Rio Grande do Sul

Análise

Metropolis Paralelo 30: uma cidade neoliberal

Cartografia urbana distópica retratada em filme alemão de 1927 tem similaridades com catástrofe em Porto Alegre

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Imagem do filme alemão Metropolis, de 1927, o qual descreve uma distópica cartografia urbana - Reprodução

De onde vinha essa água? Ela veio silenciosamente. Ela não fez barulho. Nem veio em ondas. Apenas ergueu-se – sem pressa, mas ainda assim persistentemente. Não era mais fria que o ar em volta. Thea Von Harbou - Metropolis

Escrevo Metropolis assente na perspectiva histórico-ficcional. Alusão ao clássico do cinema alemão de 1927. A narrativa fílmica descreve uma distópica cartografia urbana, futurista e rigidamente dividida. É a cidade de capital concentrado do século XXI, na qual o alto da torre é exclusivo aos super-ricos e a parte subterrânea ocupada por trabalhadores alienados e hiperexplorados. É a base ficcional para descrever outra urbe: Metropolis Paralelo 30. Território metropolitano permeado por teias de historicidade moderna, todavia, sitiado pela ofensiva do capital neoliberal. Logo, esbatida de política pública e esvaziada de história. Tal como Metropolis ficcional, ilustra o cenário de espaço urbano inflexionado ao rentismo. Não há governo nem democracia. A vida social é administrada para a produção e reprodução de capital sem qualquer limite moral ou ético para a acumulação de riqueza. Nesse distópico e real espaço-tempo, a exploração dos homens e da natureza subtrai da paisagem urbana a alegria da vida. O resultado é apavorante: Metropolis fria e desigual.

As duas Metropolis vivenciaram idêntica catástrofe ambiental. A engenharia moderna do capital canalizou e aterrou parte do rio que contornava o espaço metropolitano. Então abriu caminho para ampliar a riqueza dos super-ricos com o discurso de que resultaria em segurança e felicidade à massa de trabalhadores urbanos. A administração da Metropolis negou, peremptoriamente, a existência de ameaça das forças da natureza. De fato, havia um conjunto amplo de bombas capazes de proteger completamente a cidade da fúria d’água do rio. Contudo, a água subiu silenciosamente, apesar do estrondo dos climatologistas. Para piorar o quadro, as bombas colapsaram por negligência e/ou pragmatismo administrativo.

O fato é que Metropolis Paralelo 30 abriu mão de seus muros de defesa, quando trocou a política do desenvolvimento comum pela abertura de seus portões ao capital. Então, ela passou a ser, ordinariamente, administrada para o interesse privado, isto é, o território urbano entrou na rota da especulação financeira e imobiliária. Metropolis é cercada de muros, mas os portões estão abertos à passagem livre do capital, que – como a água de enchente – avança silenciosamente sobre os direitos sociais e a própria cidadania. Ele nos sufoca como a água que avança sobre as ruas, as praças e as casas banhando o espaço urbano de morte e destruição.

A forte chuva não foi o horror que caiu do céu sobre a terra. Ela apenas revelou, o que o discurso da “boa governança” e do jornalismo como publicidade escondem: uma pólis indefesa, porque capturada pelo capital. Metropolis Paralelo 30 é urbe de tempo cinza, de economia neoliberal e ofensiva ciberfascista. Tempo da política do pior, de hegemonia de modo de destruição do melhor da civilização moderna. Depois da água e da lama, o território urbano lembra uma pólis destruída pela guerra, atolada no entulho. Ela é triste e cheia de ruínas. Ainda assim, o bater dos sinos dos justos exige o retorno da política do comum, afinal, uma cidade demanda muros de proteção da cidadania.

A Metropolis da ficção fílmica de Fritz Lang constituiu enredo narrativo na esperança de chegada do “mediador”, personagem que asseguraria o equilíbrio entre os interesses do capitalista e dos trabalhadores. Ele é o coração, paradoxalmente, no mundo frio da razão instrumental. Também, a Metropolis Paralelo 30 arrasta seu esperançar para a retomada da utopia de uma outra cidade possível, pois reconstruir o território público exige política de proteção da vida vivida no comum a fim de evitar que a força silenciosa e destruidora do capital avance sobre os portões da cidadania como a água e a lama suja da enchente. 

* Ronaldo Queiroz de Morais é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko