“Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca.” Para quem é apaixonado pela leitura, a citação do escritor argentino Jorge Luis Borges é um bálsamo. Na maior catástrofe socioambiental climática do Rio Grande do Sul, além dos impactos na cadeia do livro, há o impacto sentimental entre os atingidos pelas enchentes que perderam bibliotecas particulares.
O desastre climático que atingiu o estado, para além da perda de eletrodomésticos, móveis, de coisas tangíveis, também trouxe perdas emocionais, que são traduzidas por meio de fotos, livros, manuscritos, que, mesmo recuperáveis, deixam o sentimento de abandono pelo que foi tomado pela lama. A hecatombe ambiental produz, e seguirá produzindo, histórias, ao mesmo tempo em que levou tantas outras.
“Minha casa ficou alagada por 23 dias. Quando as águas finalmente baixaram e pude retornar, o cenário era devastador. Parecia que um tornado havia passado. Meus livros estavam cobertos por lodo, lama, água suja de esgoto. As capas duras se desfaziam quando eu tentava manuseá-las. Não consegui salvar nenhum. Perdi cerca de 300 na enchente, uma perda que me dói profundamente”, desabafa a estudante de jornalismo, Clara Aguiar.
Moradora do bairro Harmonia, em Canoas, uma das cidades mais atingidas pelas cheias de maio, Clara, que trabalha no Brasil de Fato RS, conta que alguns dos livros perdidos eram calhamaços que tinha valor sentimental, como Todos os Contos, de Caio Fernando Abreu, e Todas as Crônicas, de Clarice Lispector.
“Entre os livros que perdi estavam aqueles que eu tinha desde criança, livros que minha mãe lia para mim antes de dormir. Perdi também livros com dedicatórias de pessoas queridas, cheios de memórias afetivas”, relata.
Integrante do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental, Clara também perdeu todos os livros acadêmicos que eram referências para as pesquisas. “Ver a biografia de Chico Mendes toda enlameada, por exemplo, parecia um triste simbolismo das consequências da destruição ambiental que ele tanto nos alertava”, pontua.
Ela agora está em busca de doações para reconstruir a própria biblioteca. Já recebeu apoio das professoras da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e criou uma lista na Amazon com os livros favoritos, aqueles que mais deseja ter novamente.
“Sou do tipo de leitora que deixa anotações nos rodapés das páginas, uma forma de dialogar com os autores e com o conteúdo que leio. Todas essas marcações se perderam. Cada nota era um registro do meu pensamento, das minhas reflexões, e tudo isso foi perdido. Isso era muito importante para mim. Perder minha biblioteca pessoal foi uma perda afetiva muito grande. Cada livro carregava parte dos meus aprendizados”, finaliza.
“Era uma biblioteca grande para uma casa doméstica”
Quase um mês depois das águas baixarem, o jornalista e professor Pedro Luiz da Silveira Osório ainda não contabilizou a perda que teve na biblioteca particular que divide com a esposa Bita Sória. Ele acredita que foram, pelo menos, entre 300 e 400 livros.
As águas chegaram a casa do professor, no bairro Guarujá, no dia 3 de maio. Apesar da preparação mental para o retorno, Pedro Osório disse que o cenário foi de caos completo: móveis se desmanchando, baús virados, roupas espalhadas, objetos que migraram de aposentos. “Quando nós entramos, no fundo da casa, tinha uma garça”, conta.
Dos objetos perdidos, um fogão, um piano, assim como uma série de arquivos do tempo em que trabalhou na prefeitura, no Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e um quarto dos livros. “Era uma biblioteca muito grande para uma casa doméstica”, avalia. Sem contar os itens que têm recuperação incerta, como LPs e fotografias.
"A água, a lama, levou livros de formação, como Caio Prado Júnior, Celso Furtado, livros de Lenin e Marx, livros de comunicação, de políticas públicas. Assim como a coleção inteira de Borges, e toda a obra do escritor uruguaio Mário Benedetti. Foi triste esse desaparecimento”, lamenta o professor.
Entre os títulos perdidos, ele destaca o Dialética do Concreto, de Karel Kosik. “Foi um dos livros decisivos da minha vida. Talvez a perda dele, ver ele caído no chão e destruído, tenha sido um momento mais significativo da percepção que tive da perda que estava acontecendo. Isso é marcante porque a nossa formação está ali, tanto literária quanto teórica. Ao ver esses livros sendo descartados, ensacados, há um sentimento de um certo abandono."
Pedro Osório aponta que determinadas obras, tanto no âmbito teórico quanto no âmbito literário, "são refúgios". “Nos abrigamos neles para enfrentar e para vencer o cotidiano, que é alienante, por um lado; e por outro, pode ser massacrante diante de determinadas opções sociais e políticas, como neste cenário político e social que estamos vivendo. Como se viveu nos últimos anos, de mistura de pandemia com [Jair] Bolsonaro e com o esforço para reerguer o país."
Para o professor, há muitos livros que formam um conjunto de saberes, conselhos, orientações e de experiência que nos protegem e orientam, na literatura e na teoria. “Foi um sentimento de perda, estou desguarnecido. Preciso recuperar, ter alguns próximos do meu chimarrão."
Pedro Osório relata que o retorno está sendo trabalhoso, porque a casa está muito danificada, com muitas providências a tomar. Ao mesmo tempo, pontua, há uma rede de solidariedade. "Como todo mundo, estou resistindo com minha companheira, Bita Sória. Ela também está bem, está limitada por algumas questões de saúde. Como ela diz, encerrou-se o ciclo, vamos partir para uma nova organização, uma nova postura."
“Perdi um vínculo de lar que havia construído”
“Meu apartamento ficava no térreo, alagou. A minha rua, Joaquim Nabuco, aparecendo em fotos e filmagens no noticiário, mais de metro de água. A lembrança da vida pulsando naquelas calçadas, a alegria e a tranquilidade. Fui atingida em cheio, meu senso de segurança, minha noção de lar, pertencimento. Ando bem perdida na real. Difícil mensurar”, afirma a escritora e farmacêutica Nathallia Protazio.
Natural de Pernambuco, a escritora reside em Porto Alegre desde 2019. Ela saiu do apartamento no dia 6 de maio, na companhia de uma amiga e um amigo que foram buscá-la a pé.
“Sou uma pessoa bem paranóica. Desde o domingo vinha suspendendo todo o possível do que tinha em casa. Já estava impossível circular carro nas ruas, todos estávamos evacuando o bairro, pois as águas de recuo do esgoto já haviam chegado até a João Alfredo. Um cenário devastador. Mas, é aquela coisa, a gente sempre procura o lado bom. Não fomos pegos de surpresa à noite, dormindo. Saí de casa? Sim. Porém, com a dignidade de carregar minha mala e o galão d’água pela calçada ainda seca. Nunca mais voltei."
Tudo que era de madeira, estante, mesa, armários, foi perdido, conta Nathalia. Contudo, para além das perdas físicas, tangíveis, as emocionais. “Perdi um grande vínculo de lar que havia construído em Porto Alegre. Perdi o pouco de estabilidade que a rotina de uma farmacêutica desempregada podia ter."
Neste momento, a escritora está em São Paulo. “Não sei se o que estou vivendo atualmente é algum processo de recuperação, acho que, como estou fora da cidade, não me sinto recuperando nada. Sinto o reencontro de forças e energias que eu tinha em lugares escondidos dentro de mim. A distância nos impõe a necessidade de viver processos muito mais internos, pois outras pessoas salvaram minhas coisas, limparam meu apartamento, secaram meus livros. Sou uma pessoa de sorte por ter amigas generosas."
Autora dos livros Aqui dentro (Venas Abiertas, 2020) e Pela hora da morte (Jandaíra, 2022), Nathalia atualmente é cronista da newsletter Agora vai!, da Matinal Jornalismo. “A Matinal tem sido de extrema importância para meu bem estar financeiro hoje. Deixo o convite para quem não conhece meu trabalho, procurem a coluna, me procurem no Instagram, comprem meu livro. Além de servir para organização psico-emocional, a literatura paga o feijão com arroz na minha mesa."
“O livro é um objeto de transporte, um dentre tantos atualmente. O livro carrega simbolicamente as nossas palavras, a pretensa literatura. Mas também nós a carregamos. Vamos refletir sobre o quanto, como seres humanos, somos frágeis, o quanto, perante a natureza, não só o que construímos é vulnerável. O que somos também o é e, com alguma sorte, recriarmos uma sociedade que tenha respeito e humildade perante as águas, os ventos e os demais humores terrestres."
“Foi avassaladora, levou todo o estoque literário”
“O primeiro baque foi a queda da renda total, o segundo baque foi tentar digerir a situação da casa e tudo o que havíamos perdido. De lá para cá, desde o momento que a gente saiu de casa, é um turbilhão de sentimentos que ainda não estão bem definidos, bem nítidos na nossa cabeça. Mas está sendo um processo, digamos assim, de viver um dia de cada vez”, afirma o escritor, poeta e integrante da Iniciativa Cultural Poetas Vivxs, Maicon PNA. O coletivo periférico atua por meio do hip-hop, da literatura, música e da educação.
Residente da Vila Farrapos, na zona norte de Porto Alegre, um dos bairros mais castigados pela enchente do mês de maio, ele conta que a casa ficou 28 dias submersa, a um palmo de atingir o forro. A enchente levou todo o estoque literário que ele tinha e que eram levados para as escolas onde eram trabalhados em oficinas com crianças e adolescentes .
“A gente perdeu livros físicos, fanzines e livretos que são publicados de forma independente, todos no segmento da poesia. Alguns falam um pouquinho do movimento hip-hop e outros sobre o movimento do slam, do qual eu faço parte. Além de levar o nosso computador onde eram desenvolvidos os nossos projetos. O nosso material de venda, nosso estoque de outros empreendimentos também”.
Desde que saiu de casa, Maicon está alojado na casa da mãe, com mais outras oito pessoas e impedido de trabalhar, uma vez que, além do trabalho desenvolvido nas escolas, também vendia o material nos bares da cidade.
“As escolas fecharam para se tornarem abrigos, os bares pararam, a gente perdeu todo o estoque, não tinha como vender. Nós pegamos o material consignado com uma gráfica. Dividíamos as prestações e, com a perda do material, não conseguimos levantar o dinheiro necessário para pagar a última parcela. O artista periférico, infelizmente, não pode ser só artista, não pode ser só escritor. Ele tem que ser tudo, tem que ser produtor executivo, social mídia, video maker."
A situação financeira, pontua o escritor, acabou reforçando gatilhos em outras áreas. “Sair de casa, ficar completamente sem renda, não ter uma assistência estadual, governamental, municipal. Tudo isso acumulado com o trauma coletivo, que é estar vivendo esse momento no Rio Grande do Sul.
“A gente se abraça na arte mais uma vez”
“A gente saiu de uma pandemia, estamos ainda em recuperação, onde foi um processo muito difícil para a classe artística autônoma, que trabalha com cultura, literatura e arte. Estávamos caminhando a passos curtos para essa retomada e quando estava engrenando aconteceu esse desastre. Duas calamidades públicas em menos de cinco anos. E mais uma vez a gente usa a arte como ferramenta. A gente se abraça na arte mais uma vez, fazendo a diferença na vida de outras pessoas”, relata Maicon.
Ele teve o primeiro contato com a literatura por meio do slam. E é na literatura que ele vê uma forma de traduzir tudo que está acontecendo por consequência do desastre climático. “Nesse momento, vejo a literatura como um mecanismo de conseguir externar esse turbilhão de sentimentos que a gente vem sentindo. Essas confusões mentais que a enchente causou. Porque muita coisa que foi levada tem valor e não preço. E são coisas que não vão ser recuperadas tão facilmente, e algumas nem vão ser recuperadas totalmente. A literatura agora é como um fortalecimento e como uma base para tentar continuar trabalhando com a arte e se manter fazendo o que ama e fazendo o que gosta."
Ele conta que, desde que as coisas se acalmaram, o coletivo dos Poetas Vivxs tenta fazer o que pode para voltar com os projetos sociais e educacionais. “Atender mais escolas, agora que está começando a normalizar, mas a realidade ainda é muito incerta”, finaliza.
Edição: Marcelo Ferreira