Rio Grande do Sul

ENSAIO

a água baixou. a poeira não

'as ruas secaram e deixaram as marcas à mostra. ferida exposta. sobre os restos da enchente, uma poeira fina'

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"É preciso REabrir os caminhos. REsgatar os propósitos. REescrever a história" - Foto: ana c.

o prefixo "re" dá a ideia de REPETIÇÃO.  tornar a fazer algo. ação repetitiva.

e ele tem sido constantemente repetido pelas bocas gaúchas:
recuperar. reconstruir. retornar. retomar. ressignificar

o prefixo "re" é infinito em si mesmo. 

e sua presença constante no nosso vocabulário é marca da infinita resiliência das nossas vidas. 

sempre é possível recomeçar. 

catástrofes como a que estamos vivendo parecem despertar em nós sentimentos profundamente adormecidos, talvez por nos depararmos com a implacabilidade da impermanência, com o desgosto da finitude, com o sucumbir do controle.

já tem mais de 30 dias que o estado inteiro do RS foi devastado pelas águas (e pela ganância).

a água baixou. as pessoas REcomeçam a REtornar aos seus lares. ou ao que sobrou deles.
é preciso limpar as casas, salvar as memórias, REcuperar as forças, a rotina. mas como?

as ruas secaram e deixaram as marcas à mostra. ferida exposta. sobre os restos da enchente, uma poeira fina, monocromática e fétida recobre cada lembrança-objeto empilhado pelas ruas.

O gaúcho, povo que publicamente professa com orgulho sua bravura, nunca se viu tão desamparado, tão vulnerável.

(é como se cada coração se desfizesse, tal qual a poeira da enchente, impregnada nas narinas, nas retinas). 

é preciso REcuperar as casas. limpar as memórias. salvar as pessoas. 


Se ter uma moradia é um direito, porque tanta gente sem casa e tanta casa sem gente? / Foto: Alass Derivas / @derivajornalismo

sem ter pra onde voltar, muitas famílias engrossam as filas das ocupações urbanas que salpicam pela cidade - como sementes que rebentam pelo pampa na ocorrência da primavera - e assim, ampliam os limites das nossas utopias: será que agora, enfim, teremos casa para todas as famílias? Será o momento em que plantaremos todas as famílias em suas casas?

Se ter uma moradia é um direito, porque tanta gente sem casa e tanta casa sem gente?

É preciso REpensar: só em Porto Alegre existem três imóveis para cada pessoa desalojada pela enchente. Para cada PESSOA. Na prática, se colocarmos todas as famílias para morar em imóveis que já existem, ainda sobrariam imóveis vazios na cidade.
Certamente não era esse o futuro que queríamos, mas é o presente que temos.

Cabe observar que nada do que nos acomete agora é novo. a fome, a miséria, a desigualdade… tudo isso já existia antes dessa catástrofe, embora ela, sem dúvida, tensione ainda mais nosso tecido social. agora ela salta aos nossos olhos. a pessoa em situação de rua não é mais aquele invisível dormindo na calçada.
Os desabrigados são nossos conhecidos, amigos, vizinhos.
Cada um deles vitimado por um sistema máquina-de-moer-gente que lucra com a tragédia.

E, mais do que nunca, fica evidente que nosso presente é coletivo. a cooperação entre diferentes grupos sociais se estabeleceu desde o primeiro momento. voluntários e abrigados. vizinhos resgatados. pessoas doando tudo o que podiam para as que tudo perderam: roupas, dinheiro, tempo e afeto.
o contato com as outras realidades virou a realidade comum num cenário surreal.


Quando as águas avançaram pela nossa cidade, elas propuseram um REpensar dos nossos caminhos / Foto: ana c.


é preciso REcontatar e REcuperar: 

a permacultura tem um conceito interessante sobre as bordas. a área dos limites. as superfícies de contato entre dois meios diferentes. terra e água. mar e lagoa. ali é onde acontecem as maiores trocas: o espaço onde os diferentes convergem se torna um ambiente propício para as múltiplas e ricas trocas que possibilitam a ocorrência de formas diferentes de viver.

assim, quando as águas avançaram pela nossa cidade, elas propuseram um REpensar dos nossos caminhos. uma REmodelação do que estava posto. e nos exigiram que olhássemos para o chão no qual plantamos nossas sementes-sonho. com o que e como estamos trocando?

é preciso
REabrir os caminhos. REsgatar os propósitos.

REescrever a história.

e para isso:
olhar no entorno, para além de si.
moldar o barro da vida, para além da lama triste.
reacender o fogo, aquecer o peito no afeto.
ouvir no vento que sussurra:

A esperança (também) é infinita em si mesmo.

* ana c, de carolina, é comunicadora por vocação, produtora cultural por capricho e multiartista por essência. mulher lésbica, feminista e latinoamericana, escreve para dar sentido ao que sente.

Edição: Katia Marko