"Muita gente pequena, em lugares pequenos, fazendo coisas pequenas, podem mudar o mundo". Ao relembrar este provérbio africano, cerca de 20 organizações que compõem a Missão Sementes de Solidariedade iniciaram incursões em territórios atingidos pelas enchentes no Rio Grande do Sul.
A iniciativa é um esforço conjunto para identificar necessidades e buscar soluções para problemáticas das populações rurais, indígenas e quilombolas impactadas pelas cheias e pelos deslizamentos de terra em diferentes regiões do estado. Instalados no Convento São Boaventura, no distrito de Daltro Filho, município de Imigrante, aproximadamente 40 voluntários, que compõem a primeira força-tarefa, começaram nesta semana a percorrer localidades do Vale do Taquari.
"O que estamos encontrando no meio rural é uma realidade que eu imaginava que no futuro viesse a acontecer, mas que a nossa geração não veria: estamos diante de pessoas que se tornaram refugiados climáticos", afirma um dos coordenadores da ação, Frei Sérgio Görgen, diretor do Instituto Cultural Padre Josimo.
Ele descreve o cenário de destruição encontrado no campo. "Nas áreas baixas, encontramos pessoas que tiveram suas casas, animais, equipamentos de trabalho e demais infraestrutura destruídas pelas águas; já nas áreas altas, somente nestes primeiros dias, identificamos dezenas de deslizamentos de terras e quedas de encostas que destruíram ou colocaram em risco severo as casas, roçados, pastagens, aviários, chiqueiros”, relata.
Miqueli Schiavon, integrante da direção nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores e das Pequenas Agricultoras (MPA), lembrou de outro conceito para definir a situação a que camponeses e agricultores familiares estão expostos: injustiça climática.
“O que temos visto nessa região é uma situação muito grave. Estamos testemunhando aqui espaços onde as pessoas se dedicam a preservar a natureza em nível local, e estão sendo atingidas por ocorrências causadas pelas mudanças climáticas que estão sendo impostas em escala global. É o que podemos denominar injustiça ambiental ou injustiça climática", aponta Schiavon.
Durante as primeiras ações em campo, onde os grupos de voluntários percorreram comunidades da zona rural de Arroio do Meio e Cruzeiro do Sul, foi possível constatar que há muita desinformação e grande carência entre os atingidos. De modo geral, destacam-se as dificuldades para acessar os programas de socorro emergencial dos governos; entraves para acessar recursos de estruturas seguradas (como chiqueiros e aviários); infraestrutura produtiva comprometida; muitos desafios para manter a alimentação de animais que não foram perdidos; e receio de que, com as chuvas previstas para os próximos dias, a infraestrutura de acessos possa vir novamente a ser prejudicada.
As organizações que compõem a Missão Sementes de Solidariedade pretendem manter a mobilização de voluntários ao longo dos próximos meses para fazer chegar às famílias de agricultores familiares e camponeses, bem como as comunidades indígenas e quilombolas, um kit para reestruturação da capacidade produtiva de alimentos para subsistência, contendo: sementes crioulas ou varietais de milho; sementes de feijão; sementes de hortaliças; mudas de árvores; ramas de mandioca; mudas de batata-doce; sementes e mudas de flores; e bioinsumos.
Por outro lado, as informações alcançadas por meio das visitas serão organizadas e compartilhadas com os poderes públicos locais, bem como utilizadas para a formação de uma pauta de reivindicações a serem apresentadas aos governos estadual e federal.
Situação pode ficar ainda mais grave
O Brasil de Fato RS acompanhou uma das equipes que se deslocou entre localidades nos municípios de Capitão, Arroio do Meio e Encantado. Na localidade de Linha Alegre, município de Encantado, estava o pequeno agricultor Fabiano Veronese, ao lado do filho, tentando recolher debaixo do entulho e da lama o que restou da silagem, a qual foi preparada para alimentação do gado leiteiro que garante o sustento da família.
“Estamos tentando nos reerguer, mas não está fácil. Da lavoura, não sobrou nada. O que a chuva e a enchente não levaram embora ficou embaixo do deslizamento de terra que veio desde cima do morro, quase 2 quilômetros de distância, destruindo tudo”, contou.
Ele pede ajuda para a retomada da produção. “Precisamos de algum recurso para comprar ração e milho para os animais, alguma ajuda para poder voltar a produzir, a perda foi muito grande. Hoje a gente está obrigado a ir prestar serviço de servente na cidade para garantir o sustento da família e o pagamento das contas”, apela Veronese, antes de ligar trator e seguir pela estrada embarrada, costeada por um curso de água que antes da ocorrência não passava por ali.
Inaldi Werner, agricultora de Linha São Jacó, município de Capitão, teve perdas nos plantios, mas a maior preocupação dela é com vizinhos, amigos e parentes que ficaram na linha de risco dos desabamentos. “Precisa ser feito alguma coisa por essas pessoas. São muitas casas que estão condenadas, que podem ser atingidas em caso de novos desabamentos”, defende.
Ela fez questão de mostrar a situação da casa de uma família vizinha, onde o deslizamento de terra e pedras chegou até a varanda. “São pessoas que saíram da cidade e vieram morar no campo em busca de melhor qualidade de vida, e agora tiveram que abandonar sua casa e dificilmente poderão retornar para viver neste local", lamenta.
Seguindo o caminho em direção aos limites do município, o cenário se repete diversas vezes. Muitas casas abandonadas, outras com os ocupantes receosos de permanecer, outros ainda insistindo em ficar no local mesmo sob risco iminente de novas ocorrências. E a previsão do tempo para os próximos dias causa ainda mais apreensão. No percurso, também se contam dezenas produtores de leite com dificuldade de manter a alimentação dos animais e criadores de galinhas e porcos que tiveram a infraestrutura atingida com dificuldade de acessar o recurso do seguro.
Jacira Ruiz, secretária executiva da Cáritas RS, organização de ação social vinculada à Igreja Católica, está mais uma vez atuando nos esforços de coordenação da Missão Sementes de Solidariedade. Desta vez, porém, está em dupla condição: é voluntária e também é atingida, uma vez que o bairro onde reside com o marido foi alagado na cidade de Canoas. “Somente quando somos atingidos temos a real concepção do que cada pessoa, do que cada família passa, a dor que sentimos quando perdemos nossas coisas, quando vemos nossos amigos e familiares em risco, quando acontecem até mesmo situações mais extremas”, exemplificou.
Ela destaca que todo esforço de solidariedade é bem-vindo. "Seja uma ação concreta que auxilia na situação emergencial, seja uma ação simbólica de compartilhar um abraço, de se dispor a um momento de escuta, de demonstrar interesse, cuidado, presença”, ensina. Com os olhos marejados, citando a perda das duas únicas lembranças que guardava da mãe já falecida, Jacira explica aos demais voluntários que a dor não se mede, por vezes o que pode parecer insignificante para uma pessoa, para outra pode ter muita importância.
“Todos os dias temos visto autoridades tentando mensurar o tamanho da tragédia nas entrevistas, reportagens e redes sociais. Mas a verdade dura é que até o momento não se tem ainda a noção do tamanho real do problema. Há muita gente invisibilizada, que não está computada nas estatísticas. E mesmo aquelas que estão, é preciso termos noção de que se trata de gente, não de números. Muito já foi feito, mas para que se devolvam as condições de trabalho e mesmo a dignidade de vida para os atingidos e atingidas será preciso fazer ainda muito mais”, aponta Frei Sérgio Görgen ao final do dia, depois de ouvir os relatos dos grupos de voluntários que retornaram para o Convento São Boaventura ao anoitecer.
Números da tragédia
Segundo o relatório da Defesa Civil do Rio Grande do Sul, divulgado em dia 18 de junho, o número de municípios afetados pela ocorrência climática no estado chegou a 478. Atualmente, 10.485 pessoas estão em abrigos. O número de desalojados ultrapassou 388 mil, enquanto o de afetados chegou a 2,3 milhões de pessoas. São 177 pessoas mortas, 806 pessoas feridas e 37 continuam desaparecidas.
Para aumentar o nível de prevenção, a população pode se cadastrar para receber os alertas meteorológicos da Defesa Civil estadual. Para isso, é necessário enviar o CEP da localidade por SMS para o número 40199. Em seguida, uma confirmação é enviada, tornando o número disponível para receber as informações sempre que forem divulgadas.
Também é possível se cadastrar via aplicativo Whatsapp. Para ter acesso ao serviço, é necessário se registrar pelo telefone (61) 2034-4611. Em seguida, é preciso interagir com o robô de atendimento enviando um simples "Oi". Após a primeira interação, o usuário pode compartilhar a localização atual ou qualquer outra de interesse para, dessa forma, receber as mensagens que serão encaminhadas pela Defesa Civil estadual.
Participação e contribuição
A campanha Missão Sementes de Solidariedade recebe doações, as quais podem ser encaminhadas para o PIX da Cáritas, com a chave: 33654419.0010-07 (CNPJ). Outra possibilidade de colaboração se dá por meio de depósito bancário para a conta corrente 55.450-2 / Agência 1248-3 (Banco do Brasil). Os recursos e a mobilização estão sendo diretamente administrados pelo escritório regional da entidade no Rio Grande do Sul.
O mapeamento de regiões e comunidades atingidas segue sendo construído. Lideranças com disponibilidade para fazer o cadastro de comunidades são convidadas a preencher um formulário disponível neste link.
Já a força-tarefa que vai a campo realizar as visitas presenciais nas comunidades mapeadas, família a família, está com inscrição de voluntários neste link. Os mobilizadores explicam que está sendo solicitado aos voluntários a disponibilidade mínima de tempo de uma semana para viabilizar deslocamento, treinamento e incursões a campo.
Fazem parte da “Missão Sementes de Solidariedade: Emergência”: Cáritas, Movimento dos Pequenos Agricultores e das Pequenas Agricultoras (MPA), Instituto Cultural Padre Josimo (ICPJ), Movimento dos Atingidos e das Atingidas por Barragens (MAB), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Diocese de Santa Cruz do Sul, Rede de Agroecologia Ecovida, Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara, Gritos dos Excluídos, Instituto Conhecimento Liberta (ICL), Instituto Koinós, Freis Franciscanos (Serviço Justiça Paz e Integridade da Criação), Serviço Franciscano de Solidariedade, Sindicato dos Petroleiros (Sindipetro-RS), Canoas Tec, Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Sem Teto (MTST), bem como as cooperativas Cooperbio, Origem Camponesa, Coptil e Creluz.
Edição: Katia Marko