Nos textos I e II, publicados anteriormente, procurei introduzir uma reflexão sobre a crise socioambiental em nível mundial, desde as primeiras manifestações da Organização das Nações Unidas (ONU) até as circunstâncias específicas dos eventos extremos ocorridos atualmente no Rio Grande do Sul. No III, que ora apresento, busco a compreensão do impacto do desastre no contexto específico das sociedades em geral e em específico da gaúcha.
Encontramos na sociologia como conceito de desastre os fenômenos socioambientais que desorganizam e reorganizam a vida social. Atingem o plano concreto e simbólico dos envolvidos, ocasionando perdas humanas, materiais e mudanças nos padrões de sociabilidade.
No caso do desastre de maio de 2024, as gestões da prefeitura da Capital e do governo do estado não apresentavam políticas institucionais preventivas, muito embora fosse a terceira inundação em nove meses e muitos avisos de técnicos e estudiosos pediam medidas no mínimo preparativas. Depois de mais de um mês as respostas são ineficazes e insuficientes, como por exemplo a do tratamento dos resíduos, ou seja do lixo.
Podemos observar desdobramentos na injustiça ambiental, nos vieses de classe, étnico-racial, gênero e geracional que são retratados no território e na reterritorialização da organização ou desorganização social advindas das relações de poder. O desastre escancara a desigualdade social e a exclusividade da assistência mostra a indiferença com a justiça social. A expropriação do território é a negação da cidadania, e quando da área de risco passa para o abrigo temporário, permanece uma territorialidade precária. No caso referido esses abrigos provisórios foram iniciativa em geral da sociedade, sem a participação dos gestores públicos. A atual situação exige mais do que um entendimento climatológico, é necessário a criação de meios de regeneração das condições ambientais, previsão e providências para garantir e possibilitar uma territorialização viável, com o direito de morar, trabalhar conviver comunitariamente, sem que temores crônicos, advindos de chuvas, vendavais, secas prolongadas, deslizamentos, erosões e afins, possam se constituir em ameaça.
A manutenção da distância social seguramente é um meio eficaz para impedir a confrontação. Diferença entre ricos e pobres na territorialização aparece quando os pobres são removidos e para os ricos medidas céleres de abastecimento hídrico, instalação elétrica, drenagens, reerguimento do território.
A natureza não protagoniza uma hostilização das condições de vida para um segmento da população, é o descuido com a preservação dos bens naturais e a segregação territorial que produz a injustiça socioambiental. Cabe aqui reforçar a noção de que o desastre é um fenômeno que entrelaça acontecimento físico e elaboração cultural com sérias consequências sociais aprofundando a desigualdade. É necessário apontar que a inundação de maio de 2024 em Porto Alegre atingiu alguns bairros de classe média e o colapso das comunicações, serviços de água, eletricidade, transporte atingiu todos os habitantes do município.
O impacto dos desastres aparece também na saúde pública, adoecimento físico e psicossocial de grande parcela da população. É necessário contabilizar que os profissionais que lidam com emergências atingem altos níveis de estresse. Cabe uma preocupação especial ao segmento infantojuvenil, que, entre outras perdas, vê interrompida sua rotina escolar. É preocupante a vulnerabilidade dos portadores de deficiência física e mental e do extrato mais velho da população.
Os ativistas da causa animal se dedicam aos resgates que incluem galinhas, porcos, cavalos, bois, vacas, gatos e cachorros. Apontam para um número incalculável de óbitos que acontecem nesses desastres, que atingem também a fauna e flora silvestre.
Uma perda pouco apontada é a do solo fértil nas áreas rurais, que é levado nas enxurradas exigindo a recuperação para voltar a produzir alimento para a população.
Entre a atuação dos gestores públicos no apoio à reconstrução da vida social, afetada por desastres, entre outros, envolve o processo de aprimoramento e fortalecimento de uma cultura da defesa civil. A Defesa Civil no Brasil está incluída no Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC), que tem atualmente o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad), grupo de apoio a desastres com finalidade de fortalecer os órgãos de defesa civil locais, além da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec), pertencente ao Ministério do Desenvolvimento Regional. É multissetorial e nos três níveis de governo. Pode envolver também as Forças Armadas na sua atuação dependendo da dimensão do evento. Importante trabalhar as relações dos agentes da defesa civil com o grupo afetado, focando a cidadania participativa, no sentido de minimizar conflitos e disputas de poder desigual entre os atores sociais na cidade e no campo.
É fundamental estabelecer o que podemos chamar de um diálogo de saberes, na prevenção e na reconstrução, que inclui o enfrentamento do desastre, unindo a universidade pública com seus vínculos com a sociedade, colaborando com suas pesquisas e estudos científicos. Nesse diálogo ressalto a importância da participação dos povos originários; quilombolas e comunidades tradicionais, habitantes do Pampa; bem como os ribeirinhos tão afetados nas suas atividades de pesca. Assim, unindo a ciência ao conhecimento tradicional. Incluo também os funcionários públicos comprometidos com políticas de bem-estar da população e manutenção da vida de todos os seres.
No encaminhamento final desse texto quero prestar um reconhecimento à atuação do Governo Federal, pois tivemos a presença do Presidente Lula por quatro vezes no Estado, acompanhado de autoridades do Congresso, STF, Ministros, Conab e Secretários na tarefa de tranquilizar e definir providências. Importante a criação da Secretaria Extraordinária da Presidência da República para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, com a finalidade de coordenar as ações e a articulações com Governo Estadual e Municipais. Essa Secretaria ficou ao encargo do Ministro Paulo Pimenta, que compôs a estrutura organizacional com gestores, técnicos e estudiosos competentes e comprometidos com políticas do cuidar como chama Leonardo Boff.
Até 6 de junho o Governo Federal investiu R$ 85,7 bilhões no processo de reconstrução. Resumidamente estão sendo aplicados em ações para auxiliar o governo do estado e as prefeituras dos municípios atingidos, desde reconstrução de estradas, criação de hospitais de campanha, suspensão de pagamentos de dívidas, envio de profissionais, suprimentos e máquinas. As ações de auxílio às pessoas que foram atingidas diretamente e indiretamente pelo desastre, incluíram diversas medidas beneficiárias na área da educação, saúde, habitação, agricultura familiar, empresas, MEIs, autônomos e prestadores de serviços.
Concluindo, ressalto que o atual desastre, que atingiu Porto Alegre e a maioria dos municípios do Rio Grande do Sul teve como um dos resultados mais comoventes a solidariedade que uniu os gaúchos, os brasileiros e até governos e pessoas de outros países. Infelizmente não é possível encontrar essa solidariedade entre os deputados da oposição da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados, pois na Audiência Pública de 11/06/2024, cujo convidado foi o Ministro Paulo Pimenta, não levantaram uma questão sobre as condições de sobrevivência das pessoas atingidas pelo desastre e suas manifestações no Parlamento envergonharam cidadãs e cidadãos brasileiros. Esse comportamento reverbera não só na Comissão, mas também aparece em vários parlamentares na Câmara, no Senado, nos governos e deputados estaduais, bem como em certos prefeitos e vereadores adeptos da prática da politicagem.
Sendo assim, o desafio que se coloca é saber escolher em quem votar, urgente nas eleições de outubro de 2024 que se aproximam, elegendo para a gestão das nossas cidades pessoas capazes e comprometidas com a construção de uma política inspirada na Encíclica do Papa Francisco, Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum, na perspectiva da justiça socioambiental.
* Naia Oliveira é socióloga e ecofeminista.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko