Mais de 100 famílias tiveram de deixar a ocupação Sarah Domingues, localizada no antigo prédio da Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luis Roessler (Fepam), no centro histórico de Porto Alegre. Organizada pelo Movimento de Lutas, nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), a desocupação ocorreu após intervenção da Brigada Militar do Rio Grande do Sul (BM/RS). Durante a ação foram registrados episódios de agressão por conta dos agentes policiais, relatam pessoas que estavam no local.
Em nota, a Brigada Militar afirma que foi acionada para intermediar na retirada de ocupantes de um prédio público estadual, localizado na Av. Júlio de Castilhos, em razão do perigo à segurança das pessoas na edificação, que já havia sido interditada por apresentar risco de queda de marquises. Por conta da chuva que chegou ao estado, as famílias se abrigaram embaixo da mesma marquise.
De acordo com o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), a ocupação era composta por famílias de várias localidades afetadas pelas inundações no Rio Grande do Sul, sobretudo da zona Norte de Porto Alegre, de Canoas e Eldorado do Sul. Essa foi a quarta ocupação de imóveis na Capital, desde as enchentes que tomaram conta do estado, em 4 de maio deste ano.
A BM é a polícia militar gaúcha, para cumprimento de reintegração de posse por parte do governo de Eduardo Leite (PSDB). A brigada fez um cordão de isolamento, impedindo o acesso ao prédio.
Ainda na nota enviada à imprensa, a Brigada disse que foi realizada após negociação com os ocupantes, mediante identificação. Os ocupantes que se negaram a se identificar optaram por serem conduzidos à 2ª DPPA para assinarem termo circunstanciado para liberação. Foi oferecido a todas as famílias encaminhamento para abrigos organizados com estrutura adequada e assistência social.
O MLB ressalta que ocupantes foram levados a abrigos próprios, do movimento ou de entidades parceiras, em ônibus organizados pelo próprio movimento.
De acordo com reportagem do Matinal, o despejo ocorreu sem decisão judicial apresentada e sem permissão de acesso à Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE). “Depois da desocupação física do prédio, foi permitido à DPE que ingressasse no edifício. Conversamos com o comando da operação, e a orientação da BM era identificar todas as pessoas, lavrar um termo circunstanciado – o que se faz quando o delito em tese seria de menor potencial ofensivo – por esbulho possessório”, relatou o defensor público João Otávio Carmona Paz à reportagem.
Guilherme Brasil, um dos coordenadores nacionais do movimento, foi detido durante a ação policial.
Sem possibilidade de mediação
O Movimento reforça que a ocupação tinha sido feita por aproximadamente 100 famílias que estão desabrigadas por conta dos alagamentos. “As famílias foram desabrigadas pela segunda vez – primeiro pela inundação, agora pelo governo do estado.” O prédio de 13 andares está abandonado há mais de 10 anos.
Lideranças afirmam que não havia mandato de reintegração de posse e que os policias entraram no prédio com violência, usando spray de pimenta e colocando em risco crianças e adultos.
A vereadora Biga Pereira (PCdoB) conta que logo que ficou sabendo da intervenção da brigada foi até o local. De acordo com a parlamentar, ao chegar se apresentou como vereadora, Procuradora da Mulher e integrante da Comissão de Direitos Humanos e queria fazer a mediação dessa situação para que houvesse dignidade às pessoas.
“No entanto, nós fomos agredidas, eu e a minha assessora Thais (a Thaís Alves, Secretária de Comunicação Nacional da JPL e assessora parlamentar), fomos agredidas fisicamente. Nós já registramos o boletim de ocorrência, fizemos o exame de corpo delito e vamos representar contra os dois brigadianos que nos agrediram fisicamente. Estamos com muita indignação dessa situação. Sabemos que a nossa cidade foi tomada pela especulação imobiliária e como o povo que não tem moradia é tratado”, relata.
Biga reforça que não havia nenhuma ordem de despejo oficial e que houve excesso por parte da força policial. “Simplesmente uma ação truculenta, violenta da Brigada Militar, da tropa de choque que chegaram ali e desocuparam. Muitas mulheres, muitas crianças, cerca de 200 pessoas estavam dentro do prédio, foram jogadas na rua, na chuva.”
Os manifestantes detidos foram liberados por volta das cinco da tarde. Na saída o coordenador do movimento Guilherme Brasil ressaltou que "a Policia e o governo tenta mostrar que o movimento social, que o que a gente faz é errado. Tenta amedrontar a gente, tenta fazer com que a gente fique de cabeça baixa. É errado fazer reunião, é errado juntar famílias que perderam a sua casa pela enchente? É errado organizar uma luta por moradia pra que as pessoas morem com dignidade”, questiona.
De acordo com o balanço mais recente da Defesa Civil gaúcha, atualizado na tarde de sexta-feira (14), existem 10.793 desabrigadas (com a moradia destruída) e 422.753 pessoas desalojados no estado
Segundo a plataforma Mapa de Imóveis desenvolvida pelo governo do estado, o Executivo estadual possui ao todo 12.428 imóveis, destes 3.094 estão sem destinação e 96 à venda.
De acordo com o Observatório das Metrópoles e o Censo de 2022, de 686.414 domicílios particulares permanentes em 2022 na capital gaúcha, 558.151 estavam ocupados, 101.013 vagos e 27.250 eram de uso ocasional.
Dados mostram ainda incidência maior nos imóveis vazios no centro da cidade, espaço geralmente mais valorizado em comparação com a periferia, número que aumentou no intervalo entre os Censos de 2010 e o levantamento mais recente do IBGE, datado de 2022. Dos atuais 101.013 imóveis vagos, o número mais que dobrou, uma vez que eram 48.934 em 2010.
“Nós temos identificado esta possibilidade das pessoas serem abrigadas nos prédios públicos, sejam eles municipais, estaduais ou federal. E mostrando à sociedade que existe muito apartamento, muita casa, sem ninguém habitando e temos tantas pessoas precisando habitar”, destaca a vereadora Biga.
O MLB deu à ocupação o nome de Sarah Domingues, estudante de Arquitetura e Urbanismo, que foi coordenadora do Movimento Correnteza, diretora da União Nacional dos Estudantes (UNE), do Diretório Central dos Estudantes da Ufrgs, do Diretório Acadêmico da Arquitetura e militante da União da Juventude Rebelião. Ela foi assassinada em janeiro deste ano quando fazia seu trabalho de conclusão de curso sobre as enchentes na Ilha das Flores.
Em nota, o movimento disse que “só a luta muda a vida, só com o povo organizado vamos conseguir garantir moradia e uma vida digna para as pessoas atingidas pela enchente! Enquanto morar dignamente for um privilégio, ocupar é um direito”.
Também em nota, a bancada do PCdoB na Câmara Municipal de Porto Alegre, presta solidariedade tanto a vereadora, a sua assessora e os movimentos de luta por moradia e "a todas as famílias que passaram o domingo debaixo de chuva, sendo coagidos por aqueles que deveriam protegê-los".
Veja a nota completa neste link.
Parlamentares têm manifestado apoio e indignação com o ocorrido, como o vereador Pedro Ruas (PSOL), Laura Sito (PT), entre outros.
Presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, da Assembleia Legislativa, Laura Sito encaminhou um ofício, ainda neste domingo, ao Secretário de Habitação e Regularização Fundiária do RS, Carlos Gomes, solicitando uma reunião de mediação para tratar da situação envolvendo a Ocupação Sarah Domingues.
"Encontram-se desalojadas diversas famílias a partir da forma abrupta com que o governo do estado procedeu à reintegração de posse no local, com uso da Brigada Militar, em um domingo chuvoso, sem Conselho Tutelar ou acompanhamento efetivo da assistência social, deixando os ocupantes, em grande parte mulheres e crianças, absolutamente desamparados em seus direitos humanos mais elementares, além de terem sofrido abordagens vexatórias", destaca o oficio.
Ainda de acordo com a parlamentar, as pessoas que ali estavam seguem sem a garantia do Constitucional direito à moradia. "Razão pela qual solicitamos, respeitosamente, essa reunião com Vossa Excelência, contando com a presença de representação dos ocupantes atingidos pela medida possessória do ente estadual, a fim de que possamos dar o melhor encaminhamento para os demandantes, assegurando, assim, sua dignidade como cidadãos", finaliza.
* Com informações do Matinal e Sul21
Edição: Katia Marko