. Vendia pastéis, mas, com a enchente, não teve mais fornecedor. Vive de doações e de entregas de compras na casa de algumas pessoas. Quando era mais jovem, consumia drogas. Foi aconselhado a largar para não “morrer na sarjeta, chutado por todo mundo”. Se livrou “das porcarias” e hoje está de cara limpa. Diz que tentou se cadastrar no Bolsa Família e pegar o Auxílio Reconstrução. “Mas colocaram tanto problema que resolvi desistir, nem meus conhecidos da Caixa quiseram dar um empurrão e me ajudar.”
Na Cristóvão Colombo, quase esquina Benjamin Constant, há um “verdadeiro lar”, todo ajeitadinho. Tem um sofá com um quadro de Jesus, logo ao lado a bandeira do Inter, um pôster amarelado pelo sol, e tantas outras bugigangas que o “seu Artur”, 54 anos, foi arrecadando da vizinhança ou pelas ruas. Não tem qualquer benefício e me diz que não quer ir para um abrigo. “Quero ir para qualquer lugar, a hora que bem entendo, lá teria que obedecer outras pessoas”, afirma. Garante que não passa fome e que sempre aparece uma alma bondosa para lhe ajudar.
Nestas andanças, há deficientes também vivendo na rua. Josias, 47 anos, conta que, às vezes, tenta vender doces para garantir a comida do dia a dia. “Estas chuvas aí me obrigaram a largar tudo, está tudo muito difícil”, conta. Josias também não ganha benefício público, e nem tentou. Não tem documentos e nunca conheceu uma alma bondosa que o encaminhasse para algum lugar para fazer a papelada, o que certamente poderia lhe proporcionar outra situação de vida. “Estou acostumado a não ter nada e a pensar só no dia a dia. Para mim, não tem amanhã. Só espero chegar vivo até lá.”
Há outra barraca na Cristóvão Colombo, montadinha com todo cuidado, com plásticos e lonas bem espichadas, além de dezenas de outras só com colchão e cobertas, onde os moradores dormem, alguns deles com uma garrafa vazia de cachaça ao lado para enfrentar o frio.
Antônio, 67 anos, o sujeito da barraca, também não tem noção do que poderia “ganhar das autoridades” para ter uma vida mais razoável. “Não procurei e nem me disseram nada. Não acredito nestas politicagens”. Conta que está vivendo nas ruas há mais de 20 anos e que não se acostumaria a ir para “um barraco” normal. “Eles querem colocar as pessoas no fim do mundo. Aí a gente morre por lá, sem chance de sair. Agora, vou para qualquer lugar. Quando quero me mudo para outra rua”.
Miséria, pobreza infinita, higiene precária, falta de tudo, convivendo com sujeira, insetos, baratas, ratos e todas as maldades possíveis, estas pessoas formam um mundo à parte. Doentes no corpo e na mente, sem dentes, sem atendimento de saúde ou qualquer lampejo de sorte na vida, elas já são praticamente invisíveis. Que futuro esperam? Quem pode passar por ali, olhá-las e pensar em alguma solução? Dificilmente serão vistas. Dificilmente serão abençoadas com alguma palavra, consolo ou compaixão. Estão condenadas a ficarem por ali até serem esquecidas definitivamente.
* Eugênio Bortolon é jornalista.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira