A sabedoria ancestral dos povos indígenas é essencial para a criação de cidades resilientes
“Os perigos representados pelas mudanças climáticas são quase tão terríveis quanto representados pelas armas nucleares. Em curto prazo, os efeitos podem ser menos dramáticos que a destruição provocada por explosões nucleares, mas, nas próximas três a quatro décadas, as mudanças climáticas podem causar danos irremediáveis aos habitats dos quais as sociedades humanas dependem para sobreviver.”
Luiz Marques em “Decênio Decisivo: Propostas para uma Política de Sobrevivência”
A crise climática sem precedentes que assistimos aterrorizados no Rio Grande do Sul é uma realidade inegável, assim como o fardo desproporcional que acomete aqueles historicamente vulnerabilizados.
De acordo com o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o número de pessoas indígenas residentes em terras indígenas no Rio Grande do Sul é de 15.724, com 371 vivendo em regiões metropolitanas ou aglomerações urbanas. Além disso, uma parcela significativa de indígenas vive fora de suas terras tradicionais, enfrentando os desafios da vida nas cidades. O total de indígenas que vivem fora de terras indígenas é de 20.378, sendo 3.495 na Região Metropolitana de Porto Alegre, 380 na Região Metropolitana da Serra Gaúcha, 814 na Aglomeração Urbana do Sul e 614 na Aglomeração Urbana do Litoral Norte. O número de indígenas afetados pelas inundações em todo o estado ultrapassa 18 mil pessoas, segundo informações da Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde.
Os povos indígenas, desde a chegada do colonizador, enfrentam a violência imposta pelo modelo ocidental capitalista de exploração da natureza. Estes colonizadores criaram mecanismos contínuos e persistentes de destruir os sistemas milenares indígenas. Portanto, a destruição do bem viver não ocorre por acaso, incluindo a profecia de que, quando isso acontecesse, estaria chegando o fim do mundo.
A idealização dos limites político-administrativos do “Estado-Nação” e sua reprodução na divisão dos municípios são mecanismos que desconsideram e violam os modos de vida indígenas. Durante a pandemia da Covid-19 identificamos a vida dos povos indígenas do Rio Grande do Sul no fio da navalha. As comunidades estavam cercadas, à mercê da peleja histórica de enfrentar a chegada da doença em seus territórios trazida pela pressão das pessoas não-indígenas e o deficitário sistema de assistência à saúde.
Agora, as recentes inundações no Rio Grande do Sul novamente nos demonstram as falhas desse modelo. Fica em cheque a lógica da divisão territorial ocidental-colonial.
Diante da ciência indígena, os limites administrativos criados pelo Estado violam profundamente o conceito de corpo-território, que vê o território não apenas como um espaço físico, mas como uma extensão do corpo e da identidade dos povos. Essa cosmologia contrasta com as fronteiras rígidas e artificiais que observamos hoje serem desmanchadas pelas graves inundações, sobretudo na Serra Gaúcha, no Vale do Taquari e na Região Metropolitana de Porto Alegre. A destruição causada pelas enchentes ilustra como essas fronteiras são insuficientes para proteger as comunidades e a sociobiodiversidade.
A ciência indígena, que é uma fusão de conhecimento ancestral e intercultural, oferece contribuições relevantes para a reconstrução do RS. Ao integrar saberes indígenas com tecnologias ocidentais, é possível criar estratégias de ocupação territorial baseadas na resiliência, na justiça e adaptação climática. A sabedoria ancestral ensina que a natureza deve ser respeitada e protegida, não explorada e destruída. A natureza integra o contínuo dos nossos corpos; a violação da natureza é a violação dos corpos.
Esses saberes deveriam ser considerados na elaboração dos planos de reconstrução. Práticas tradicionais de manejo de recursos naturais, como o melhoramento genético, a agrofloresta e a gestão das águas, podem ser incorporadas nas estratégias de ocupação das cidades das regiões para aumentar a resiliência da rede urbana gaúcha. As medicinas indígenas, por sua vez, com suas práticas coletivas de cuidado e de vigilância em saúde, apoiam a vida nas comunidades mais saudáveis.
Chegou o momento e a oportunidade de construir novas cidades. Isso passa pela produção de respostas que ultrapassem e superem o modelo que criou e agravou a crise climática.
Não é possível resolver os problemas utilizando as mesmas lógicas que os causaram. A emergência climática exige uma mudança de paradigma, onde a justiça social e o conhecimento indígena, dos povos e comunidades tradicionais e dos agricultores familiares sejam centrais nas políticas de adaptação e de reurbanização. A urgência é do reconhecimento do racismo como um elemento estrutural que precisa ser erradicado.
Os povos indígenas têm resistido e se adaptado às mudanças ambientais há séculos. Eles não são apenas vítimas da crise climática em curso, mas protagonistas na luta por um futuro possível. A integração da ciência indígena nos esforços de reconstrução traz também benefícios para os não-indígenas. A partir de um diálogo intercultural, é possível aprender e aplicar métodos de construção resilientes, manejo sustentável da natureza e práticas agrícolas regenerativas. Esses métodos não apenas protegem a natureza, mas também fortalecem as populações, as cidades, os corpos, as mentes e os espíritos.
Para enfrentar a crise e reconstruir o Rio Grande do Sul de maneira verdadeiramente inclusiva, é crucial valorizar e integrar a ciência indígena nas políticas públicas. A sabedoria ancestral dos povos indígenas é essencial para a criação de cidades resilientes, capazes de enfrentar os desafios climáticos do presente e do futuro.
* Maurício Polidoro é geógrafo, doutor em Geografia e pós-doutor em Saúde Coletiva. É professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul em Porto Alegre, pesquisador do Observatório das Metrópoles. Atualmente é Coordenador de Articulação de Políticas de Adaptação às Mudanças Climáticas no Ministério dos Povos Indígenas.
** Joziléia Kaingang é geógrafa, doutora em Antropologia e pesquisadora da Associação Brasileira de Saúde Coletiva. É co-fundadora da Articulação Nacional das Mulheres Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA) e foi Secretária Nacional de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas no Ministério dos Povos Indígenas.
*** André Fernando Baniwa é gestor ambiental, Mestrando em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Atualmente é Coordenador-Geral de Promoção da Cidadania no Ministério dos Povos Indígenas. É autor do livro “Bem Viver e Viver Bem segundo o povo Baniwa no noroeste amazônico brasileiro”, pela Editora UFPR.
**** Daniel Canavese é sanitarista, doutor em Ciências da Saúde e pós-doutor em Saúde Coletiva. É professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisador do Departamento de Saúde Coletiva. Atualmente é Coordenador de Acompanhamento da Política de Saúde Indígena no Ministério dos Povos Indígenas.
***** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko