Rio Grande do Sul

Coluna

Os terreiros como a universidade da Pedagogia das Africanidades

Imagem de perfil do Colunistaesd
Os terreiros também constituem-se em espaços de enfrentamento ao racismo à medida que perseguições antigas se renovam e desse modo novas formas de aquilombamento também precisam ser atualizadas - Foto: Isabelle Rieger
É preciso políticas públicas para os povos tradicionais de terreiro para garantir direitos

Historicamente a chegada dos negros no Rio Grande se dá oficialmente a partir da primeira metade do século XVIII quando chega nas barrancas do Norte a frota de João de Magalhães vinda de Laguna a mando do rei de Portugal mais precisamente no ano de 1725. Os inventários e testamentos levantados por pesquisadores apontam que tal agrupamento humano era composto de 31 homens sendo formado na maior parte por homens pardos, escravizados de Brito Peixoto, povoador de Laguna.

A chegada de negros, segundo documentação existente, se deu prioritariamente pelo porto de Rio Grande vindos sobretudo do Rio de Janeiro e a entrada legal por esse lugar permitia o controle tarifário das autoridades coloniais sobre o tráfico escravista. Há registros ainda da entrada de negros escravizados através da barra do Rio Tramandaí em barcas menores mediante transação ilegal sobretudo a partir de 1850 quando aumentam as pressões do governo inglês sobre o tráfico no Brasil.

Essa chegada de negros através do porto de Rio Grande no final do século XVIII e primeira metade do XIX se intensifica em virtude das charqueadas localizadas às margens do Arroio Pelotas, que tendo ligação com o Canal São Gonçalo permitia o transporte do charque, carne salgada seca ao sol, por via fluvial até o porto de Rio Grande onde em embarcações maiores era levada para o centro do país e também para a Europa.

Essa intensa presença negra na economia da região vai impor marcas culturais fortíssimas sendo duas delas vivas até os dias atuais: o grande tambor charqueador conhecido como “sopapo” e que segundo Nei Lopes no Novo Dicionário Banto do Brasil teria provável origem entre o povo Nganguela de Angola. Outra marca indissociável da presença negra no RS é o Batuque de Nação em suas vertentes vivas ainda hoje: Jêje-Ijexá, Oyó-Ijexá e Cabinda.

Na segunda metade do século XIX é registrada numa crônica de Coruja Pereira a existência do Candombe da Mãe Rita nos Campos da Várzea, onde hoje é a Rua Avaí no Centro Histórico da Capital. Ali se reuniam nos domingos a tarde, negros de diferentes nações para cantar e tocar tambores e o registro dá conta que a Mãe Rita era uma yalorixá que também organizava os festejos do Cocumbi, festejo afro católico em homenagem a Nossa Senhora do Rosário.

Outra figura histórica relevante na história do Batuque no RS foi Custódio Joaquim de Almeida ou Osuanlele Okizi Erupê, assim denominado no Benin onde era príncipe e tendo nascido em 1831. Ele viveu em cidades como Rio Grande, Pelotas e Bagé e tendo chegado a Porto Alegre no princípio do século XX mais precisamente no ano de 1901. A história de Custódio é contada em parte no documentário “A tradição do Bará do Mercado” com direção de Ana Luísa Carvalho da Rocha sendo que o assentamento do orixá que abre os caminhos foi feito naquele local por Custódio.

Cinematograficamente outro momento importante se deu em 2021 com o lançamento do documentário “Cavalo de Santo” com direção de Mirian Fichtner e Carlos Caramez, vencedor de 4 Kikitos no Festival de Cinema de Gramado.

Atualmente urge refletir acerca das políticas públicas voltadas para os povos tradicionais de terreiro para pensar direitos e garantias. O direcionamento de ações governamentais é de fundamental importância para os povos de terreiros tendo reflexo na conjuntura política brasileira à medida que impacta diretamente na liberdade religiosa por exemplo. O espraiamento dos terreiros de matriz africana em todo Brasil constitui-se em constatação importante de que são espaços de ação política à medida que fazem parte do controle social efetivo ao propor ações governamentais que buscam diminuir as desigualdades sociais também traçando estratégias de enfrentamento a intolerância religiosa.

Os terreiros, portanto, também constituem-se em espaços de enfrentamento ao racismo à medida que perseguições antigas se renovam e desse modo novas formas de aquilombamento também precisam ser atualizadas.  

Assim ressalta-se nos terreiros concretamente a importância do povo negro na contemporaneidade brasileira em respeito à comprovada presença histórica como base da economia brasileira desde os primórdios da ocupação colonial. Fundamentalmente a partir da presença dos povos originários e depois a partir do processo de colonização, a invasão europeia aqui, consequentemente baseada no escravismo negro, faz-se necessário entender que a conformação cultural desse país é indispensavelmente amefricana, pra usar o conceito da Lélia Gonzalez.

* André de Jesus, Ator/Ponteiro de Cultura, Locutor, ArteAtivista e Produtor Cultural.

** Richard Serraria, poeta/cancionista e tocador de Sopapo, Dr. Estudos Literários Ufrgs.

*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko