Rio Grande do Sul

ARTIGO

O diário perdido no Sarandi

'Há um sentimento de abandono total, revolta, e a compreensão de que a prefeitura não existe para proteger as pessoas'

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"O diário de Aguida afunda aos poucos sob os escombros, assim como fotos, bordados e tricôs" - Foto: Télia Negrão

Eu não sei quem é Aguida Leni Pereira. Mas sei que o seu Diário foi aberto em 1º de Outubro de 1981, pouco antes de me tornar mãe pela primeira vez. A capa do caderno traz a cena de um porto, com navios e edifícios antigos. A palavra “Lembrança” está grafada na portada. Esses cadernos íntimos eram, até a década de 1980, um presente que as meninas recebiam nos 15 anos, e como relíquias eram guardados. As folhas estão repletas de relatos pessoais escritos à mão, que por respeito à sua dona não me permiti ler.

Dentro em pouco esse diário memórias deixará de existir, pois o barro fétido e contaminado que tomou conta das ruas do bairro Sarandi sequer permite que se toque nos objetos representativos da vida de milhares de pessoas afetadas pela enchente. O baixar das águas revela móveis, camas, máquinas de costura, fogões, colchões, roupas ainda presas nos varais, bichos de pelúcia e animais mortos. O diário de Aguida afunda aos poucos sob os escombros, assim como fotos, bordados e tricôs. “Uma vida toda” diz Mônica Vargas da Silva, 37 anos, cabeleireira e manicure, ainda impactada com os acontecimentos climáticos no Rio Grande do Sul.


O baixar das águas revela móveis, camas, máquinas de costura, fogões, colchões, roupas ainda presas nos varais, bichos de pelúcia e animais mortos / Foto: Camilla Porto

Mônica, mãe de Beatriz de três anos, é dona de uma das quatro casas que compõem o terreno onde vivia, na beira do valão “Sem Nome”, no fundo da vila, e não salvou nada. Seus pertences pessoais, assim como de sua mãe e irmãs, e possivelmente de Aguida, são sucatas contaminadas pelo esgoto, por águas sujas, barro, fezes. A água, quando estourou o dique no dia 3 de maio, chegou no telhado. “Não deu tempo para nada, só para salvar a vida”. Foi com “água pela cintura” conta a sua irmã, Paula, que desesperadamente puxou os filhos e salvou a vida da família. Mas foi só.

Ela aponta o telhado da casa da frente, e sobre ele descansam geladeiras, fogões, agora detritos, que também não foram ainda retirados pelas máquinas da prefeitura. Bem como a vaca, trazida pela enchente, que jaz na entrada da ruela, e que apodrece dia a dia, deixando um odor de carniça e o medo das doenças. “Por favor, será que a senhora pode pedir pra alguém vir buscar? A gente já tentou, mas não conseguiu”, pede um morador, que me identifica como jornalista.

Neste domingo, dia sem chuva, foi o terceiro de tentativa de limpeza da casa, fui lá. Não foi fácil caminhar, pois o barro é profundo, gelatinoso, grudento, escorregadio e escuro. Há locais com água empoçada, o cheiro de ratos e outros animais mortos empesteia tudo. O enjoo vai tomando conta, assim como vamos sendo tomadas a cada instante por um sentimento de solidariedade e de revolta. Que gente lutadora e resiliente. Quanta valentia das mulheres, de famílias inteiras que empunham rodos, vassouras, escovas, mostram casas de pessoas idosas que jamais as verão de novo, pois não resistiriam à dor do retorno. Quanto descaso do poder público.

Mônica, a mãe e irmãs, toda a vila simples, mas de casas construídas pelas próprias mãos, retirava entulhos para as ruas, formando montanhas. Não há quase espaço para o tráfego de carros. A prefeitura não foi buscar os descartes. A limpeza se faz em mutirões familiares, mas a água vem em forma de um fio, sem pressão para uma mangueira, muito menos uma máquina de lava jato. Não se viu nenhuma presença do poder público municipal ou estadual neste bairro, o mais atingido de Porto Alegre. No Sarandi vivem cerca de 40 mil pessoas. Lá deveriam estar circulando caminhões para resgate de animais mortos, de descartes contaminados, de máquinas para lavar as casas e as ruas, de caminhões pipa, de água vertendo em volume para permitir que as pessoas tentem recuperar o que podem.


A capa do caderno traz a cena de um porto, com navios e edifícios antigos / Foto: Télia Negrão

Há um sentimento de abandono total, revolta contra tudo e todos, e a compreensão de que a prefeitura não existe enquanto responsável pela proteção das pessoas. Alguns dos atingidos conseguiram sacar o auxílio de R$ 5.100. Outros esperam pela análise do cadastro. Outros acham que o poder público deliberadamente os deixou à míngua. Mas a expectativa é maior, pois se trata de reconstruir a vida. Quem perdeu quase tudo, ou tudo, quer um lugar para morar, e agora as políticas federais são a única esperança.

Enquanto conversamos com Mônica e sua família, pedaços de teto vêm abaixo. É um lugar perigoso, pisa-se em água misturada com dejetos, enxerga-se o que foi um dia um banheiro, uma cozinha, um jardim, uma folhagem, um pequeno altar com uma Iemanjá, um varal de roupas endurecidas pelo barro, como uma escultura.

A deputada Maria do Rosário, convidada pela cabeleireira Mônica para ver a situação e orientar sobre o acesso a programas federais, é cercada por moradores. O sentimento de tristeza frente a tanto estrago e tanta perda tem que ser revertido pela informação, pela consciência de que têm diretos e até mesmo com fé. Não há como esses encontros serem feitos sem abraços, sem muito choro e histórias familiares de como construíram o que agora são escombros.


A deputada Maria do Rosário, convidada pela cabeleireira Mônica para ver a situação e orientar sobre o acesso a programas federais, é cercada por moradores / Foto: Télia Negrão

A esperança agora está nos dias de sol que prometem nesta semana, na expectativa e necessidade urgente da chegada das políticas públicas e na manutenção da crença de que é possível transformar esta realidade.

A localização do diário de Aguida naqueles escombros me obrigou a escrever um texto. Não li nenhuma de suas notas e o deixei no lugar onde estava, seguindo sua própria história. Mas imaginei que, se escrito ainda hoje, possivelmente Aguida contaria no seu diário como foi fugir das águas revoltas que levaram vidas, pertences e memórias. Faria perguntas sobre as causas deste desastre anunciado, só explicável pela forma como a cidade se espalhou, sem dar espaço para que as águas ocupassem lugares que lhes pertence, e sem que tivessem sido tomadas providências para evitar tanto dano e agora tanto abandono. E quem sabe um final de esperança. Quem sabe?

* Telia Negrão é jornalista e cientista política. Integrante do coletivo Querela Jornalistas Feministas.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


Edição: Katia Marko