A Sede da Associação Satélite Prontidão (ASP), em confluência com outras organizações negras de abrangência nacional formam a Central Rede das Redes que já atendeu 16.945 pessoas.
Foram doadas mais de 10 toneladas de alimentos, centenas de kits de higiene e limpeza, colchões, roupas e outros itens necessários no enfrentamento das consequências das recentes inundações na vida das populações negras e periféricas em Porto Alegre e em outras sete cidades da região Metropolitana.
A ação vem sendo feita desde o início da calamidade climática que acometeu o estado do Rio Grande do Sul, devido às chuvas fortes e recorrentes dos meses de abril e maio.
Calamidade não vê cor?
3 de maio é o dia que não acabou na vida de milhares de famílias gaúchas. Mesmo com a redução dos níveis do Guaíba, os problemas da população negra não escorreram com as águas. Há um discurso corrente nesse período caótico que calamidade não vê cor, logo não faria sentido estabelecer um recorte racial para compreender e intervir nos impactos das enchentes em território gaúcho.
Infelizmente, essa constatação está bastante equivocada. O racismo ambiental está no bojo das desigualdades sociais, configurando um fenômeno que atravessa as vidas de populações racializadas e pobres no Sul global. Esse conceito foi criado por Benjamin Franklin Chaves Jr. na década de 1980 durante lutas por direitos civis nos Estados Unidos.
Esse tipo de discriminação é sistêmica e está amalgamada a diferentes projetos políticos econômicos que não levam em consideração questões ligadas ao meio ambiente e aos saberes ancestrais com sinergia a preservação e cuidado com a natureza. O que ocasiona as diversas injustiças socioambientais que pessoas negras, indígenas, de comunidades tradicionais ou periféricas estão sujeitas em contextos rurais e urbanos.
“Na verdade, onde mora a população negra? Está nos morros, nos lugares distantes (como as ilhas), como os lugares sem infraestrutura nenhuma que qualquer chuva que dê é motivo de alagamento”, afirma a Iyalorixa Nara de Oxalá Orumilaia, Nação jeje&jexa, coordenadora de Ancestralidade do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana - Fonsanpotma em Porto Alegre e liderança comunitária na Lomba do Pinheiro com o projeto “Quem tem pouco ajuda a quem não tem nada”.
A realidade denunciada desde o princípio das chuvas e enchentes é que os impactos das desigualdades raciais, econômicas e socioambientais se intensificariam no cotidiano da população negra sul-rio-grandense, especialmente quando olhamos para a realidade dos povos tradicionais de matriz africana e comunidades de terreiros.
Racializar os efeitos das enchentes é necessário, considerando que são essas populações que estão à margem das políticas de assistência por diversas razões. “A rede [Rede Afroambiental] já vinha estudando sobre isso. Há muito tempo já sabíamos que alguma coisa iria acontecer e que nós iríamos sofrer uma mudança climática. Infelizmente veio aqui para o Brasil e para o Rio Grande do Sul”, explica Iya Nara que está trabalhando como voluntária no centro de distribuição desde o início dos trabalhos.
Desde intolerância religiosa em abrigos instalados em igrejas até o não recebimento de doações institucionais, porque a Defesa Civil não considerou o fato de que muitas famílias negras se abrigaram em casas de familiares ou em terreiros. Essa é a síntese da análise de conjuntura realizada pelas lideranças da tradição de matriz africana gaúcha. Todas essas camadas de discriminação racial e descaso do poder público, impactam a renda familiar das famílias que abrigaram seus parentes não sendo o suficiente para alimentar a todos e todas, o que compromete a segurança alimentar e nutricional entre outras necessidades também urgentes. Também os custos com contas de luz e água, produtos de higiene pessoal ou remédios aumentaram bastante para quem abrigou seus familiares e amigos desabrigados.
A liderança religiosa AjoyeIyamoro Nádia Prestes conta sobre relato de intolerância religiosa, que chegou ao seu conhecimento, vivenciado por uma Iyalorixá que necessitou de abrigo: “O nosso povo estava sofrendo intolerância religiosa, normalmente em igrejas - ‘ah, você não pode usar esse colar’”, conta. Também, a partir dos relatos de lideranças religiosas e comunitárias que retiram doações no centro de distribuição, estima-se que existam famílias que receberam até 30 pessoas desabrigadas em suas casas. E terreiros com até 50 pessoas.
“Somos diferentes nas vestes, usamos nossos turbantes, nossas contas, nossas guias e não é todos os lugares que aceitam não. Por isso nós nos unimos com a Rede das Redes, foi montado porque na verdade a população negra aqui no Rio Grande do Sul com a matriz africana que somos, somos invisibilizados, somos demonizados e não respeitados”, complementa Iya Nara.
O Núcleo de Porto Alegre do Observatório das Metrópoles confirmou as suspeitas com sua análise acerca dos impactos das enchentes na população pobre e negra no estado. A partir da elaboração de mapas, os pesquisadores mostram que as áreas que mais sofreram com as enchentes são as regiões mais pobres das cidades, onde há uma concentração expressiva da população negra. Sarandi e Rubem Berta foram os bairros mais atingidos na zona Norte da capital gaúcha, região onde está localizada a sede da Associação Satélite Prontidão, que foi instalada a Central Rede das Redes.
Ubuntu: eu sou porque nós somos
Solidariedade e senso de pertencimento são valores constituintes das tradições de matriz africana. Nesse sentido, a idealização da Central Rede das Redes acontece a partir desse compromisso ancestral de cuidado com as comunidades dentro e fora das unidades tradicionais territoriais (UTT) e como estratégia de combate aos racismos presentes mesmo em meio ao caos climático.
“Depois de receber as inúmeras denúncias de pessoas que se encontravam nos abrigos, sofrendo hostilidade e preconceito por conta do uso de suas Guias e Torços, entendi que deveríamos acolher todas as pessoas que perderam tudo para que não passassem, além de toda sua dor, por mais violências”, conta a Iya Itanajara de Oxum, coordenadora de finanças do Fonsanpotma e uma das idealizadoras da Central.
A Central Rede das Redes é uma articulação entre a Associação Satélite Prontidão (@sateliteprontidao), a Rede Afro Ambiental (@redeafroambiental,) o Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana - Fonsanpotma (@fonsanpotma), o Grupo Mulheres de Axé do Brasil (@mulheres.axe.brasil), a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (@renafrosaude) e Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (@acbantu_ndeembwa) para o gerenciamento de crise dos Povos Tradicionais de Matriz Africana e Comunidades de Terreiro.
Essa iniciativa tem como principal objetivo planejar e coordenar a execução logística e da mobilização de recursos dos setores públicos e privados em defesa dos públicos-alvo da ação. No local, são recebidos diversos tipos de suprimentos que são triados, separados e distribuídos às cozinhas solidárias, terreiros e famílias que abrigam famílias.
“Nesse momento, em que a cidade de Porto Alegre e todo o estado passam por momentos difíceis, a ASP não poderia se furtar de associar-se a outras entidades que tratam dos interesses da população negra”, afirma Richard Evandro Guterres Alves, presidente do Clube Social Negro Associação Satélite Prontidão (ASP).
A ASP existe desde 1902 e desempenha o papel de receber e apoiar famílias negras da cidade de Porto Alegre, uma organização com princípios e valores de cunho filantrópico e assistencial.
“Segurança alimentar e preservação do meio ambiente, tudo isso com a tradução e sob os valores das tradições da matriz africana que tanto fizeram falta nos momentos anteriores que resultaram nesse cataclisma natural que está assolando o nosso estado com grandes inundações”, afirma o presidente da ASP, explicando os motivos que levaram a associação a compor a coalizão da Central Rede das Redes.
Segundo ele, houve uma rápida mobilização das organizações já mencionadas com o objetivo de criar um órgão logístico que serviria de centro de distribuição para acolher as necessidades do povo tradicional de matriz africana e famílias periféricas que residem em regiões afetadas no entorno da associação.
Acima de tudo, dignidade. Como a Central está funcionando?
Iya Itanajara celebra o sucesso da Central que já ajudou mais de 150 ilês, 757 famílias e mais de mil cozinhas solidárias em Porto Alegre e outras oito cidades da região Metropolitana. De acordo com ela, agrupar as doações em um local seguro, sem discriminação e com um atendimento que garanta a dignidade foi a solução que viabilizou o acesso de maneira facilitada às comunidades atingidas direta ou indiretamente às enchentes.
“Acolher os nossos irmãos e irmãs, entendendo a necessidade de cada um possibilita que estas famílias se sintam melhores para enfrentar esse momento violento onde todos fomos atingidos de forma direta, tendo suas unidades tradicionais territoriais invadidas pelas águas, ou perdendo seus empregos, familiares”, compartilha Itanajara.
A Central Rede das Redes está localizada na sede do Clube Negro Associação Satélite Prontidão localizado na Rua Alberto Rangel, 538 - bairro Rubem Berta Sarandi, e funciona de segunda a sábado, das 10h às 17h. Doações não monetárias podem ser realizadas todos os dias até as 16h. Os itens que estão sendo aceitos neste momento são:
- água potável em todos os volumes;
- alimentos não perecíveis, proteínas congeladas;
- produtos de higiene pessoal (sabonete, shampoo, condicionador, desodorantes, pasta e escova de dentes, papel higiênico)
- fraldas infantis e geriátricas;
- produtos de limpeza (água sanitária, detergente, sabão em pó, sabão em barra, baldes, vassouras, rodos, panos de chão, esponjas).
As doações estão sendo realizadas para famílias da tradição de matriz africana e comunidades de terreiro nas terças, quintas e sábados das 10h às 17h; e para a comunidade do entorno às segundas, quartas e sextas no mesmo horário. As doações são dispensadas mediante a realização de um cadastro. As informações são agrupadas num sistema que mostra os impactos do trabalho realizado pela equipe de voluntários.
* Bruna Crioula é nutricionista ecológica, mestra em Ciências Sociais, comunicadora ancestral, pesquisadora alimentar e fundadora da Crioula Curadoria Alimentar. Acompanhe seu trabalho pelas redes @brunacrioula e @crioulacuradoria.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko