Quem nunca passou por uma encruzilhada, não sabe escolher caminhos.
(Antônio Bispo dos Santos, o “Nego Bispo”)
Nos últimos anos, estamos percebendo de modo geral, que não existe coisa melhor para governantes e governos omissos e negacionistas do que uma tragédia ou alguma catástrofe ambiental, sanitária, ou seja lá de que tipo ela seja. A pandemia de covid-19 e os eventos climáticos extremos (como são chamadas as alterações dos fenômenos da natureza como as chuvas intensas, ciclones, enchentes, estiagens ou temperaturas muito altas) são fundamentais para nos demonstrarem as diversas maneiras nefastas com que os governantes justificam o seu descaso com as populações e com os diversos setores da sociedade.
Os mesmos, culpabilizam as populações pela situação que estão vivenciando, se eximem de toda responsabilidade de gestão dos riscos e das probabilidades existentes de catástrofes, não se atentam as previsões científicas e durante o auge de todas as crises, simplesmente agem com descaso, omissão e despreparo. Foi assim durante boa parte do período pandêmico de covid-19. Tem sido assim com as chuvas intensas e enchentes no Rio Grande do Sul.
Os problemas climáticos e ambientais não começaram no mês de maio de 2024. Eles começaram a ser percebidos durante o século XIX (a partir da Revolução Industrial) e se tornam mais evidentes no século XX, após a Segunda Guerra Mundial, para ser mais preciso. Durante esse período, as principais potências políticas e econômicas (os países do Norte Global) começam a sentir as consequências em seus territórios e mercados, de um Planeta Terra mais quente, poluído, com oceanos mais ácidos, alterações meteorológicas e ecossistêmicas, desaparecimento de fauna e flora e logicamente, a escassez dos recursos naturais.
É necessário sublinhar aqui, que antes das preocupações socioambientais por parte das entidades internacionais durante o século XX, o Sul Global já havia vivenciado uma terrível degradação ambiental e humana, onde o processo de colonização e de imperialismo, já haviam deixado rastros de destruição pelas Américas, África, Ásia e Oceania. Por isso, é necessário que levantemos todas estas questões para interligar as alterações climáticas que nós e outros povos estamos vivenciando, com todo um processo de exploração e degradação do meio ambiente e das populações. Por trás deste processo, existe uma lógica neoliberal, expropriadora,
Quando o Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr. (1948 - ), liderança do movimento dos direitos civis, denunciou na década de 1980 que os dejetos químicos poluentes das fábricas e indústrias no Condado de Warren (Carolina do Norte), passavam ou tinham como fim os bairros periféricos habitados pelas populações negras e migrantes, começou a ser constituído o conceito de Racismo Ambiental. O Racismo Ambiental, tanto na concepção teórica norte-americana quanto na concepção brasileira é a ideia ou prática que o Estado, a sociedade e seus diversos setores, governos e outras entidades, começam a permitir e aceitar a exploração e a degradação ambiental e humana em prol do desenvolvimento e do lucro, em cima da naturalização de certas inferioridades e discriminações com determinados grupos sociais, grupos étnicos e certas populações em vulnerabilidade social e/ou econômica.
Racismo Ambiental é uma lógica atualizada dos processos de colonização e de imperialismo do passado, pois ela “sacrifica” as populações pretas, negras, pardas, indígenas, migrantes, extrativistas, povos das florestas, ribeirinhos, caiçaras, trabalhadores pobres e outros, para sofrerem os impactos negativos do desenvolvimento econômico, para benefício de outras populações. E da mesma forma, Racismo Ambiental também opera na lógica do descaso, da omissão e do abandono por parte do Estado. Quando as mesmas populações já citadas, não são assistidas por políticas públicas, saneamento básico, moradia digna, segurança, educação de qualidade e estão simplesmente abandonadas em seus territórios para serem as primeiras a serem prejudicadas ou destruídas por enchentes, ciclones, estiagem, poluições, epidemias etc.
Infelizmente, agora no mês de maio, a Crise Climática encontrou em cheio o Racismo Ambiental no Rio Grande do Sul. O caso das enchentes e das chuvas intensas tem escancarado cada vez mais as inúmeras desigualdades e injustiças sociais e ambientais. Logicamente que todos e todas serão atingidos direta ou indiretamente pela Crise Climática. A diferença é que alguns ficaram e ficarão “ilhados” em seus apartamentos, outros serão prejudicados de formas mais profundas, perdendo seus familiares, animais de estimação, suas casas, seus pertences que conquistaram através de muita exploração e trabalho informal.
No caso de Porto Alegre, capital do estado, em certos bairros mais nobres, muita gente ficou sem energia elétrica, dentro de seus apartamentos, mas com água potável nas suas piscinas. As primeiras populações a serem atingidas e as mais prejudicadas nos munícipios gaúchos, são as populações periféricas, vulneráveis nas questões de moradia, trabalhadores pobres, desassistidos por parte do poder público e majoritariamente bairros e áreas de populações negras. Populações que são cotidianamente sacrificadas em benefício de outros. Populações que estão pagando um alto preço. Populações que estão vivendo ainda mais o descaso por parte do Estado.
A dita “reconstrução” será duríssima para essas populações, porque muito deles, não têm nem por onde começar. Suas casas, seus pertences e seus familiares, tudo foi engolido pelas águas e pelas cheias, mas principalmente por uma governança que “lava as mãos” para as populações discriminadas e marginalizadas. O conjunto formado pelas chuvas intensas e pela omissão política é destruidor.
Se olharmos para a destruição causada pelas chuvas intensas no RS, para a destruição causada pelo rompimento da barragem de Brumadinho (MG) em 2019 ou para o desabamento de terrenos em Maceió causado pela empresa Braskem no ano passado, perceberemos que há uma lógica muito bem estabelecida, principalmente quando olharmos quais populações estão sendo sacrificadas. Infelizmente, o Racismo Ambiental também é estrutural no Brasil e no Rio Grande do Sul.
Por mais que o negacionismo climático encontre muita operação na política, as flexibilizações das políticas ambientais e o crescimento das bancadas políticas financiadas pelo agronegócio estejam em expansão, é necessário ressaltar que a Crise Climática é uma realidade dada, ou seja, ela está em curso independente se a sociedade estiver percebendo-a ou não. Fazemos parte de um ecossistema poderoso, mas que está em alteração profunda, e essas alterações estão demonstrando as nossas diversas fragilidades, tanto éticas quanto políticas.
O colapso ambiental que o Planeta Terra vive por causa do modelo econômico que está sendo operado, é agora, não será em 2050. Os refugiados climáticos não estarão somente na África e na Ásia, seremos nós também. As populações mais vulneráveis, serão as primeiras afetadas. Mas com o tempo, todas serão atingidas, e não existe um “Planeta B”.
Chegamos, portanto, em uma encruzilhada societária. Nesta encruzilhada então, devemos parar e olhar para trás: alguns sobreviveram a pandemia de covid-19, outros não. Alguns sobrevivem as enchentes, ciclones, furacões, escassez de alimento, falta de água potável, as migrações e outros não.
Chegamos então, nesta encruzilhada societária: nós, os sobreviventes (por enquanto), devemos entender que a solidariedade é positiva, mas não poderemos viver somente dela. Precisaremos, e as populações em vulnerabilidade e que sofrem com o Racismo Ambiental Estrutural ainda mais, de políticas públicas, de gerenciamento de riscos e não somente de preocupação na hora do resgate.
É urgente a cobrança dos governantes atuais e dos próximos, que a Crise Climática é uma realidade, portanto, a nossa sobrevivência está em jogo. Precisaremos também, cada vez mais de uma mobilização social ainda mais contundente, para o processo de reconstrução que está ocorrendo e para mitigar os problemas dos próximos eventos climáticos extremos, sejam cheias, estiagens, ciclones ou até mesmo as situações sanitárias futuras, sejam epidemias ou pandemias.
Precisamos compreender a nossa realidade para só assim, nos prepararmos para ela. As discussões, reflexões e práticas socioambientais devem estar cada mais presentes em nosso cotidiano, nas instituições governamentais ou não, nas empresas, nas associações, nas entidades religiosas, ou seja, indiferente de onde estivermos.
Volta e meia, a sociedade se encontra assim, em uma encruzilhada.
Não podemos mudar o que passou.
Mas poderemos e precisaremos reorganizar nossa direção.
Encruzilhadas servem para isso.
* Samuel Crissandro Tavares Ferreira (Samuka) é historiador e doutor em Educação Ambiental (PPGEA – FURG)
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira