Rio Grande do Sul

AS ILHAS DO GUAÍBA

Pobreza, tristeza e descaso são rotina na vida dos moradores das ilhas

Eles são sempre os últimos a receber socorro das autoridades e clamam por ajuda urgente

Brasil de Fato | Porto Alegre |
A grande maioria não quer sair de lá. Ali está a história, a memória e a vida possível para quase todas as pessoas - Foto: Jorge Leão

Mais de 40 dias depois do início das enchentes, as ilhas do Guaíba estão ainda no meio de lama, da areia suja, do esgoto e enfrentam falta de luz, água potável, transporte. Desgraça por todos os lados.

A população se queixa de todos os governos que vê pela frente – municipal, regional, federal – sem fazer distinção de quem é o responsável direto por toda a falta de dignidade que afetou a população. Todos estão esgotados, vivendo nas sucursais do inferno e lamentando o momento histórico negativo que vivem. “É a maior tragédia na vida das pessoas que aqui residem e resistem”, disse o pescador Diego Vasconcelos em entrevista para o Jornal Nacional.


Moradores não querem abandonar o que construíram a duras penas / Foto: Jorge Leão

As 16 ilhas do Guaíba possuem cerca de 44 km² e tem perto de 20 mil habitantes – ou 8 mil famílias, segundo o último Censo do IBGE, de 2022. Das 16 ilhas, 14 pertencem a Porto Alegre. A ilha das Garças é de Canoas e a Ilha das Figueiras está sob o controle de Eldorado do Sul. Os rios que formam o Delta do Guaíba são o Jacuí (84,6%), dos Sinos (7,5%), Caí (5,2%) e Gravataí (2,7%). Águas dos arroios, situados às suas margens, também caem no Guaíba, formando assim uma área de drenagem de 1/3 do território do Rio Grande do Sul.

O Guaíba contorna Porto Alegre numa extensão de 70 km de orla fluvial e é a expressão geográfica mais marcante da Capital. Toda esta água que chega no Guaíba, mais as chuvas incessantes, torrenciais, sem piedade alguma, no mês de maio, deixaram a cidade. As consequências persistem. A reconstrução vai demorar meses e, talvez, anos.

O cenário desolador que persiste deixa Porto Alegre ainda confusa, depressiva e desnorteada. Sem metrô, sem aeroporto, sem coleta de lixo regular e dezenas de outras coisas imprescindíveis, a população, de uma maneira geral, está se encaminhando para uma normalidade relativa e precária. Não é fácil suportar o sofrimento que causam cheias históricas. Foram duas cheias superiores à registrada em 1941 em menos de dez dias, do final de abril ao início de maio, segundo a Metsul.

Porto Alegre sofreu, os bairros de Humaitá, Anchieta, São Geraldo, Sarandi, Lami e outros continuam sofrendo horrores com perdas gigantescas, mas nas ilhas habitadas por humanos parece que o sofrimento é muito maior. Sabemos que não se pode medir o nível do sofrimento de quem quer que seja, mas há de se olhar com mais humanidade para os moradores das ilhas.


Nas ilhas moram pescadores, trabalhadores de salário mínimo, catadores e catadoras, pessoas muito simples / Foto: Jorge Leão

Além de ser um paraíso ecológico, com diversidade de espécies animais e vegetais, as ilhas guardam parte da história da capital gaúcha. Mas a atual história por causa das enchentes é, sem dúvida, a mais dramática possível.

Há famílias vivendo em barcos há mais de 40 dias, não sabendo o que é terra firme. As que permitem acesso por terra, como a dos Marinheiros, a das Flores, e a Pintada, são as mais conhecidas. Algumas se mantêm praticamente inexploradas, como a Ilha do Chico Inglês, onde antigamente vivia um homem chamado Francisco e que fazia negócios com os ingleses. A área hoje é uma propriedade particular. Tem também a Ilha do Pavão, do Grêmio Náutico União, exclusiva para sócios ou um ou outro convidado, além de um grupo de famílias de recicladores de resíduos.

Há a conhecida Ilha da Pólvora, onde funcionava um depósito de munições. As casas foram reformadas entre 1998 e 2001 para que se tornassem um ponto turístico e cultural. A iniciativa não foi adiante por falta de verbas e vontade política. Ali mora um guardião solitário, Orvalino Mendonça Mallet, há 53 anos. Trabalhou como carregador de munição e depois virou guarda do local. Seu objetivo: impedir o corte ilegal de árvores.


O padre católico Rudimar Dal’Asta, da Capela Nossa Senhora da Boa Viagem, está ajudando, sem parar, as famílias atingidas pelas chuvas / Foto: Jorge Leão

Na Ilha da Pintada, com seus 8,5 mil habitantes seriamente afetados, existe a figura popular, conhecida e pau para toda obra, o padre católico Rudimar Dal’Asta, da Capela Nossa Senhora da Boa Viagem. Ele está ajudando, sem parar, as famílias atingidas pelas chuvas. Não cansa. Distribui roupas, alimentos, conselhos e muita fé, além de abrigar as pessoas que continuam sem casa, já que perderam tudo. Ele está por lá desde 2015, enfrentando inundações todo o ano, em maior ou menor gravidade.

Em entrevista para a Rádio Gaúcha, o religioso disse que morou 21 dias na parte alta da ponte na BR-290, auxiliando quem ali estava, dando estímulo, alimentos e roupas doadas. “Todo ano, quando vem a enchente, as famílias perdem seus bens materiais. Ainda bem que preservam suas vidas. Agora, dói. Porque a gente sabe as condições das famílias das ilhas, as necessidades que elas têm, perder algo tão precioso para elas dói demais pra gente”, afirma. “Sabe-se lá quando poderão recuperar tudo já que são famílias humildes, pobres.”


A sede da Colônia dos Pescadores Z5 também foi alagada / Foto: Jorge Leão

Nas ilhas moram pescadores, trabalhadores de salário mínimo, catadores e catadoras, enfim pessoas muito simples, sem grandes disponibilidades financeiras. Estão na base da pirâmide social. A grande maioria não quer sair de lá. Ali está a história, a memória e a vida possível para quase todas as pessoas. Saem em caso de emergência, mas acabam voltando. A cidade não motiva. Não querem abandonar o que construíram a duras penas. O mundo que elas veem só inclui a Capital, ao longe. Uma vista amorfa, sem vida. O seu chão está ali, nas ilhas.

Áreas sempre deixadas de lado para socorrer ou as últimas a receber apoio, os problemas só são resolvidos com longa espera, paciência e com compreensiva indignação. Atendimento médico permanente é difícil. A maioria das pessoas precisa viajar para Porto Alegre. As crianças normalmente recebem educação escolar, mas a precariedade é enorme, as novidades não chegam. Até os grupos de resgate dos bombeiros, que têm sua base no Cais Mauá, não puderam dar atenção nesta enchente. Tinham outras ‘prioridades’.


Com a volta da chuva, há temor de tudo que estão fazendo vá ser levado novamente pelas águas / Foto: Jorge Leão

Agora, com a chuva que caí neste início de semana, com altos índices de milimetragem, o pânico volta a se instalar. Há temor de tudo que estão fazendo vá ser levado novamente pelas águas. “Nem terminamos e já estamos com nova ameaça”, diz o padre Romualdo. A água potável e a energia, tão vitais nesta hora, vão continuar servindo a população em conta gotas. E muitos moradores vão continuar dormindo em colchões sujos, cercados por lixo e lodo.

Confira mais imagens do fotógrafo do Brasil de Fato Jorge Leão, realizadas neste sábado (15)


Foto: Jorge Leão


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Edição: Katia Marko