Rio Grande do Sul

Coluna

Mobilidade e ciclovia em Porto Alegre: planejamento tem, e cadê a gestão eficiente?

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Implementação de plano cicloviário deveria ter sido concluída em 2021 - Gustavo Roth/EPTC/PMPA
Plano cicloviário de POA completa 15 anos, e ainda não se concluiu a primeira fase construtiva

Em 2007, o Ministério das Cidades publicou o caderno de referência para a elaboração do Plano de Mobilidade por Bicicleta nas Cidades, baseado no Programa Nacional de Mobilidade por Bicicleta – Bicicleta Brasil, que foi instituído em 2004, portanto, 20 anos atrás. Na apresentação dos princípios, é lembrado que “a cidade não pode ser pensada como, se um dia, todas as pessoas fossem ter um automóvel”.

Infelizmente, não parece que esta seja a visão predominante no planejamento municipal nos dias atuais.

O plano nacional foi construído com base em experiências e iniciativas diversas – tanto do setor público quanto de ONGs e cicloativistas – que existiam pontualmente espalhadas por diversas cidades brasileiras. 

É o caso de Porto Alegre. Já em 1981, a Secretaria do Planejamento Municipal (SPM) elaborou o Programa para Implantação de Rede Cicloviária. Depois deste primeiro passo, em 1991, foram promulgadas as leis 6.781/91 e 6.987/91, que instituíam, respectivamente, o Sistema Municipal de Bicicletas e o Programa Municipal de Ciclovias.

Ainda que estes programas e leis fossem incipientes, indicavam a preocupação em melhorar o sistema de mobilidade urbana. Isto não é de se desprezar. Ou não deveria ser de desprezar. Por que os prefeitos mais recentes ignoram este histórico?

Mas vamos continuar: a partir da instituição do plano nacional de 2004, municípios com mais de 500 mil habitantes ficaram obrigados a ter um plano cicloviário. Assim, em 2005, o município de Porto Alegre, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), contrata o consórcio Oficina - Logit - Matricial para elaborar o Plano Diretor Cicloviário Integrado (PDCI) de Porto Alegre, que entrega o relatório e um plano em 2008. No ano seguinte, como resultado desse processo, o PDCI é formalmente instituído pela Lei Complementar nº 626, de 15 de julho de 2009, entrando em vigor 90 dias depois.

Deve ser ressaltado que o plano não se limita à construção de ciclovias. Na verdade, o artigo 7 da lei afirma que: “Constituem elementos integrantes do sistema cicloviário:
I - a rede de ciclovias, ciclofaixas e faixas compartilhadas, com traçados e dimensões de
segurança adequada, bem como sua sinalização;
II - bicicletários junto aos terminais de transporte coletivo, prédios públicos e demais polos geradores de grande fluxo populacional; e
III - paraciclos e pontos de apoio instalados em via pública, praças e outros espaços públicos ou privados abertos ao acesso de ciclistas.”

Isto é importante porque normalmente só são vistos (e discutidos) os trechos construídos ou pintados nas vias públicas, mas um sistema cicloviário é muito mais do que isso.

A rede cicloviária prevista pelo PDCI, conforme o documento, foi elaborada por meio de análises de demanda, levando em consideração o perfil socioeconômico dos demandantes, destinos e rotas mais requisitadas; e o relevo da cidade, considerando elevações e declividades. Resultou em um mapeamento das vias clicáveis, isto é, aquelas em que é possível o uso da bicicleta. Considerando a escala do projeto proposto, o cronograma de execução planejava 12 anos de implementação subdivididos em três fases construtivas de quatro anos cada.

Nos primeiros quatro anos, deveria ser construída a “rede estrutural”. Como o nome já diz, é a base principal da qual a rede cicloviária seria expandida. A rede estrutural foi pensada a partir dos critérios de melhoria da segurança nos locais de maior ocorrência de acidentes envolvendo ciclistas; atendimento aos eixos com maior demanda projetada para 2022(!); atendimento aos principais deslocamentos entre origens e destinos; geração de beneficio social; integração entre os modais e, claro, formação de uma rede cicloviária mínima abrangendo as principais regiões da cidade.

O que aconteceu com o plano? O que foi implementado até os dias de hoje?

Levando em conta que a lei foi instituída em 2009, em teoria, a implementação do PDCI seria concluída em 2021. Neste ano, apenas o eixo de integração da zona leste (Avenida Ipiranga e Avenida Bento Gonçalves) foi concluído. A integração do eixo zona sul e zona norte, previstos para a primeira fase de implementação da rede, continuam apenas como promessa. A figura abaixo mapeia a proposta do plano e o que já existe concretamente realizado.
Mapa comparativo entre a rede cicloviária proposta e implementada - 2023 / Elaboração: Gustavo Leal de Lima Alves


Em 2024, completam-se 15 anos de PDCI e ainda não se concluiu a primeira fase construtiva prevista pelo cronograma, sem falar que não há integração mínima entre as diversas zonas da cidade e a região central por meio de rede cicloviária.

O abandono do cronograma não se evidencia apenas no atraso de implementação de estrutura cicloviária, mas também na ordem em que essa estrutura deveria ser construída. Trechos de ciclovia, que eram previstos para a segunda ou terceira fase de implementação, foram priorizados em relação à finalização dos trechos da primeira fase. A alteração da política pública, portanto, gera um cenário em que se questionam as motivações por trás dessas escolhas.

A rede planejada poderia ser suficiente para promover acessibilidade, visto sua distribuição mais isonômica e integrada; porém, nos deparamos com um cenário distinto. As ciclovias, em grande parte, se encontram desconexas e incapazes de proporcionar deslocamentos seguros dentro dos pequenos limites. Trechos de ciclovia que ligam o nada a lugar nenhum, como o existente em uma pequena extensão da estrada das Três Meninas em frente ao condomínio Alphaville, dificilmente conseguem servir ao propósito de estimular a bicicleta como meio de transporte, ao assegurar um espaço seguro. Ciclovias sem finalidade de constituir uma rota a um ponto de interesse, podem, no máximo, atender uma demanda de lazer e recreação de moradores que vivam às suas margens.

Impossível não conectar a situação atual à falta de interesse do Poder Público Municipal em assumir sua função de, pelo menos, promover e incentivar a correta implementação do PDCI. Vejamos: o Fundo Municipal de Apoio à Implantação do Sistema Cicloviário (FMASC) foi extinto em 2023 pela LC 985/2023, com a alegação de “ausência de movimentação financeira por três exercícios financeiros consecutivos”(!). Para suprir a falta de investimento público direto, a “solução mágica” de contrapartidas de empreendimentos imobiliários tem sido regra. Mas os trechos de ciclovias construídos em contrapartidas não precisam necessariamente seguir as prioridades que constam no PDCI.

O resultado é que, se o empreendedor constrói apenas o trecho que lhe interessa, não se respeita o trabalho técnico elaborado no PDCI, não se respeitam os princípios de acessibilidade e mobilidade urbana, previstos pelo Ministério das Cidades, assim como não é respeitado o próprio Estatuto da Cidade. Infelizmente, Porto Alegre conseguiu constituir um sistema legal que permite o cenário em que o empreendedor não precisa necessariamente arcar com todos os custos da contrapartida, a ônus da prefeitura, e ainda assim construir trechos de ciclovia sem nenhuma função fora a valorização do próprio empreendimento.
    
Em outras palavras, acreditar que medidas isoladas da iniciativa privada poderiam suprir a falta de investimento público é uma falácia, além de notoriamente ineficiente.

Portanto, 15 anos depois, o único trecho estrutural finalizado (Ipiranga - Bento Gonçalves) está interditado pela queda dos taludes do Riacho Ipiranga, temos apenas trechos desconexos construídos sem seguir planejamento eficiente, não existe programa de manutenção e monitoramento ou sequer bicicletários e outros equipamentos que permitiriam interligar o modal de bicicleta com o transporte público, por exemplo.

Assim, se o planejamento existe, mas ninguém segue, o problema é a (falta de) gestão!

* Gustavo Leal de Lima Alves é bacharel em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs)

** Mario Leal Lahorgue é professor do Departamento de Geografia da Ufrgs e pesquisador do Observatório das Metrópoles

*** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira