Rio Grande do Sul

Coluna

Essa menina também fui eu

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"Nesses dias, tempo todo vemos manifestações nas ruas e nas redes sociais de histórias de mulheridades abusadas" - Foto: Gris Lab
Talvez por isso sempre me revolto facilmente, por tudo aquilo que não gritei em seu momento

Queria poder escrever sobre o que estamos viVendo. É muito revoltante, como assim? Os homens, mais uma vez, decidindo sobre nossas corpas? Sobre nossas vidas, sobre as vidas das pequenas, das adolescentes.

Vejo um vídeo de uma mulher, sim, uma mulher se prestando a um teatro violento, ela dá um berro como se fosse o feto na hora do aborto. Um feto que, como ouvi uma vez e sem desmerecer, não deixa de ser um conjunto de células. Mas uma menina sendo estuprada, ela já tem corpo formado, tem voz própria. Tem nome. Tem data de aniversário. E a ela, quem a protege?

Essa menina também fui eu. Talvez por isso sempre me revolto facilmente, por tudo aquilo que não gritei em seu momento. Sim. Eu fui mais uma vítima de abuso, dentro da minha própria casa, pelo meu progenitor.

Por isso, quando me dizem que as ruas são perigosas, eu digo que as casas são mais. As casas têm paredes, a rua não, lá a gente pode correr. Quem violenta são os pais, são os tios, são os “amigos” (75% dos estupros/abusos acontecem nos chamados lares de família). Eu converso muito com os moradores de rua e nunca passei, nem perto, do que me aconteceu no meu próprio quarto.

Por isso me revolto tanto e, felizmente, somos muitas, milhares, milhões neste momento gritando nas ruas, denunciando nas redes sociais. Está havendo manifestAções em todo o Brasil de repúdio contra esses políticos escrotos que querem implantar o PL 1904, também conhecido como PL do estupro. Fazendo um trocadilho com o número, parece que estão querendo regredir ao ano de 1904, pois o aborto no Brasil, em casos de estupros, é legal há 80 anos! Eles querem acabar com a possibilidade de escolha, querem que as próximas gerações sejam de meninas humilhadas. Lembrando que a humilhação deixa mais fácil a manipulação.

Quem de nós, que foi abusada, não sentiu culpa, vergonha? E eles? E ELES? Eu devolvo a pergunta. E eles, e o meu chamado pai, homem que a sociedade dizia que devia de me cuidar e proteger, nunca sentiu culpa ou vergonha?

Estamos em um bom momento. Pareceria que não, mas sim. Porque agora nossas gargantas estão estourando e estamos vendo que TODAS temos histórias de abusos para contar. Que estranho, né? TODAS nós temos alguma história para contar, e os homens? Sim o que está na tua casa, na tua cama, será que também não teria que contar, que dizer, que se arrepender, que pedir desculpas?

Por que vocês se dão contas que as matemáticas não fecham?

Se todas nós passamos por algum abuso, significa que não pode ter sido um ou dois homens a violentar, eles são mais, são muitos. A ditadura patriarcal produz homens abusadores.

Insisto, esse é um bom momento porque finalmente estamos falando e contando e gritando e mais ainda, estamos organizando-nos. Estamos organizando a nossa digna raiva – como a chama o Movimento Zapatista − e agora são eles que nem imaginam até onde a gente é capaz de chegar.

Nesses dias, tempo todo vemos manifestações nas ruas e nas redes sociais de histórias de mulheridades abusadas. Uma companheira me contou da importância de ter ido no protesto, de se encontrar com outras no grito, na raiva, na luta. Ela tem uma filha a qual deu a entender que é consequência da violência sofrida aos 15 anos. Eu a ouvi contando e não falei de mim. Às vezes, quando a gente se abre, finalmente, e sai tanta dor, prefiro ficar ouvindo, ela demorou tantos anos a falar! (E eu a escrever).

Em um grupo de WhatsApp que participo, de escritoras, saiu o tema. Novamente, todas têm algo a contar, desde o mais naturalizado como um cara passando a mão na bunda, nos peitos, até estupro. Até estupros reiterados. Até gravidez forçada.

E penso em mim e penso em nós e em nossas meninas, das que eles estão abusando e não posso deixar de vir a gritar minha raiva e minha dor. Então, organizando a raiva e o grito estamos protegendo elas. CUIDADO. Um adulto homem não tem nada a fazer no quarto de uma criança e se é o pai, que por favor, alguma mulher fique de olho nele.

Nós. Nosotras estamos protegendo a essas meninas, a essas adolescentes, a nós-todas.

Quando acontece assim, em um grupo, de começarem a falar, eu raras vezes me pronuncio. Mas hoje eu tive que vir a escrever e denunciar que esse homem que saía todos os dias de casa, de terno e gravata, bem perfumado, de quem eu tinha medo e sentia nojo, com quem eu não estou em contato há 10 anos ... um homem branco, hétero, Cis, desses de “boa família” e bem casado.

Não vou terminar a frase.

Eu não pensava escrever, mas não queria que a nossa coluna dos Diálogos Feministas passasse sem dialogar neste momento tão importante.

* mariam pessah : ARTivista feminiSta, escritora, poeta e tradutora. Autora de Meu último poema, 2023; Em breve tudo se desacomodará, 2022; entre outros. Organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre, desde 2017, e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta. Atualmente também tem uma coluna Conversa invers(A) no Youtube.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko