Há anos segue indefinido o futuro do Mato do Júlio, área de 256 hectares de floresta nativa em Cachoeirinha (RS) que, de um lado, está na mira da especulação imobiliária e, de outro, é defendido como área a ser preservada. Nos últimos anos, a construção de condomínio quase foi aprovada no local após tentativas de alteração do Plano Diretor, frustradas pela luta popular. Depois teve início uma retomada de território de famílias Mbyá Guarani. Agora, entidades da região pedem que o território de propriedade privada seja desapropriado pelo governo federal, como medida para minimizar os efeitos das mudanças climáticas.
Rodeada de bairros populosos, a área contribui para reduzir o impacto das enchentes na região Metropolitana de Porto Alegre por sua característica de retenção hídrica junto à várzea do rio Gravataí. Por isso, na sexta-feira (14), após realização de plenária, o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí enviou ofício ao governador Eduardo Leite (PSDB) que, entre outras medidas, pede a desapropriação via União.
Presidente da entidade, Sérgio Cardoso destaca que a luta pela preservação do local vem de longa data com a Associação de Preservação da Natureza Vale do Gravataí (APN-VG), que completou 45 anos em 2024 e “sempre defendeu a tese de que a área não é mais de Cachoeirinha”. Segundo ele, há mais de 20 anos, “quando o então prefeito José Stedile trouxe esse debate”, o Comitê trata o Mato Júlio “como uma grande área estratégica dentro da bacia hidrográfica, para a questão da água, como se comprovou agora com as enchentes, e também sobre a qualidade do ar, pelo fato de serem mais de 250 hectares de uma grande vegetação”.
Ele afirma que o pedido de desapropriação é feito ao governo federal por que, “pela dimensão da área, pela importância que tem, isso extrapola nesse momento a questão municipal e também para o estado do Rio Grande do Sul acaba sendo bastante dinheiro”. Por isso, segundo ele, o ofício também chegou ao ministro-chefe da Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do RS, Paulo Pimenta.
“Não queremos simplesmente preservar e ficar olhando o Mato de longe, é importante deixar claro que isso tem que partir de um belo projeto de integração, onde as pessoas consigam usufruir não só o ar puro do ambiente, mas que ele seja abraçado pela Região Metropolitana como uma Unidade de Conservação e valorizando toda aquela a área interna que tem o casarão açoriano”, defende.
O casarão ao qual Sérgio se refere é o segundo imóvel mais antigo do estado, a Casa dos Baptista, construída ainda do período colonial brasileiro e hoje em risco de desabamento. O professor de história Leonardo da Costa, integrante do Coletivo Mato do Júlio, que reúne ativistas em defesa da área, ressalta o importante valor histórico-cultural da construção em estilo arquitetônico luso-brasileiro, contendo ruínas de uma senzala e de uma casa de charque.
“Nessa antiga senzala pessoas negras brasileiras, mas também africanas, foram escravizadas. Tudo isso tem documento, tem carta de liberdade, tem registro de óbito lá na Santa Casa, então a gente tem documento que comprova que essas pessoas tinham cor, tinham etnia, tinham nome”, afirma, reforçando a necessidade de valorizar a essa riqueza histórica. “A gente não sabe nosso passado porque a gente não olha pra ele e a gente não enxerga.
A história do Mato do Júlio e de sua defesa
A área recebe esse nome por conta de seu último morador, Júlio Baptista, que viveu até sua morte, em 2002, no casarão construído em 1814. Júlio era um dos herdeiros do Comendador João Baptista Soares da Silveira e Souza, que quando criança veio dos Açores para o Brasil e recebeu as terras que tornaram-se a Fazenda da Cachoeira, que deu origem ao município de Cachoeirinha.
Com dívidas milionárias milhões em IPTU, a família firmou um acordo com prefeitura, em 2019, prevendo a quitação em troca de parte do território. Pouco depois, o Executivo aprovou na Câmara de Vereadores o projeto de lei 4463/2020, que alterou o Plano Diretor para permitir o zoneamento residencial e a construção de ruas no local, até então protegida por sua definição como Área de Especial Interesse Ambiental.
Esse plano foi frustrado através da mobilização social que evidenciou diversas ilegalidades no processo realizado sem o debate público devido. Principalmente da APN-VG e de um grupo de pessoas que vieram a fundar o Coletivo Mato do Júlio. Também houve intervenção de alguns vereadores, que na época organizaram uma frente parlamentar para barrar o projeto.
O caso chegou ao Ministério Público (MP), que recomendou a suspensão do projeto de lei devido à pandemia de covid-19, por impedir a participação popular no debate. O assunto retornou no segundo semestre de 2023, após o MP cobrar que o município fizesse a revisão do Plano Diretor, vencido desde 2017. Contudo, após algumas reuniões do Conselho do Plano Diretor, esse processo foi interrompido, novamente por recomendação do MP, após denúncias de que grande parte dos conselheiros eleitos que deveriam representar a comunidade eram ligados ao governo, informação que o Brasil de Fato buscou esclarecimentos junto à prefeitura, sem retorno.
Em meio a toda essa batalha, em setembro de 2021, famílias Mbya Guarani iniciaram uma retomada de território em parte da área do Mato do Júlio. O movimento dos indígenas foi justificado pela necessidade de proteger o local diante do avanço da especulação imobiliária, a partir de uma ação guiada por Ñhanderu (Deus) com a finalidade proteger e manter os seres num ambiente de harmonia.
“Última floresta da Grande Porto Alegre”
Leonardo representou o Coletivo Mato do Júlio em reunião, em abril, na Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa. Na ocasião, após o militante reforçar a a importância da “última floresta da Grande Porto Alegre”, os deputados Miguel Rossetto (PT) e Stela Farias (PT) se comprometeram em encaminhar requerimento para uma audiência pública sobre o caso.
Nesse encontro, sem saber antecipando o que viria a acontecer no Rio Grande do Sul, Leonardo ressaltou que a área é rica em biodiversidade e que tem característica de retenção hídrica, ou seja, contribui para absorver a água nas enchentes do rio Gravataí, que ao longo dos anos foi perdendo a área de várzea de seu entorno por causa do crescimento das cidades. “Cachoeirinha historicamente é afetada por alagamentos”, alertou.
Passada a enchente de maio, ele destaca que, durante as inundações, observou-se que a parte baixa do mato, próximo a Freeway estava completamente coberta pela água. “Isso é uma coisa boa, isso significa que a agua estava ali e não na casa de pessoas”, o que agravaria ainda mais a situação da cidade, que teve bairros alagados.
“O dia com maior quantidade de água foi no dia 6 de maio, ainda não temos dados da proporção de inundação desse dia, temos os dados do dia 4 de maio, que foram disponibilizados pelo MapBiomas. Cruzamos esses dados com os da Defesa Civil de Cachoeirinha e fizemos o calculo de área coberta pela agua e população do bairro Parque da Matriz. Concluímos que o mato foi responsável por segurar 35% da água que esteve na cidade no dia 4 de maio e, sem ele, em torno de 6 a 8mil pessoas a mais teriam sido afetadas”, explica.
Fauna, flora e serviços ecossistêmicos
A estudante de Zootecnia da Ufrgs, Natana Peres, também integra o Coletivo Mato do Júlio. Nos últimos anos, administrou palestras em escolas da região abordando a importância histórica, geográfica e biológica da preservação da última floresta de Cachoeirinha. Ela conta que o local abriga diversos ecossistênas e dois biomas: Mata Atlântica e resquícios do Pampa.
Segundo Natana, a área cumpre diversos serviços ecossistêmicos em meio à cidade. “Sequestro de carbono no solo, drenagem urbana devido ao solo. Tem a questão também da qualidade do ar, da redução de temperatura, a gente sabe que onde tem uma concentração de área verde, pela transpiração das árvores, tem uma qualidade de ar melhor, uma temperatura mais baixa em épocas de verão. A gente estima mais ou menos 5 graus de diferença em torno e dentro do Mato do Júlio para o resto da cidade num dia de verão”, exemplifica.
Destaca aind a existência de árvores de mais de 100 anos e mais de 150 espécies de animais registrados anfíbios, répteis e mamíferos. Nos últimos anos, o coletivo adquiriu uma armadilha fotográfica e conseguiu registrar em vídeo animais que não eram vistos há anos da região. Um deles é o gato-do-mato-do-sul, “que é um animal que está ameaçado de extinção e é o nosso carro chefe pra chamar a atenção, que comprova que a área do mato é muito preservada”.
Com a ferramenta, ela conta que o coletivo também registrou animais como mão-pelada, conhecido também como guaxinin, lagarto teiú, preá, retão do banhado, diversos tipos de aracnídeos, inclusive aranha caranguejeira e diversas espécies de cobras. Além de diferentes gaviões, quatro tipos de pica-paus e de servir de refúgio para aves em migração.
Natana destaca que esse ecossistêma traz ao município um controle natural de animais que causam doenças nos seres humanos, por conta da predação de espécies consideradas pragas no meio urbano. “Então acaba reduzindo a transmissão de doenças como a leptospirose, por exemplo. E de doenças respiratórias também, porque hoje o grande problema do mundo é quantidade de doenças respiratórias que aumenta e isso tende a piorar”, avalia.
Ela ressalta ainda que o mato do Júlio conta com vários banhados e nascentes de água, e que por ele passa o arroio Passinhos, “que é um dos que vai levar água diretamente pro rio Gravataí, e também um dos maiores poluidores do Gravataí”, o que considera um problema. Caso a área seja loteada, ela prevê aumento de mortes de animais que se refugiam na cidade e prejuízos para a população, por conta da questão da drenagem de enchentes e dos demais serviços ecossistêmicos.
Área abriga retomada indígena
O Brasil de Fato RS foi até a retomada Mbya Guarani no Mato do Júlio. A área ocupada em 2021 fica próxima ao casarão, que não pode ser acessado por se tratar de propriedade privada. Lá sobrevivem com poucos recursos e com apoio da comunidade cerca de 50 indígenas que pedem pela demarcação do território. É o que conta uma das lideranças do grupo, Alexandre Acosta Kuaray.
“Esse pedaço de mato a gente soube pelo espiritual. O Guarani tava aqui antes, Cachoeirinha tem só 40 anos. Por isso vim aqui com as famílias, as crianças. O empresário não tem direito, esse matinho não é para o juruá (homem branco), não pode derrubar árvore, não pode cortar”, afirma.
Pedro Benitez Karai também está na retomada e reforça o objetivo da ação. “Vivemos essa área aqui, é para o nosso filho, para o nosso neto, e até para os nossos jovens e adultos, que nós nós queremos preservar. Essa área tem um espaço para as crianças brincar, tem espaço para plantação também. Nós não queremos destruir, nós não queremos nem desmatar. Nós queremos ver que lindo esse verde aqui.”
Os herdeiros do Mato do Júlio entraram com uma ação de reintegração de posse contra a retomada indígena, que chegou a ser concedida em primeira instância. Mas a ação foi suspensa no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) após a Defensoria Pública da União (DPU) recorrer da decisão da 9ª Vara Federal de Porto Alegre, enquanto aguarda solução a ser apresentada pelo Sistcon, sistema de conciliação da Justiça Federal para demandas possessorias.
O coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário- Regional Sul, Roberto Liebgott, afirma que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), até o momento, fez um estudo prévio para identificar a demanda apresentada pelos Guarani. “Internamente, eles tratam como estudo de qualificação de demanda, que não é o procedimento administrativo de demarcação de terras regulado pelo Decreto 1775 de 1996 e pela Portaria 14, também de 1996. Ou seja, ainda não há procedimento de demarcação aberto, apenas reconhecimento da presença indígena na área.”
Valor histórico-cultural
A Casa dos Baptista foi tombada como patrimônio histórico do município em abril de 2022, após um longo processo que durou 15 anos. Além do imóvel, foi determinada que uma área de 6,3 hectares ao redor deve preservar ambientação original. O decreto diz que a prefeitura deveria realizar a contratação de laudo técnico pericial para delimitar a área de entorno e sua descrição, no prazo de até 120 dias, o que deveria ter acontecido até dia 31 de julho de 2022. Até hoje a casa encontra-se abandonada e em degradação.
O Coletivo Mato do Júlio e a APN-VG deram entrada também nos pedidos de tombamento estadual e nacional, a fim de tirar o processo do âmbito municipal. Em janeiro de 2024, o pedido foi oficializado junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae). Em fevereiro, foi a vez de entregar o pedido ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
“Ali a gente tem dois patrimônios, o patrimônio ambiental e o patrimônio histórico. A gente desperdiçar e tratar tanto a nossa história e a nossa cultura como se não fossem nada, ou a gente vai olhar para esses dois patrimônios com o valor que eles merecem?”, questiona.
O Coletivo Mato do Júlio, a APN-VG e outros grupos organizados da cidade defendem e lutam para que o local transformado em uma Unidade de Conservação e que o casarão seja reformado e se torne um memorial.
Edição: Katia Marko