Propomos a criação de um Sistema Único de Mobilidade Urbana, com uma gestão de todos os governos
Estamos a quatro meses das eleições municipais e a mobilidade urbana deve ser um dos temas centrais do debate eleitoral em muitas cidades, principalmente devido à crise do transporte coletivo nos últimos anos. Outro tema que terá muita relevância, especialmente no Rio Grande do Sul, são as mudanças climáticas e suas consequências, incluindo as enchentes. Se o debate for realizado de forma séria e sem negacionismo (o que talvez seja um cenário muito otimista), esses dois temas podem – e devem – se relacionar.
A mobilidade urbana não é assunto novo nas eleições municipais, já que é algo essencial na vida da população por dois motivos. Primeiro, pelo tempo cada vez maior que se gasta no trânsito. Isso acontece tanto pela segregação espacial, que faz com que as pessoas morem cada vez mais longe dos seus trabalhos e locais de estudo, quanto pelos crescentes engarrafamentos. O outro motivo é o peso no bolso. O transporte é o segundo maior gasto das famílias brasileiras, perdendo apenas para habitação, tendo ultrapassado inclusive os gastos com alimentação.
Os aumentos tanto no tempo quanto nos valores gastos com transporte têm uma causa em comum: a prioridade ao automóvel. Andar de carro é algo extremamente ineficiente do ponto de vista energético a econômico. Uma máquina de alto custo de produção e com mais de uma tonelada precisa ser colocada em movimento para levar, na maioria das vezes, apenas um passageiro com algumas dezenas de quilos, gerando um gasto desproporcional de energia. Como ocupa muito mais espaço viário que a mobilidade ativa e o transporte coletivo, o carro também gera congestionamentos que aumentam o tempo de deslocamento e o consumo de combustível, aumentando ainda mais sua ineficiência econômica.
Além disso, o transporte individual tira passageiros do transporte coletivo. No Brasil, é comum que a tarifa de ônibus seja calculada dividindo o custo do sistema pelo número de passageiros pagantes. Com menos passageiros, a passagem aumenta. Isso, por sua vez, traz uma queda ainda maior na demanda. Ou seja, o aumento da frota de automóveis faz crescer o gasto com transporte tanto de quem anda de carro quanto de quem anda de ônibus.
As consequências não são apenas econômicas. Como já dito, temos um modelo de mobilidade urbana ineficiente que gasta muito mais combustível do que se fossem priorizados o transporte coletivo e a mobilidade ativa. E isso gera altos níveis de poluição. Segundo estimativa do International Transport Forum, da OCDE, em 2019 as emissões mundiais de CO2 causadas pelo transporte eram de 7,8 gigatoneladas e, se as políticas atuais continuarem, atingirão 8,3 gigatoneladas em 2028, um aumento de 6,4%. Até 2050 haveria uma pequena redução, chegando a 7,6. Para limitar o aquecimento global em 1,5°C, o IPCC estima que as emissões do transporte precisariam ficar entre 2 e 3 gigatoneladas.
Ou seja, estamos no caminho oposto ao necessário não apenas para melhorar a vida nas nossas cidades, mas para garantir a vida em nosso planeta nos próximos séculos. As enchentes do mês passado foram apenas uma amostra do que pode vir. De acordo com o World Weather Attribution (WWA), as mudanças climáticas já aumentaram em mais de duas vezes a probabilidade de ocorrência de chuvas extremas no Rio Grande do Sul, além de torná-las mais intensas. E se as emissões de carbono continuarem no ritmo que estão, a situação em breve ficará muito pior.
Por lobby da indústria automobilística, os carros elétricos têm sido apresentados como a solução para o problema, mas estão longe disso. Para começar, ocupam o mesmo espaço viário de carros comuns, gerando engarrafamento. Também seguem a lógica – excludente do ponto de vista social – de privilegiar a população de maior renda, que possui condições de comprar um carro. E mesmo ambientalmente gera mais danos do que mostra a propaganda de seus fabricantes.
Embora não emita CO2 durante o uso do carro, a eletricidade usada precisa ser gerada de alguma forma. A última grande proposta de geração de energia no Rio Grande do Sul foi a abertura de uma mina de carvão próxima ao Guaíba que, entre outros usos, abasteceria usinas termelétricas. A ideia teve apoio do governador Eduardo Leite, mas acabou sendo arquivada devido a protestos.
É esse tipo de eletricidade que vai abastecer os carros elétricos? Sem falar que mesmo as hidrelétricas, muito utilizadas no Brasil, também possuem impacto ambiental significativo. Mudar fontes de energia é algo importante, mas precisamos de meios de transporte que gastem menos energia (independente da fonte) e a solução para isso nunca será o automóvel. Além disso, os carros elétricos precisam de grandes baterias que também podem causar problemas ambientais e geopolíticos.
É notória a participação de fabricantes de carros elétricos no golpe que ocorreu em 2019 na Bolívia, país que possui uma das maiores reservas de lítio, mineral usado nas baterias. Vamos trocar os conflitos do petróleo pelos do lítio?
Mudar nosso modelo de transportes é urgente e propostas não faltam. O Observatório das Metrópoles integra a coalizão Mobilidade Triplo Zero, que defende uma mobilidade urbana com tarifa zero no transporte coletivo, zero emissões de carbono e zero mortes no trânsito. Apenas a gratuidade pode garantir o transporte como direito social, algo previsto no art. 6º da Constituição Federal e nunca cumprido, e, junto com a melhoria do sistema, trazer de volta ao transporte coletivo os passageiros perdidos para o automóvel. A mobilidade a pé e por bicicleta também precisa ser incentivada.
As mudanças necessárias são grandes e precisam contar com a participação de todos os níveis de governo. Por isso propomos a criação de um Sistema Único de Mobilidade Urbana, com uma gestão que envolva os governos municipais, estaduais e federal. Além de aumentar a capacidade financeira, um sistema único facilitaria a integração.
Na Região Metropolitana de Porto Alegre, por exemplo, temos ônibus municipais regulados por cada uma das prefeituras, ônibus metropolitanos regulados pelo governo estadual e o Trensurb, gerido por uma estatal federal, cada um atuando de forma independente do outro. A construção do Sistema Único de Mobilidade Urbana começa com a aprovação da PEC 25/2023, que já está em tramitação no Congresso Nacional.
Enquanto não se aprova essa mudança nacional, muitas soluções locais são possíveis, incluindo a tarifa zero, já presente de forma universal em mais de 100 municípios brasileiros. Outras cidades possuem tarifa zero parcial. Em São Paulo, por exemplo, há passe livre nos ônibus todos os domingos.
Porto Alegre, a capital do Orçamento Participativo e do Fórum Social Mundial, já foi conhecida mundialmente por trazer a esperança de que “um outro mundo é possível”. Também já fomos referência em mobilidade urbana, com a Carris (pública) sendo eleita a melhor empresa de transporte coletivo do país. A tragédia que atingiu a cidade nas últimas semanas mostrou que a política de negacionismo ambiental e de exclusão social vigente atualmente precisa acabar. Um outro mundo não apenas é possível como é necessário, e a mudança passa, entre outras coisas, pela mobilidade urbana.
* André Coutinho Augustin, economista e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko