Rio Grande do Sul

Arte para vida

Coletivo RS Música Urgente promove evento em apoio a trabalhadores do setor

Festival nesta sexta (21), no Theatro São Pedro, será em prol da cadeia produtiva da música impactada pelas cheias

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Cadeia criativa emprega mais de 100 mil pessoas no RS e foi duramente atingida pelas cheias - Foto: Pedro Luiz S. Osório

“Com a vida das pessoas retornando às atividades cotidianas, nós da cultura continuaremos sem condições de exercer as nossas atividades. Não será possível circular com um espetáculo com expectativa de venda de ingressos, sabendo que as pessoas estarão se recuperando de perdas materiais. Ou estarão ajudando alguém próximo que sofreu tais perdas. Precisamos criar uma forma de manter e fomentar a atividade artística com financiamentos que possibilitem o livre acesso da população aos espetáculos, viabilizando a manutenção da classe artística e a fruição da comunidade.”

A afirmação é do músico e instrumentista Pedrinho Figueiredo, integrante do Coletivo RS Música Urgente, movimento que nasceu em maio para mitigar os efeitos da crise climática do RS na cadeia produtiva da música. 

No dia 21 de junho, a partir das 17h, o Coletivo fará um encontro presencial em vários espaços do Theatro São Pedro (Praça Mal. Deodoro, s/n) com mais de 100 profissionais da cadeia produtiva da música, reunindo técnicos, compositores, músicos, cantores e produtores. Todas as atividades no dia serão gratuitas e o público poderá fazer contribuições para o coletivo através do Pix [email protected], em nome de Caminha Produções Ltda.  

“Queremos dar visibilidade ao nosso coletivo e mostrar à sociedade que, assim como na pandemia, a arte sempre cumpre o papel de manter a sanidade, visitando o imaginário e emocionando”, afirma Pedrinho. 

Como milhares de gaúchos, os profissionais ligados a cadeia da música, além de shows cancelados, foram atingidos direta e indiretamente. De acordo com dados preliminares do Coletivo, dos 1.357 questionários preenchidos, 82% responderam exercer apenas a atividade musical e 99% foram afetados pelas enchentes. 

"É difícil estimar o número de pessoas com precisão. O que sabemos é que a cadeia criativa emprega mais de 100 mil pessoas no Rio Grande do Sul e que temos pouquíssimos eventos acontecendo. Se considerarmos a pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, a Cultura movimenta 4,1% do PIB do RS", afirma. Lembra que um estudo do IBGE mostra que existem aproximadamente 340 mil profissionais atuando com cultura no estado.

O problema, aponta o músico, é que sem tem um enorme número de atividades que estão dentro de outras estruturas e não há registro específico da música, de quantos profissionais e qual a circulação de dinheiro nestas relações. “Isto dificulta o levantamento do prejuízo específico para os profissionais da música provocado por esta catástrofe climática”, avalia.

“Do ponto de vista do indivíduo, de cada profissional da área da música que sobrevive do seu compromisso artístico, é aterrador se deparar com a destruição de teatros e casas de espetáculo, com a perda de instrumentos, estúdios e escolas. Alguns ainda, além dessas perdas, tiveram suas casas tomadas pela lama, suas partituras, seus registros. Não bastasse esse prejuízo material, enfrentam também uma série de cancelamento de apresentações e eventos, impossibilidade de viajar para cumprir seus compromissos e a dificuldade de se enxergar nos programas de auxílio que estão sendo disponibilizados”, expõe Pedrinho.

“O impacto direto nas nossas vidas é um empobrecimento”

O professor de música, músico e ex-proprietário de estúdio Lucas Kinoshita possuía, juntamente com o amigo Clauber Scholles, músico e técnico de som, um estúdio no bairro Harmonia, em Canoas, ao lado da Mathias Velho, onde também ficava a casa de Cláudio. 

“Até o dia 13 de maio, eu tinha um estúdio e um monte de instrumentos. Hoje não tenho mais, e praticamente nenhum instrumento daqueles que tinha. A água subiu 2 metros e 30 cm. O que faz com que não sobre praticamente nada. Na casa de Clauber foi afetado o armário, roupas, documentos, fotos, geladeira, fogão. O estúdio a gente não tem mais. A casa está inabitável, é uma casa alugada que a proprietária já disse que não vai investir, não tem nenhuma chance de dar continuidade”, conta Lucas.


"Tem alguns eletrônicos, alguns se recuperam, outros não" / Foto: Arquivo Pessoal

O músico lembra que quando tudo começou, o prefeito de Canoas, no dia 2 de maio, veio a público dizer que estava tudo seguro, que não tinha chance de romper o dique. “No dia 3 a gente tem a notícia de que a gente teria que evacuar nosso bairro. E depois de evacuar ficamos sabendo que ele rompeu. Pensamos que ia entrar 30 cm, 50 cm de água, mas tivemos a casa inundada. Simplesmente do nada, do dia pra noite não tínhamos mais lugar pra morar, no caso do Claluber, e eu para trabalhar.” 

Clauber e Lucas investiram R$ 30 mil para transformar a casa em estúdio e mais R$ 10 mil em isolamento e tratamento acústico, formando por espumas acústicas, painéis, tratamento com gesso e porta de madeira. “Tudo isso é muito perecível à água, tudo inchou, contaminou e foi jogado fora. Nada disso se recupera. Tem alguns eletrônicos que se recupera, outros não, como pedais de guitarra, de baixo, violões. Alguns instrumentos estão em lutieres para ver se recupera. Calculamos um prejuízo em volta de R$ 100 mil, mais todo o dinheiro que deixamos de ganhar com o estúdio durante esse período.”

Sensação de desamparo 

"O impacto direto nas nossas vidas, é um empobrecimento. Muito rápido, drástico, fora que é um trauma nas nossas vidas”, prossegue Lucas. De acordo com ele, a sensação que fica é de desproteção pelo poder público. A ajuda que vem é de pessoas físicas. “Está super difícil a gente tirar uma linha de financiamento, crédito, mesmo sendo MEI, sendo CNPJ. A gente se sente desamparado. É uma dor, um luto de muitas coisas ao mesmo tempo.”

Para ele não é só o valor material do instrumento. “Eu tenho coleção de instrumentos de percussão de mais de 22 anos de carreira que foi quase que 100% afetado. Cada instrumento é uma história, é um show que tu fez, que tu aprendeu a tocar. A gente pensou em desistir várias vezes, mas, devido a força dessas pessoas, a gente ainda tem força para seguir, mas é muito duro”, afirma.


"A água subiu 2 metros e 30 cm. O que faz com que não sobre praticamente nada" / Foto: Arquivo Pessoal

“Viver, é isso que eu quero. Enquanto forças eu tiver eu vou cantar”

Na Vila Farrapos, ao lado da Arena do Grêmio, mora há 35 anos a dona Luíza Hellena. Natural de São Lourenço do Sul, ainda muito jovem mudou-se para Pelotas, onde cantava em rádio, e, no início da vida adulta, para Porto Alegre, para tentar a vida como cantora.

Prestes a completar 80 anos, ela conta que é a primeira vez que viveu uma situação como esta. Como muitos, acreditava que a água não subiria tanto. O músico e professor de músico Paulinho Parada, que acompanha a carreira de Luísa e a tem ajudado, conta que ela precisou ser resgatada de helicóptero, porque nem os Bombeiros, nem o caminhão do Exército conseguiram resgatá-la por terra ou por água. “Na casa dela ficaram alguns pets, alguns ela reencontrou, outros morreram”, lamenta Parada.

Dona Luísa está fora de casa. Diabética, ela faz hemodiálise e ainda está abalada. “Tinha muita água. Uma água muito suja. Já estava praticamente na garganta. Como eu faço hemodiálise, tenho pericárdio, não podia sujar com aquela água contaminada. Ainda não voltei para casa, minha sobrinha e a minha filha foram lá, tá muito estragado. Estou tentando arrumar aos poucos. Perdi tudo, tudo, literalmente”, conta.

 
Paulinho e Luíza afirmam que algumas agendas foram suspensas. “Eu não achei de bom tom seguir as nossas agendas musicais agora porque ela está recém retomando a vida. Ela é vaidosa, não se sente à vontade para poder se apresentar cantando. Ela diz: 'meu filho, estou sem roupa para fazer isso, minhas roupas todas ficaram lá'. Ela está fragilizada pra voltar a se apresentar agora, embora esteja se preparando pra que aconteça em breve”, comenta Parada.

Ao ouvir Luíza falar da sua vida e sua relação com a música, é inevitável não lembrar da música Mulher do Fim do Mundo, da Elza Soares. Conforme ela afirma, a sua história é plena e marcada por resistência e resiliência. “Na minha época, uma mulher cantora era uma mulher mal falada. Eu tinha muita resistência da minha mãe de cantar e foi uma coisa que eu, desde criança, desde quatro anos, eu sonhei com a música. Eu vivi toda uma vida de música. Agora o que eu quero é viver, é isso que eu quero. Enquanto forças eu tiver eu vou cantar. Foi Deus que me deu esse dom, eu amo cantar.”

"É muito triste isso que aconteceu com todos nós", prossegue Dona Luísa ao comentar que os músicos que perderam o seu material de trabalho. “Eu perdi todos os meus cadernos, meus alfarábios, a minha história, fotos, tudo. A gente tem que tirar disso tudo uma lição: somos um gãozinho de areia. Se vier muita água, ela leva mesmo. A gente tem que procurar viver dignamente, fazer o que gosta”, conclui. 

Ecoansiedade

“Fui atingido indiretamente. Como a todos a enchente me afetou psicologicamente. Estou vivendo aquilo que chamam de ecoansiedade”, afirma Parada. 

Mudanças climáticas como as que atingiram o Rio Grande do Sul têm aflorado diversas emoções, como por exemplo, pânico com o barulho da chuva. De acordo com especialistas essas mudanças também podem causar perturbações psicológicas nas pessoas, e são descritas como ansiedade climática ou ecoansiedade.

Autônomo, Parada está terminado o doutorado em música. Ele destaca também a incerteza financeira. “Esse mês eu não recebi tudo que eu deveria. Algumas clínicas que eu trabalho como musicoterapeuta fecharam no momento da enchente e agora os lucros, os ganhos que eu dependia, eu vou ter que botar lá pra frente. Eu não trabalho com outra coisa além de música, eu fui atingido nesse sentido. Mas eu me sinto ainda privilegiado por ter uma vida acadêmica, por ter graduação em música, por ter mestrado em música na Ufrgs”, pontua. 


Paulinho e Luiza / Foto: Gui Beck

Conforme ressalta o professor, a grande questão é quem não tem outra fonte de renda. “Quem é artista e perdeu tudo como a dona Luíza, que também sofre de invisibilidade social. A dona Luísa fala pra mim, 'poxa, eu sou só mais uma mulher negra que foi vítima de violência'. Ela dizia que tomava surras homéricas por cantar na noite na época em que ela era jovem.”

Para o músico, a maior catástrofe climática do estado é reflexo do descaso público. “Houve o problema de manutenção das bombas, falta de investimento em infraestrutura e prevenção, principalmente”, pontua. 

Na sua avaliação, a classe artística está sofrendo mais nesse momento com as enchentes do que na época da pandemia. "A questão agora, além da saúde, das pessoas que perderam tudo, das pessoas que estão doentes por causa das enchentes, é principalmente econômica e que afeta a qualidade emocional do nosso estado, dos nossos artistas”. Ao mesmo tempo, prossegue Paulinho, nestes momentos, permeado de dor, raiva, frustração e angústia, a arte pode transformá-las em algo produtivo. 

“A arte é fundamental nesses momentos também para dar um respiro, para dar um novo sentido. Para a gente também liberar essas emoções todas através da música. É importante para a gente conseguir seguir lutando e reestruturando enquanto isso”, comenta a musicista, compositora, instrumentista, Clarissa Ferreira. 

Mãos à arte

Durante a catástrofe, vários artistas partiram para a linha de frente, alguns trabalhando nos resgates, na busca e entrega de doações e nos abrigos. Outros, como pontua Pedrinho, reagindo à total abstinência da arte que a catástrofe nos impôs. “Foram tocar nos abrigos, compartilhar a sua música impregnada de toda a emoção que esse momento, assustador e delicado provoca.”

Entre as pessoas que esteviveram na linha da frente, apoiando no deslocamento de doações, trabalhando na triagem das doações e tocando em abrigos está Clarissa. “Foi bastante tenso, triste acompanhar. Mas também foi desde o início de muito trabalho, tentando ajudar a minha rede. Eu não tive a minha casa afetada, mas tive trabalhos afetados. Sou da área da música, tive várias agendas canceladas, algumas mantidas que foram fora do estado”, conta.

Natural de Bagé, a musicista que reside em Porto Alegre pontua que a catástrofe criou um novo paradigma de modo de viver, agir, de pensar em reestruturar o estado. Integrante e apoiadora do Coletivo RS Música Urgente, ela tem nas últimas semanas se dedicado no apoio aos colegas da classe musical. 

“O coletivo se reuniu ainda nas primeiras semanas de maio. E logo no início reuniu mais de mil profissionais da música que têm pensado em ações para reestruturar todo o ecossistema, não só dos músicos, mas também dos produtores, dos donos de estúdio, das casas de show. Tem se organizado vários grupos de trabalho pensando em ações para realizar, tanto de diálogo com o poder público, sociedade civil, agentes internacionais.”

O RS Música surgiu de uma iniciativa do músico Carlos Badia. A mobilização começou no dia 10 de maio, quando ele iniciou contato com uma série de profissionais da área. Buscou técnicos, intérpretes, instrumentistas, comerciantes de instrumentos, pessoal que trabalha com produção, divulgação e outros setores ligados à música. Em apenas 6 horas, superlotou um grupo de WhatsApp, com 1.025 integrantes. 

“Uma euforia reunindo esperança, ansiedade, necessidade e a bruta constatação de que todos nessa imensa lista comungavam da mesma certeza: a música tinha parado. Ao longo desta semana compromissos que envolviam deslocamento pelas estradas ou aeroporto foram sendo desmarcados, na sua maioria, e alguns transferidos para datas mais adiante, com alguma insegurança. Do planejamento de uma agenda de trabalho para o mês de maio, não restou nada”, conta Pedrinho.

Paralelamente, continua o músico, a escassez e a falta de condições materiais perdurarão por mais tempo, o que motivou a criação de grupos de trabalho traçando estratégias para elaboração de projetos, interlocução política, estudo de legislação e busca de recursos que possam auxiliar a classe. “Inclusive, temos pessoas concentradas na comunicação e divulgação da situação na qual nos encontramos”, diz.

Para Lucas Kinoshita a educação musical é muito falha no país. “No sentido de que a nossa arte, a nosso fazer é tido como não essencial. A primeira coisa que cancela são shows, gravações, coisas ligadas à nossa área. Começa a retomar as coisas tidas como essencial e as nossas atividades musicais ainda não retornaram. Em muitos dos lugares, isso é importante dizer, que atuávamos estão fechados porque foram atingidos também, direta ou indiretamente, pelas enchentes.”

Em março deste ano o Ministério da Cultura (MinC) anunciou que investirá, até 2027, R$ 952 milhões no Rio Grande do Sul. De acordo com a pasta, é o maior investimento cultural da história do estado. Os recursos serão destinados ao apoio e desenvolvimento de atividades artísticas e culturais das economias criativa e solidária, povos originários, comunidades quilombolas e nos programas da Política Nacional Cultura Viva e Centros de Artes e Esportes Unificados (CEUs) da Cultura. 


Edição: Marcelo Ferreira