Rio Grande do Sul

Coluna

O mal dito que nos envergonha

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Deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) cometeu ato falho ao se referir ao Projeto de Lei 1904, conhecido como PL do Estupro - Lula Marques/EBC
Para aqueles familiarizados com a psicanálise, um deslize verbal revela algo a mais

Em um protesto contra o aborto, a deputada federal Carla Zambelli (PL) declarou em voz alta: "Não quer um bebê? Entrega para o aborto". Os dez homens ao seu redor não demonstraram qualquer desconfiança em relação ao que foi dito – estranho, não? Foi outra mulher presente quem a corrigiu discretamente: "Entrega para a adoção, entrega para a adoção. Não quer o bebê, entrega para a adoção". Mesmo após ser corrigida, a deputada repetiu o lapso: "Não quer um bebê, entrega pro aborto. Entrega pra adoção. Desculpe, errei duas vezes", disse ela, visivelmente constrangida. Errou? Isso depende do ponto de vista.

Para aqueles familiarizados com a psicanálise, um deslize verbal revela algo a mais. O aspecto cômico da cena que presenciamos na última semana surge da contraposição entre o sentido que a deputada pretendia expressar e a falta de sentido do que acabou por ser dito. Afinal, entregar um bebê para o aborto seria o oposto completo do que o projeto de lei defendido por ela – que obrigaria crianças a continuarem a gestação mesmo após um estupro – propõe. Esse chiste, lapso, ato falho e outras tantas formas que o pai da psicanálise poderia classificar como manifestações do inconsciente, denuncia que Carla, como todos nós, é um sujeito dividido entre o consciente e o inconsciente.

Outro lapso amplamente conhecido ocorreu com George W. Bush em 2022, detalhado na apresentação do livro Psicopatologia da Vida Cotidiana, da editora Autêntica. Para resumir: durante um evento no Instituto Bush Center, na Universidade do Texas, onde se discutia a invasão da Ucrânia pela Rússia, Bush disse inadvertidamente: "É a decisão de um homem de lançar uma invasão totalmente injustificada e brutal ao Iraque. Ops, quero dizer, da Ucrânia". Ele soltou uma risada envergonhada e comentou: "Já tenho 75 anos". Esse lapso foi considerado o "ato falho do século". Surgiram várias questões: teria sido a única vez em que Bush disse a verdade sobre a invasão do Iraque? Foi mais do que um simples erro de um senhor de 75 anos? Ou foi uma confissão involuntária de algo que não deveria ser dito?

A psicanálise explora essas manifestações do inconsciente, algo que nos habita e que tentamos negar. É no encontro com o nosso desconhecido que podemos ter notícias sobre algo em nós que escapa. O ato falho é bem-sucedido porque produz a ausência e coloca o sujeito em questão, como Lacan gostava de dizer. É um momento de abertura do inconsciente, de manifestação de sua existência. Um tropeço na fala, um deslize linguístico revela algo a mais; não é apenas um erro.

Quem tropeça pode tentar disfarçar dando uma corridinha, mas quem viu não consegue "desver" o que aconteceu de cômico. A cena foi interrompida por algo inesperado. A máquina humana erra, engana-se, tropeça, diz o que não queria, revela algo que deveria permanecer esquecido. Tudo poderia ser apenas um equívoco, mas foi a genialidade de Freud que colocou todos esses pontos em questão. Há algo de verdade no suposto "erro".

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira