Li uma frase nas redes sociais que me deixou pensativa “Se a dor do outro não doer em mim desconheço o amor”.
Como pode ser isso? Por que, no dia a dia, muitas coisas acontecem e poucas pessoas se mobilizam??? E o que de fato leva essas poucas pessoas a se mobilizarem e se doarem ao processo coletivo?
No dia 9 de maio de 2024 recebi um áudio de minha vizinha pedindo máquina de costura emprestada, porque ela e mais outras colegas iam tentar fazer calcinhas no final de semana para as mulheres que perderam tudo nas enchentes...
Uma teve a ideia, a outra trouxe tecidos, outra cedeu a garagem e assim começou o trabalho...
Minhas máquinas estavam lá, mas eu não. Estava ajudando a resgatar e cuidar dos peludos que também estavam em risco e muitos foram deixados para serem resgatados depois... Momentos de tristeza, de angústia e no meio de tudo isso, a esperança e alegria quando um tutor encontrava seu pet.
Eu comecei a sentir a frase... Confesso! Estava bem difícil de continuar. E ali do lado da minha casa acontecia um movimento que jamais tinha visto. O fogo acesso, panelas fervendo e as pessoas se movimentando bem cedinho na cozinha solidária e um pouco mais tarde as máquinas de costura começam a funcionar...
Olhava na estrada, as mulheres passavam com máquinas debaixo do braço, tecidos, lanches... e iam para a garagem.
Resolvi ir naquele sábado, nossa!!! Fazer calcinhas, uma tarefa nada fácil quando não se é costureira. As primeiras feitas foram um desastre, íamos desistir... Pensamos vamos cada uma dar um pouco de dinheiro, comprar algumas e doar... mas seria pouco para tantas...
Não convencida, uma das companheiras passou a noite vendo vídeos e procurando como fazer calcinhas na internet.
No outro dia mais uma tentativa, a costura estava cada vez melhor. Porém, não tínhamos muito tecido, fomos para casa, e cada uma voltou com um vestido de malha que nunca tinha usado, um pedaço de tecido guardado, com lacinhos...
A gente chegava na garagem, o frio presente, o barulho das panelas da cozinha solidária do lado. Logo o fogão a lenha aquece o espaço e quando as mulheres iam chegando com as máquinas debaixo do braço, com chimarrão, com bolo, cafezinho... aquecia o coração.
Foi aí que a frase: “O amor na dor de alguém”, fez mais sentido. Cada calcinha que ficava pronta era uma festa de palmas, passava pelo controle de qualidade nas mãos de uma companheira, era enfeitada com lacinho, dobrada com carinho e colocada em saquinho, selado com uma etiqueta “Costura Solidária MST, Atelier das Bruxas”.
Cada foto ou vídeo que chegava para nós, do momento da entrega das calcinhas prontas para as companheiras, o coração enchia de alegria.
Sei que é complicado falar em felicidade em momento como esse, onde as famílias perderam tudo: casa, móveis, carro, roupas até as lembranças refletidas em papéis como fotos. Mas esse sentimento de poder fazer algo, mesmo que seja pouco, é inexplicável, me deixou feliz no meio de tudo o que estava acontecendo.
Não conseguimos ajudar todas, mas as poucas que conseguimos já valeu a pena cada esforço.
Sim, durante esses dias, vivemos intensamente a solidariedade. Mulheres vinham de todos os lugares, não eram mais apenas as vizinhas…
Eram as professoras da região, agricultoras, cabeleireiras, aposentadas, agrônomas, costureiras. Um movimento simples que se tornou grandioso e abriu uma porta de esperança, de organização, de coletividade, de vontade de continuar.
Um casal de amigos veio aos finais de semana, não para costurar, mas para nos alimentar com comidas deliciosas e com a música tocada em voz e violão. Ao toque das cordas do violão a música “Máquina” do cantor Peninha virou um coral.
...máquina não sente fome
muitas vezes mecaniza
o coração do próprio homem
máquina não dá sorrisos
não chora nem sente dor
máquina não bate papo
nem precisa de amor
umas fazem bi-bi
outras fazem tic-toc
umas fazem ron-ron
outras fazem plic-ploc...
Aquelas máquinas ali, na costura solidária na garagem, me fizeram sentir, refletir, chorar, sorrir, me fizeram esperançar…
* Roseli Canzarolli, é veterinária, integrante da Coordenação da Coperav, no Assentamento Filhos de Sepé em Viamão.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko