Mais de 40 dias depois do início das enchentes, as ilhas do Guaíba estão ainda no meio de lama, da areia suja, do esgoto e enfrentam falta de luz, água potável, transporte. Desgraça por todos os lados.
A população se queixa de todos os governos que vê pela frente – municipal, regional, federal – sem fazer distinção de quem é o responsável direto por toda a falta de dignidade que afetou a população. Todos estão esgotados, vivendo nas sucursais do inferno e lamentando o momento histórico negativo que vivem. “É a maior tragédia na vida das pessoas que aqui residem e resistem”, disse o pescador Diego Vasconcelos em entrevista para o Jornal Nacional.
As 16 ilhas do Guaíba possuem cerca de 44 km² e tem perto de 20 mil habitantes – ou 8 mil famílias, segundo o último Censo do IBGE, de 2022. Das 16 ilhas, 14 pertencem a Porto Alegre. A ilha das Garças é de Canoas e a Ilha das Figueiras está sob o controle de Eldorado do Sul. Os rios que formam o Delta do Guaíba são o Jacuí (84,6%), dos Sinos (7,5%), Caí (5,2%) e Gravataí (2,7%). Águas dos arroios, situados às suas margens, também caem no Guaíba, formando assim uma área de drenagem de 1/3 do território do Rio Grande do Sul.
O Guaíba contorna Porto Alegre numa extensão de 70 km de orla fluvial e é a expressão geográfica mais marcante da Capital. Toda esta água que chega no Guaíba, mais as chuvas incessantes, torrenciais, sem piedade alguma, no mês de maio, deixaram a cidade. As consequências persistem. A reconstrução vai demorar meses e, talvez, anos.
O cenário desolador que persiste deixa Porto Alegre ainda confusa, depressiva e desnorteada. Sem metrô, sem aeroporto, sem coleta de lixo regular e dezenas de outras coisas imprescindíveis, a população, de uma maneira geral, está se encaminhando para uma normalidade relativa e precária. Não é fácil suportar o sofrimento que causam cheias históricas. Foram duas cheias superiores à registrada em 1941 em menos de dez dias, do final de abril ao início de maio, segundo a Metsul.
Porto Alegre sofreu, os bairros de Humaitá, Anchieta, São Geraldo, Sarandi, Lami e outros continuam sofrendo horrores com perdas gigantescas, mas nas ilhas habitadas por humanos parece que o sofrimento é muito maior. Sabemos que não se pode medir o nível do sofrimento de quem quer que seja, mas há de se olhar com mais humanidade para os moradores das ilhas.
Além de ser um paraíso ecológico, com diversidade de espécies animais e vegetais, as ilhas guardam parte da história da capital gaúcha. Mas a atual história por causa das enchentes é, sem dúvida, a mais dramática possível.
Há famílias vivendo em barcos há mais de 40 dias, não sabendo o que é terra firme. As que permitem acesso por terra, como a dos Marinheiros, a das Flores, e a Pintada, são as mais conhecidas. Algumas se mantêm praticamente inexploradas, como a Ilha do Chico Inglês, onde antigamente vivia um homem chamado Francisco e que fazia negócios com os ingleses. A área hoje é uma propriedade particular. Tem também a Ilha do Pavão, do Grêmio Náutico União, exclusiva para sócios ou um ou outro convidado, além de um grupo de famílias de recicladores de resíduos.
Há a conhecida Ilha da Pólvora, onde funcionava um depósito de munições. As casas foram reformadas entre 1998 e 2001 para que se tornassem um ponto turístico e cultural. A iniciativa não foi adiante por falta de verbas e vontade política. Ali mora um guardião solitário, Orvalino Mendonça Mallet, há 53 anos. Trabalhou como carregador de munição e depois virou guarda do local. Seu objetivo: impedir o corte ilegal de árvores.
Na Ilha da Pintada, com seus 8,5 mil habitantes seriamente afetados, existe a figura popular, conhecida e pau para toda obra, o padre católico Rudimar Dal’Asta, da Capela Nossa Senhora da Boa Viagem. Ele está ajudando, sem parar, as famílias atingidas pelas chuvas. Não cansa. Distribui roupas, alimentos, conselhos e muita fé, além de abrigar as pessoas que continuam sem casa, já que perderam tudo. Ele está por lá desde 2015, enfrentando inundações todo o ano, em maior ou menor gravidade.
Em entrevista para a Rádio Gaúcha, o religioso disse que morou 21 dias na parte alta da ponte na BR-290, auxiliando quem ali estava, dando estímulo, alimentos e roupas doadas. “Todo ano, quando vem a enchente, as famílias perdem seus bens materiais. Ainda bem que preservam suas vidas. Agora, dói. Porque a gente sabe as condições das famílias das ilhas, as necessidades que elas têm, perder algo tão precioso para elas dói demais pra gente”, afirma. “Sabe-se lá quando poderão recuperar tudo já que são famílias humildes, pobres.”
Nas ilhas moram pescadores, trabalhadores de salário mínimo, catadores e catadoras, enfim pessoas muito simples, sem grandes disponibilidades financeiras. Estão na base da pirâmide social. A grande maioria não quer sair de lá. Ali está a história, a memória e a vida possível para quase todas as pessoas. Saem em caso de emergência, mas acabam voltando. A cidade não motiva. Não querem abandonar o que construíram a duras penas. O mundo que elas veem só inclui a Capital, ao longe. Uma vista amorfa, sem vida. O seu chão está ali, nas ilhas.
Áreas sempre deixadas de lado para socorrer ou as últimas a receber apoio, os problemas só são resolvidos com longa espera, paciência e com compreensiva indignação. Atendimento médico permanente é difícil. A maioria das pessoas precisa viajar para Porto Alegre. As crianças normalmente recebem educação escolar, mas a precariedade é enorme, as novidades não chegam. Até os grupos de resgate dos bombeiros, que têm sua base no Cais Mauá, não puderam dar atenção nesta enchente. Tinham outras ‘prioridades’.
Agora, com a chuva que caí neste início de semana, com altos índices de milimetragem, o pânico volta a se instalar. Há temor de tudo que estão fazendo vá ser levado novamente pelas águas. “Nem terminamos e já estamos com nova ameaça”, diz o padre Romualdo. A água potável e a energia, tão vitais nesta hora, vão continuar servindo a população em conta gotas. E muitos moradores vão continuar dormindo em colchões sujos, cercados por lixo e lodo.
Confira mais imagens do fotógrafo do Brasil de Fato Jorge Leão, realizadas neste sábado (15)
Edição: Katia Marko