Também os livros se tornaram frágeis perante as águas
É possível começar um texto qualquer, nessas épocas, sem referir- se às enchentes?
Então, foi por causa das águas que um grupo de amigaes fomos um dia, há umas três semanas, ajudar a nossa querida escritora Julia Dantas. Se tivesse que ilustrar esse momento é o de uma lágrima marrom. Uma casa tomada pela lama.
Nos dividimos em grupos de tarefas, algumaes tiravam a mobília encharcada, outraes, tentávamos salvar os livros. Salvar livros como quem salva vidas.
Quando conversamos no grupo de WhatsApp, sobre como faríamos, foi dito que para o secado era necessário um espaço à sombra e bem arejado. Pensei em seguida no terraço da minha casa que nesta época pega pouco sol. Foi assim que essa tarde voltei carregando várias sacolas de pano cheias dos livros mais encharcados. O que não me passou pela cabeça foi a umidade.
Cheguei com muitos volumes que, certamente não poderia pô-los ao ar livre no entardecer, dado o orvalho, seria como deixá-los embaixo da chuva. Então, ao tirá-los das bolsas, fui pondo eles no chão. Não lembro se foi nesse primeiro, ou, no segundo dia que fiz a foto que ilustra a coluna. Faz parte de Um grande dia para as escritoras, o cartaz que vem com o livro também estava molhado.
O dia seguinte, mudei a maioria dos livros de lugar, o cheiro era muito forte. Depois segui trocando eles tanto de lugar como de posição. Cada mudança me demandou um tempo impensado. Eu não tinha imaginado o efeito que esses livros causariam em mim! Alguns eu conhecia, muitos não. Vontade de me submergir na leitura! Me sentia visitando uma biblioteca no fundo do mar.
Depois me sentia uma traidora, pois depois do manuseio ia rápido lavar as mãos. Quantas sensações novas e misturadas. A frase poderá soar clichê, mas juro que era bem isso o que eu sentia.
Depois de tantos dias, ainda, têm livros molhados. Eu não tinha me dado conta que os que ficaram direto no chão, nunca secariam. A umidade de Porto Alegre é insuportável, além de termos tido tantos dias nublados, mesmo com sol tem horas que a água escorrega pelas paredes e o chão sua. Então fui pondo em toalhas e panos e cobertores, inclusive, embaixo do sol de outono, pois depois de tanto tempo que levavam molhados, não sei o que seria pior. O secado foi avançando.
Foi assim que entre as novidades, para mim, que trouxe das estantes empapadas de Julia, estava “A arqueologia das gavetas”, de Alexandra Lopes da Cunha*. É um livro sobre a memória, sobre o luto, sobre se é possível se preparar ou estar pronta para a morte da mãe. Relendo agora o que escrevi ontem, penso na metáfora, é possível estar preparada para uma catástrofe ambiental? Para ter a própria casa, cidade, invadida de água e de lama?
Qual o papel da literatura em nossas vidas?
Mais do que nunca, penso em papel, e me vejo abrindo alguns livros ainda molhados tentando separar com o maior cuidado uma página da outra. Cada livro é diferente. Sim, são todos títulos diferentes, mas a secagem também é. Engraçado, estou prestes a fazer toda uma teoria sobre como secar livros submersos em águas sujas. Alguns deles se deixam abrir, folhear; outros, secaram duros. Esses, são poucos, prefiro nem mexer e deixar as decisões com sua dona. Outros, é melhor ir logo separando as folhas porque têm algumas que vão colando às outras e dá a impressão de nunca mais poder separá-las. Tem exemplares cujo papel parece uma pele, de fininha, e as letras, veias percorrendo.
Também os livros se tornaram frágeis perante as águas.
Em outro texto, agora teórico, que encontro de Alexandra, ela fala que “o uso das metáforas é mesmo trivial, comum, mas apenas o poeta pode transformá-las em algo transcendente, torná-las arte”.
Desde o início das chuvas que tento fazer coisas, como muitas pessoas, doei roupas, comida, água, tempo; ajudei amigas, não só a Julia, a limpar, a entrar em suas casas, mas sempre fico com a sensação de estar faltando algo.
Talvez seja agora ela, a literatura, a falar no meu ouvido e repetir uma frase que eu escrevi ao passar, talvez eu esteja tentando salvar os livros de Julia e de Felipe como alguém que tenta salvar vidas.
No último parágrafo fala em salvação, Alexandra escreve que a poesia salva. Talvez esse seja, neste momento, um dos papéis da literatura.
* Na quinta-feira 13 de junho, estarei conversando com Alexandra Lopes da Cunha, às 16 horas https://www.youtube.com/@JornalPoesia
** mariam pessah : ARTivista feminiSta, escritora, poeta e tradutora. Autora de Meu último poema, 2023; Em breve tudo se desacomodará, 2022; entre outros. Organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre, desde 2017, e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta. Atualmente também tem uma coluna Conversa invers(A) no Youtube.
*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko