Rio Grande do Sul

ARTIGO

Essa civilização tem mesmo que acabar

'Seguimos lutando por uma nova sociedade, sem classes sociais, não sei se temos mais tanto tempo quanto imaginávamos'

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"O povo pobre, que vive na periferia e nas áreas não 'nobres' da cidade sempre sofreu com as chuvas" - Foto: Alass Derivas / @derivajornalismo

Se fosse um poema seria assim:

querem prender a mulher estuprada,

desocupar o prédio abandonado por anos pra deixar vazio de novo,

Destruindo a mãe de todas as mães,

Pra depois pousar de salvadores,

E seguir enchendo seus bolsos e continuar montados nas costas dos pobres.

Estamos vivendo muitas coisas aqui pros lados do Sul deste mundo nestes últimos tempos.

Esses últimos tempos, podem ser mesmo tudo na abrangência das possíveis interpretações.

Desde crianças aprendemos a ser domesticados na obediência e no comportamento, como membros de uma sociedade civilizada. Porém o que temos experenciado, é esta mesma civilização, em crise e em risco de extinção.

Chegamos a limites extremos, não só pelos maus tratos a nossa mãe natureza, a mãe de todas as mães, mas também a esta sociedade de classes que expõe toda a miséria e injustiça desse modelo de produzir e significar a vida. E sim estamos acabando com a vida de todos os seres deste planeta, em especial os que mais concentram dinheiro, poder e conhecimento.

A grande mãe natureza está mostrando o quanto está doente, desequilibrada. Estas causas e consequências que há muito vêm sendo denunciadas, alertadas pelos que defendem o bem comum e a justiça social. E que agora não podem mais ser negadas, por mais que tentem deturpar a realidade, através de “realidades paralelas” em grupos de tik tok, WhatsApp e outros.

Estas enchentes ou inundações, (ou seja lá o nome técnico que queiram dar a este momento que vivemos aqui no estado do Rio Grande do Sul), demonstram algumas coisas que me fez refletir.

Uma delas é como o racismo ambiental se evidenciou com esta crise. O povo pobre, que vive na periferia e nas áreas não “nobres” da cidade sempre sofreu com as chuvas, há muito tempo. Porém foi quando a água começou a bater na bunda da classe média branca de Porto Alegre (cito esta experiência, pois moro aqui), que se instaurou o “pânico”, que se criticou os desgovernos, a falta de saneamento básico e o sucateamento do serviço público. Foi quando a água começou a subir em bairros que antes nunca tinham sido alagados, que aumentou a pressão por soluções para a contenção das consequências, causadas por esta aliança destruidora da vida entre governos e grandes corporações econômicas. Até este momento os bairros mais pobres seguem com suas ruas cheias de entulhos, lixo e todas as adversidades que daí se originam.

Vimos também na fase dos salvamentos, muita gente nessa frente, até mesmo quem nega a origem do problema e culpa a mãe natureza. E outros, que se dizem de esquerda, fugirem da cidade, ou ficarem só postando na bolha da rede social. A política é uma prática.

Eis que as soluções colocadas pelos dirigentes dessa civilização são campos de concentração através das cidades provisórias, o enriquecimento dos mais ricos de sempre, a salvação das grandes corporações que detém a concessão de serviços públicos e são seguradas. Uma falta de efetividade e concretude na realidade, nas soluções que o povo através de suas organizações tem proposto.

E assim vemos, coisas inexplicáveis, intragáveis, entristecedoras e revoltantes. Meus filhos não conseguem entender, quando digo que o Estado prefere defender a propriedade privada ao invés de ajudar as pessoas a ter o básico e sagrado direito à moradia, ao trabalho, a educação, a cultura e o lazer e a uma vida digna.

Como pode, uma civilização querer punir uma mulher estuprada a prisão? Ela deve ter o direito de decidir sobre seu ventre em qualquer ocasião. Uma civilização que vê um genocídio acontecendo e segue acompanhando sem nenhuma medida contra a máquina sionista de Israel.

Enfim, seguimos lutando por uma nova sociedade, sem classes sociais, não sei se temos mais tanto tempo quanto imaginávamos ter. Mas uma coisa é certa esta civilização precisa mesmo acabar.

* Fagner Jandrey é catador e militante do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR).

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


Edição: Katia Marko