“É mais de coração do que qualquer espécie de ajuda.” Depois de mais uma noite de trabalho no conserto de máquinas de lavar roupa e poucas horas de sono, Walmir Melo Veiga, 58 anos, parte no seu furgão Doblò para mais uma jornada de visitas a clientes das zonas alagadas, hoje cheias de lama, lixo e destroços, para fazer o que mais sabe – auxiliar, estimular e confortar as pessoas que perderam tudo nas cheias. Ele mora na parte alta do Bairro Santa Rosa de Lima, zona Norte de Porto Alegre, não sofreu invasão das águas, mas ficou consternado e abalado com tantas perdas e destruições.
Walmir vai onde as pessoas o chamam. Bairros Sarandi, Humaitá, Anchieta, Navegantes, Menino Deus, e as cidades de Canoas, Alvorada, Cachoeirinha, Gravataí, sempre em busca dos seus conhecidos, amigos, parentes que moram longe e estão desesperados com as suas perdas, com o não ter nada mais, a não ser o esqueleto das suas casas. Fala com todos que o interrogam, diz que conserta máquinas de lavar, mas acaba ajudando, ali mesmo, e deixando em funcionamento outros eletrodomésticos e resolvendo questões de energia e hidráulicas. Faz isso todos os dias, feriados, sábados e domingos. Não tem agenda. Atende quem pede primeiro. Volta para casa arrasado, com o furgão com 3 ou 4 máquinas e entrega, de volta, limpas e higienizadas o mais rápido que pode.
Ele não é rico, não tem nada sobrando. Tem é dedicação, amor, carinho pelas pessoas e pelo que faz. Em grande parte dos casos, analisa a situação da casa e fica sem coragem para cobrar pelos serviços. Só cobra as peças novas que utiliza nos consertos, “afinal preciso sustentar minha família”. Aliás, uma grande família. Tem três filhos, que estudam e se viram para colaborar com o pai. No espaço da sua casa no bairro, a dois quilômetros da Federação das Indústrias do RS (Fiergs), nos limites de Alvorada, moram ainda a sua sogra e tios idosos, com suas moradias agregadas a de Walmir. “Ajudo a todos por ali nos consertos de calhas, máquinas, busco compras, remédios, tudo que for possível para deixá-los mais confortáveis.”
A vida numa zona simples e trabalhadora, com seus 36 mil habitantes, segundo o Censo do IBGE de 2022, transformou Walmir em voluntário permanente do bem-estar da vizinhança e da zona, hoje afetadas mortalmente nos seus pequenos e escassos patrimônios. “Tenho que controlar meus sentimentos para não ficar mal demais e não poder ajudar em tudo que me pedem quando visito estas pessoas humilhadas pelas cheias e pela vida.” Ele faz isso há 20 anos, concomitantemente ao trabalho que fazia até o início da pandemia, quando foi demitido, junto com tantos outros, do seu trabalho no Plaza São Rafael, onde era do setor de Comunicação e fazia tarefas administrativas, na área de informática e como design de cardápios de toda a rede de hotéis.
Ali, já era um agregador, um trabalhador incansável, fazia amizades com todos, era bem recebido em todos os ambientes. O conheci por ali e me tornei um admirador da sua incansável tarefa de ser um cara parceiro, que dividia o seu ‘pão’ e as suas coisas com os outros. Sempre ajudando. De dia, então, estava ali e noite adentro visitava os seus clientes de máquinas de lavar e consertava nas suas horas vagas. Dormia pouco, mas não parecia um cara cansado, esgotado pelas suas atribuições e luta para sobreviver.
Antes do Plaza, onde trabalhou 32 anos, passou por estágios no Sesi, via Correio do Povo, Companhia Brasileira do Cobre, Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), entregador de pizzas. Fazia tudo e sempre com um prazer invejável aos que o conheciam. Não tinha tarefa ruim para ele. Aprendeu em máquinas de escrever todos os rudimentos para suas tarefas futuras. “Depois de almoçar, enquanto o pessoal ficava descansando, eu ia catar milho e aprendi datilografia e a controlar e saber quase tudo dos teclados pré-históricos da época, coisa que só me ajudou, posteriormente, na informática”, diz com orgulho.
Nas suas andanças pelas ‘ruínas’ das vítimas das cheias, Walmir vai, eventualmente, sozinho. Carrega máquinas com um pequeno carrinho de transporte. “Agora tá até difícil de passar com o peso das máquinas pela lama, barro e lixo”, reforça. Mas, na grande maioria dos casos, conta com a ajuda da esposa Julcimara e do filho Leonardo, o menor dos três, quando não está em atividades escolares. “Nos viramos bem, não tem cansaço ou depressão que nos desanime. São coisas que não conhecemos.” Para ele, atender o pessoal que o chama não é apenas ajudar, é ficar feliz com o seu coração. Sentir-se útil. Não é vaidade, não é falar e se gabar para os outros que faz isso ou aquilo para a sua comunidade de clientes, hoje a grande maioria sem nada para se animar com a vida.
Quando vê a situação dramática de um cliente ou outro, leva um consolo maior. “Dia desses fiz comida especialmente para uma senhora que senti que estava em situação triste e em estado de prostração. Levei até um pote de sorvete. Ela estava no segundo andar da sua casa, já que todo térreo estava cheio de água e lama. Nunca vi uma pessoa tão feliz e agradecida com o gesto que tive”, diz.
Walmir tanto andou por estas zonas alagadas e viu tanta solidariedade e voluntariado que ficou feliz com o rumo da humanidade. “Nem parece que vivemos em tempos de ódio e raiva, todo mundo querendo levar vantagem e passando a perna nos outros. Sei que a minha visão é prematura e feita em momento de consternação, mas espero que este espírito permaneça por muito tempo. Pode ser ilusão, mas ainda acredito no ser humano.”
Edição: Katia Marko