Uma homenagem à minha professora Maria da Conceição Tavares
Vamos procurar aqui expor uma compreensão da sociedade contemporânea. Ela passa pela maneira como o capitalismo se desenvolve. E trata de mostrar como se projeta e, de uma forma ou de outra, atravessa todas as esferas do mundo atual. Que significa isso? Que podemos perceber nitidamente as formas de existência da sociedade, dos grupos sociais, da economia, da política e da cultura. E chegamos assim à organização e à dinâmica do mundo, que não é outra do que aquela provisionada pela liderança financeira. Portanto, uma liderança econômica. E que se articula e se expande com uma expressão política, o neoliberalismo. Estamos tratando de dizer que, para compreender o contemporâneo, temos que partir da economia política. Capitalismo financeiro e neoliberalismo.
Em economia, a liderança de um tipo de capital, o capital financeiro, exporta as suas formas de lucratividade – no caso, os seus lucros especulativos – para o comportamento dos outros tipos de capital: O capital industrial, o capital comercial, o capital agrário, o capital em serviços. Todos eles têm circuitos próprios de realização com peculiaridades típicas. Contudo, quando a liderança é das finanças, como agora, se desenvolve um outro efeito, uma determinação extra, na verdade, uma sobredeterminação. E cada um destes capitais, além de sua dinâmica própria, tenta alcançar uma taxa de lucratividade a mais próxima possível da lucratividade especulativa do capital financeiro.
Assim como na época da hegemonia do capital industrial, quando todos os capitais jogavam para ter uma lucratividade ao redor daquela da indústria, hoje, quando as finanças dão as cartas, é o desempenho e o resultado financeiro que atraem a lucratividade de todos os capitais. Estes, aliás, ampliam parte de seus rendimentos próprios inúmeras vezes em aplicações no circuito das finanças. Tratam assim de ter um lucro especulativo extra com e como o próprio capital da área. Ou seja, toda a sociedade está envolta na dimensão do capital que puxa a sociedade, o capital líder. É a busca de toda a sociedade por seguir o seu exemplo, o seu modelo, a sua dinâmica e a sua potência, simplesmente com dinheiro dando mais dinheiro.
E emerge daí então o que Walter Benjamin chamava da religião do dinheiro, que é o efeito de uma realidade maior, a religião do capital.
Como as empresas fazem política
Para entender nosso tempo, é preciso avançar nesta direção e assumir que a economia é política. No Brasil, a trajetória dos capitais e seus aliados se dá através de meios financeiros de apoio a candidatos majoritários. Prefeitos, governadores e presidente da República. Mas trabalham também para constituir uma representação legislativa, uma bancada sua (vereadores, deputados estaduais e federais, senadores). Junto com estes dois financiamentos culminam por assegurar, muitas vezes, um certo domínio de postos de diversos níveis executivos: municipal, estadual e federal. É, de um modo geral, um grupo de defesa das ideias da facção acima, que leva o poético e simpático nome de “mercado”... Nesse sentido, é que se constrói e se consolida o domínio e a concentração do poder econômico e político da sociedade.
E após as eleições, o Executivo estando em pé, os grupos acima, apesar de serem contra os políticos e o Estado desenvolvimentista e de indicarem e terem gente nos postos do Executivo, exercem dupla pressão. De um lado, uma preciosa mídia está de prontidão para o ataque ao Estado, ouvindo políticos e empresários dispostos a avançar e estar na luta de frente desta guerra. Objetivo: transformar toda a política em política das empresas. E, de outro lado, por mais que critiquem, os capitalistas estando em dificuldades, ameaçados por uma crise do capitalismo ou por deficiência de sua direção, sempre saem a correr e bater à porta do Estado: Uma grana na minha caixa! Recentemente, a Fiergs pediu ajuda ao governo federal de 100 bilhões para enfrentar as dificuldades oriundas de problemas diversos causados pela enchente nos pampas.
O paradoxo do Estado
Todo o propósito do movimento empresarial é concentrar o poder econômico e político no Estado. Mas, de forma paradoxal! E aí vem a proposta: Estado mínimo e Estado forte. O jogo das finanças é desfazer o Estado desenvolvimentista que age centrado numa política econômica, que articula o poder estatal, o capital, trabalhadores e a sociedade, sem que esta deixe de ser capitalista. A nova proposta agora é fazer um Estado mínimo, um Estado para a maior liberdade das empresas. O que isso quer dizer? Significa que o capital define a política econômica e social. Nesse movimento suprime sempre alguma coisa da política trabalhista, como fez Temer no seu período presidencial.
Contudo, o ponto mais contundente é desativar o Estado do seu poder. As empresas estatais entram em processo de privatização e as instituições públicas de pesquisa, que poderiam se contrapor tecnicamente a esta meta, são liquidadas. Aqui está a chave decisiva: Todo o objetivo é eliminar o poder do Estado de arbitrar o conflito entre capital e trabalho, capital e população, capital e sociedade. E, principalmente, recusar uma trajetória de desenvolvimento planejada pelo poder Executivo. Em suma, liquidar a alavanca de Arquimedes do desenvolvimentismo socioeconômico. Partindo do alto, partindo da liderança do Estado nacional.
Como é possível fazer isso? Transformando, via Legislativo e via a tomada do poder do Executivo, a capacidade de projetar, planejar e executar. Simplesmente mudando o Norte: Conceber e executar uma política de desenvolvimento do capital pelo Estado. Tudo com um novo foco, uma nova roupagem, um projeto alternativo. Nesta nova posição, o novo poder se lança nos atos e nos embates com ação definida: A favor do capital. Por isso é que a política econômica e financeira pende totalmente, através da Fazenda e do Banco Central – postos gulosamente cobiçados e muitas vezes obtidos – para políticas financeiras. O manejo da taxa de juros torna-se o ponto central da economia, o padrão mínimo das operações econômicas em todas as suas dimensões. E como consequência, os incentivos possíveis às finanças são dados sob todos os dispositivos viáveis.
É importante dizer que o capital tenta assumir a direção estratégica do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. Isto faz parte de sua luta, de sua guerra política. Este é o plano de domínio abrangente das finanças, porque, então, todas as políticas e o rumo da sociedade passarão a ser “financeirizadas”. O Executivo fixa posição para favorecer o interesse deste bloco de poder. Isso inclui todas as políticas de Estado. Desde a eliminação do planejamento público até as distintas políticas econômicas, sociais, ambientais, habitacionais, como aquelas que tratam da saúde, da educação e da cultura. (Por exemplo: O que é a lei Rouanet senão a política cultural definida, aprovada e concedida pelas empresas?).
Falamos do Estado mínimo, cuja finalidade é ter um Executivo que deve ser composto por um presidente da República, um ministro da Fazenda, um presidente independente (sic!) do Banco Central. Planejamento, política econômica, política social, política de saúde e política previdenciária decididas e feitas pelas empresas. Tudo privado.
Mas atenção: Nem só de Estado mínimo pode viver a sociedade. É preciso um Estado forte, que se estruturaria em cima das Forças Armadas e Forças Policiais para a ordem e a segurança. Enquanto que o Judiciário deve ser sólido com o objetivo de praticar a justiça desse “novo mundo”. Mas é preciso uma concepção de sociedade, uma ideologia que marque a nova etapa da história do capitalismo. Porque aqui está a chave das finanças e seu braço político e ideológico, o neoliberalismo. Ela constitui a base para a arquitetura do Estado desenhado para armar, no concreto, o Estado do bloco econômico financeiro, industrial, comercial, imobiliário, agrícola e de serviços. Dito de outro modo: Para a grande, a média e a pequena empresa. Elas sabem o que é melhor para a população, partindo do que é substancial para este amplo setor líder da economia política. Isto passa acima inclusive do confronto à morte entre as próprias empresas pela concorrência intercapitalista. O capitalismo é um sistema concorrencial, de cima abaixo. Mas tem uma comunidade de objetivos. Hoje, a liderança da história do capitalismo é financeira.
A barreira do meio ambiente
No meio deste seu arranjo lógico, o capital encontra uma sutil barreira. Trata-se da problemática do meio ambiente. Mas duas coisas são assustadoras. A primeira: As empresas que sabem tudo e sabem até o que é bom para o sabor da vida, se esqueceram de entender o que está influenciando no clima do seu lugar. A segunda: O que pensam as empresas e o que pensa o Estado mínimo e forte sobre o meio ambiente? Nada. Por quê? O imediatismo da luta social desse Estado deixa tudo para depois ou faz um protocolo pró-forma. O papel aceita tudo! Ou, ainda, abandona o que vinha fazendo porque nesse momento parece não ser necessário. É uma visão sem passado e sem futuro. O instante do presente. E mais, o presente revela que uma política adequada tem custo. E custo, o governante e o dirigente pensam: “Custo, a gente corta!”.
Só para dar materialidade regional a este panorama, eis o que aconteceu no Rio Grande do Sul. Primeiro, vamos mandar para casa esse pessoal que acha que sabe da vida, pois fizeram um cursinho do saber universitário. Estamos falando do saber econômico, ambiental, sociológico, industrial, urbanístico, arquitetônico, geográfico etc etc. Vejam um exemplo do que aconteceu nesta luta: Instituições como a Zoobotânica, a Metroplan, a Cientec, a FEE, a Fepagro e outras, instituições que pensavam o RS estrategicamente, foram destruídas pelo governador Sartori e seu vice Cairoli.
Provavelmente pensavam assim: “Estes técnicos querem saber mais do que nós sabemos do Rio Grande, nós que produzimos a riqueza do Rio Grande. Nós que somos herdeiros da Revolução Farroupilha, das nossas façanhas. Nós sabemos o que queremos”. E “Não somos negacionistas”. Este grupo social e político segue o caminho do desenvolvimento financeiro. “E o Estado tem obrigação de nos servir. A concorrência nacional e internacional está selvagem”. “Que meio ambiente que nada, isso é tudo conversa de gente chata, de quem gosta de mato e bicho preguiça”. Ou seja, é uma luta política, uma guerra civil contra uma visão desenvolvimentista, com perspectivas sociais, científicas e culturais, um combate insano. E alimentando a população – muitas vezes – com êxito de uma visão claramente antipopulação, com palavras habilmente escolhidas. Por exemplo: Estado mínimo, liberdade, pautas de governo, mercado, déficit zero, aumento da taxa de juro para derrubar a inflação e desenvolver depois e, sobretudo, com a máxima: O setor privado administra melhor que o setor público. Pois é nessa direção que vem agindo aqui no RS e aqui em Porto Alegre o governador Leite e o prefeito Melo.
O sumiço tecnológico do operariado e o surgimento de uma nova figura econômico-política
Um dos grandes movimentos do capital, na concorrência intercapitalista e também para deter a pressão salarial, põe a sua inteligência e as suas pesquisas na direção de incrementar o seu lucro. Surge no cenário a criação de novas tecnologias. A presença, historicamente recente, da tecnologia digital, transformou completamente o capitalismo e a sociedade. Conduziu as finanças a acelerar a velocidade de suas operações e a instantaneidade do mercado financeiro mundial. E a indústria a diminuir seus problemas de mão de obra, dispensando grande parte do proletariado, deixando no desemprego multidões de pessoas.
Assim nós não teremos mais o que Marx chamou de “exército industrial de reserva”. Teremos sim, “o exército de eliminados socialmente pelo capital”. Candidatos ao desemprego ou à escravidão. Ou – e aqui está a grande novidade – de tornarem-se empreendedores. Que são, na verdade do neoliberalismo, capital humano. E que são, como disseram Dardot e Laval, subjetividades contábil-financeira.
Mas de onde vêm esses empreendedores?
Vêm do efeito da introdução da revolução tecnológica do digital e da própria indústria digital, que, ao eliminar a mão de obra, provocam uma multidão de trabalhadores ociosos, que precisam então sobreviver através do Uber, dos iFood ou montar um salão de beleza ou uma equipe de fornecimento de comida para residências etc. Isso, se no desespero, sobretudo em países líderes do Ocidente, não se tornem soldados voluntários ou mercenários em guerras como a da Ucrânia.
A maioria das atividades fora de proteção legal como tem a mão de obra do processo tradicional, porque são empresários! E o futuro contra problemas de saúde, de idade, de surpresas da vida, um bom número de empreendedores acredita que a poupança e a aplicação financeira resolvem, exatamente porque creem nas soluções das finanças. Será que levam em consideração o bloqueio das poupanças no governo Collor ou as crises cíclicas da economia capitalista, como a que ocorreu em 2008?
Esta linha vertiginosa, que sai da mudança tecnológica e joga uma população em busca de soluções pessoais ou em pequenos grupos, introduz um novo personagem e uma nova ideologia: O empreendedor e o empreendedorismo. A felicidade de não ter patrão, de trabalhar na hora que bem quiser. Não querer ter sindicatos e associações, e estar contente com o seu esforço, livre de empregadores e escolher trabalhar 12, 14 horas num dia, por exemplo. E ainda ser contra a presença do Estado. Robustece assim uma construção do capital, a forma mínima de ter empreendimento, que se torna o modo possível de recuperação de vida e de ganho monetário por parte das pessoas.
A empresa se torna, então, o modelo para tudo: Para o Estado, para negócios econômicos e para a vida de cada um e cada uma na sociedade. E torna-se um pensamento social predominante. E cada sujeito trabalhador se concretiza, no mundo contemporâneo, como um ser de empreendimentos. Como já se disse: Um ser contábil-financeiro.
Fecha-se o atual círculo histórico do capital: Desenvolvimento desde o capitalismo comercial passando pelo capital industrial e chegando ao atual capitalismo financeiro, transformando o Estado em empresa financeira, e o novo mundo aparece: Do sumiço do operariado e o surgimento do empreendedor. A construção se faz em torno do neoliberalismo, o esplendor social e político das finanças. Isto sugere que a forma econômica destes agentes é estar inseridos na cadeia produtiva social e na corrente política oriundas do capital financeiro. E agem no sentido da ampliação desta ordem corrente.
Capital-dinheiro, com dinheiro aplicado, dá mais capital-dinheiro. As finanças seguem o seu roteiro social: Muda o Estado e o cidadão. Um novo ser político da nova sociedade: O empreendedor. E a roda do mundo se amplia. O mundo social todo se reformula. Passa a dançar a religião do dinheiro. Como disse um professor americano deslumbrado: O “empreendedorismo move o mundo”.
Um exemplo espetacular disso é o futebol. Os clubes vão se transformando em sociedades anônimas, e dirigentes, jogadores e técnicos se vêm no duplo estatuto: O clube como capital e os jogadores e os técnicos como empreendedores (que têm assessores, também empreendedores, de todo o tipo). E eles, os jogadores, estão acompanhados geralmente com a ideologia religiosa, “graças a Deus”, por ser um sucesso como capital humano. E o sucesso é tão grande que a máquina do futebol-capital, que gira tudo em torno do dinheiro que dá mais dinheiro, constrói a mundialização do futebol feminino, para o deleite e a glória social. Compulsoriamente, através do fenômeno da expansão das empresas – os clubes – e do empreendedorismo – os técnicos e as jogadoras.
Em síntese: O protagonismo das finanças reformula a sociedade e o Estado, põe o domínio do capital sob as figuras da empresa e do empreendedor, exalando a ideia e a ideologia fulgurante do empreendedorismo. Assim se estabelece uma tensão, uma dialética criativa entre as finanças e o neoliberalismo que promove, em novos moldes, uma realidade histórico-societária.
O passo da geopolítica
Todavia é necessário conquistar o mundo, e tudo avançou, depois da 2ª Guerra Mundial, com os Estados Unidos, gênio industrial do liberalismo e, recentemente, do neoliberalismo, gênio financeiro. O que era nacional saiu para o mundo tentando comandá-lo. A sua ênfase se dá em dois movimentos:
1 - Fazer do Estado uma empresa que deve ser comandada, na teoria e no desejo, por um Executivo. Ou, na pretensão maior, pretensão agora do século XXI, uma ampliação da democracia empresarial. A ideia vigorosa de um comitê de empresários no topo do comando político. Suprimindo, evidentemente, a política partidária, vista como corrupta e ineficiente.
2 - Expandir, ainda na forma do atual Estado, a sua influência na geopolítica mundial, com a finalidade de destruição dos adversários do Ocidente e da dita liberdade. No caso, há uma busca de encontrar meios para derrubar a multipolaridade da China e da Rússia e, no limite, a dos BRICS, para consagrar um estado global hegemonizado pelo próprio Ocidente. E liderado pelos Estados Unidos. No horizonte de uma luta dos contrários, no limite, temos a 3ª Guerra Mundial, cujo objetivo seria de suprimir o lado de lá. Como? E por quê?
Quem pode com o capitalismo senão o próprio capitalismo?
O Ocidente tem um adversário forte, também capitalista, mas de outra ordem, um capitalismo de Estado, onde o Estado é que organiza a sociedade. Logo, um capitalismo que se preocupa em estar bem com a população. Não houve a passagem para o socialismo, e suas tentativas, na verdade, provocaram um retorno ao capitalismo. Só que com a hegemonia do Estado.
Em que consiste isso?
O exemplo principal é a liderança da China. Usando o planejamento público, organiza hegemonicamente a produção, disciplinando as instituições financeiras, administrando através de políticas públicas os conflitos econômicos e sociais, e respondendo, sob estes aspectos, por uma outra geopolítica mundial, disputando a liderança da sociedade do planeta. Estamos no interior do conflito entre o capitalismo financeiro e o capitalismo de Estado. O capitalismo de Estado não é um socialismo de mercado, porque a hegemonia continua sendo do capital, mas leva junto um processo de socialização. Os meios de produção são do Estado ou são de propriedade de capitalistas. Contudo, é o Estado quem dá a direção do movimento produtivo e financeiro. E se a política é a autora e dirige a peça de teatro do mundo, os trabalhadores podem ser contemplados. Isto não anula os conflitos políticos do capitalismo, mesmo os de Estado.
Os financistas chineses e internacionais têm tentado virar o jogo, mas até agora foram disciplinados pelos governantes. O que importa é que a luta entre os grupos sociais tem sido conduzida, sempre que possível, na direção popular. Sem esquecer que, no plano geopolítico, na questão do investimento, a China tem a Rota da Seda, que é um plano para desenvolver as infraestruturas diversas dos países, de acordo com as necessidades de cada um. Seja infraestrutura marítima, portuária e de armazenagem, seja infraestrutura do transporte ferroviário, seja infraestrutura rodoviária, seja infraestrutura aérea, seja infraestrutura digital, ou seja, mesmo uma proposta de um novo mundo, como os Estados Unidos fizeram após a 2ª Guerra Mundial na reconstrução da Europa com o plano Marshall.
Com isso se desenha o perfil geopolítico do momento, o confronto entre a unipolaridade do Ocidente americano e a multipolaridade chinesa-russa. Aqui, a dimensão bélica soa diferente. A China se alia à potência nuclear militar russa, para dar um para-te quieto nos Estados Unidos, pois na sua atual e visível decadência, exerce uma direção de disputa guerreira contra a China e com a Rússia. Tenta deslocá-las de uma possível liderança através de um combate militar.
Com isso se evidenciaria um novo bloco de poder econômico ocidental, resultado do triunfo das finanças: Capital financeiro digital, capital da indústria digital, capital industrial militar digitalizado, indústria bélica digital, indústria farmacêutica, indústria de infraestrutura, indústria imobiliária. Este novo grupo se desenvolve por meio dos Estados Unidos e da Europa via OTAN, num confronto estatal com o Oriente, buscando destruí-lo ou envolvê-lo na sua direção. Temos a contenda entre a unipolaridade dos Estados Unidos e a multipolaridade China-Rússia. E como escreve, com toda a razão, nosso pensador geopolítico José Luiz Fiori, este conflito está indefinido.
A linha tracejada do capital
A realidade contemporânea tem uma articulação precisa e lutas políticas nítidas. Vão das finanças, passando pela organização do Estado, armando uma frente geopolítica, que as pessoas enxergam difusamente, já que voltadas para o seu dia a dia não percebem os liames efetivos. Mesmo porque o capitalismo financeiro evita a nudez de seus lances com ideologias adequadas ao seu triunfo, como o neoliberalismo (e dentro dela a volta por cima dos desempregados através do empreendedorismo) e a religião do dinheiro. Ou até mesmo ideologias parciais como a força das religiões pentecostais, ou ideologias de ordem econômicas como a política do Banco Central de aumento da taxa de juros para evitar a inflação, como déficit zero para bloquear gastos excessivos e, naturalmente, para parar uma política social mais ampla e efetiva etc.
É preciso salientar que a imensa influência e a ação do capital financeiro na sua amplitude não são vistas pela sociedade, porque elas emergem como se fossem uma linha descontínua nos seus aspectos diversos. As visões ideológicas das finanças triunfam. Vamos usar aqui a metáfora da linha tracejada para entendermos como operam. A população percebe apenas aspectos pontuais, traços e traços do movimento da sociedade. Com a música ambiental do neoliberalismo e a banda de coreto da mídia, ela acompanha esse tracejado sem crítica. A função da melodia é precisa, vai cauterizando as feridas econômicas e sociais. Entram palavras robustas e distantes da realidade presente. E amarra tudo como se fosse a liberdade da população face ao Estado. Engano: A liberdade é para as finanças se expandirem sem muro de contenções.
Assim, o capital financeiro faz o seu papel na economia buscando aplicações que tornam o dinheiro em mais dinheiro. Mas, a população não enxerga os movimentos atrás dos bastidores. Não consegue verificar a ação política de montar uma estratégia na área que envolve toda a busca de domínio do Estado e a desmontagem do Estado desenvolvimentista no rumo de um Estado mínimo. E igualmente o Estado forte, com uma nova estruturação do poder militar e policial. Estamos em pleno tracejamento, porque não se apreende a passagem do plano econômico para o plano político, nem do político mais amplo e o político institucional e do plano nacional para o plano internacional. Um esforço absoluto de desligamento do mundo atual, para destruir o Estado construído e legado pela política de desenvolvimento. Percebemos o efeito: A ligação não aparece. O que temos são traços separados por brancos de inteligibilidade.
Então, a política que o neoliberalismo vai implantando se faz à solta porque o Estado vai se desmontando como Estado: Uma política de arruinar o aparelho estatal e suas funções. E aí entra o Estado se privatizando em benefício do setor privado e abandonando as políticas sociais, até mesmo de saúde, previdência, meio ambiente e educação. Ou seja, o capital financeiro vai desarmando e desmontando toda a construção efetuada na época da hegemonia e do desenvolvimento industrial.
Este tracejamento se amplia com a abertura para o exterior, onde o novo Estado avança desde a nação líder, unindo a corrente ocidental. O alvo é obter vantagens econômicas e políticas, inclusive de seus liderados. Trabalha para organizá-los com o fim de demolir o bloco do capitalismo de Estado e seus aliados. E é todo um conjunto de políticas explícitas e políticas híbridas para reforçar a posição do capitalismo financeiro e derrubar ou absorver o adversário. Isto quer dizer que o capitalismo é um sistema de antagonismo permanente em todos os níveis. E é assim que ele avança. E avança com contundência – para a sua conservação e ampliação. É uma roda gigante tentando alcançar o estágio do círculo perfeito. É o capital dinheiro na busca do seu eterno retorno.
* Enéas de Souza é filósofo, psicanalista, economista e crítico de cinema.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko