Rio Grande do Sul

Coluna

Roda viva 

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Poeta Luiz Beltrame, aos 100 anos, militante do MST - Leonardo Melgarejo
Precisamos criar defesas contra as crises ambientais e as aventuras neoliberais que as alimentam

Chico Buarque escreveu sobre a roda viva. Cantou que a gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas que nos perdemos disso quando somos assediados e amassados pela roda viva, que nos domina e acaba carregando nosso destino pra cá e pra lá. 

Linda música. Um tanto derrotista, é verdade. E certamente ajustada aos anos tristes da ditadura militar. Mas, e felizmente, com frequência desmentida pela energia daqueles que não desistem de enfrentar o acaso, de buscar caminhos para moldar o futuro, se reconstruindo na mesma medida em que contribuem para a formação de outros, em sequência de aprendizados coletivos, qualificadores, cimento da solidariedade popular.

É o que me ocorre revendo a imagem do poeta Luiz Beltrame (famoso por ser o mais idoso dos protagonistas de grandes marchas nacionais pela reforma agrária, e que, em 2024, faria 116 anos) com alguns dos milhares de sem-terrinha resgatados da miséria pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), no aniversário de  25 anos daquela organização (portanto, há 15 anos).

O mesmo sentimento me veio quando assisti O rio só quer passar: tragédia climática no Rio Grande do Sul, um documentário produzido pelo Brasil de Fato. Os autores, com a sensibilidade de dar voz apenas aos verdadeiros protagonistas do drama, vítimas da crise ambiental e atores conscientes de sua recuperação, ao dispensarem aquelas declarações tão freqüentemente repetidas nas grandes redes (por intérpretes distantes do drama real), construíram um relato histórico que nos acerta com falas certeiras, de coração para coração.

As forças da natureza, como ali se escuta, de fato compõem roda que gira acelerada pela ação humana, os defensores do Estado mínimo, a ganância deste modelo de agronegócio, os governantes capturados pelo frenesi das privatizações e os negacionistas em geral têm responsabilidades para com as enxurradas que carregaram o destino de milhões de gaúchos, sabe-se lá para onde.

E os habitantes de todas as áreas de risco, as populações afetadas pelo racismo ambiental estão bem representados na assertiva profunda daquele guarani que diz, no vídeo: “Nós, indígenas, não estamos fazendo isso, mas também estamos sofrendo com isso”. 

A solidariedade dos aflitos, a construção de laços enunciadores do reconhecimento da importância das interdependências, se revela de maneira pungente quando ex-acampados de barracas de lona preta, ex-sem-terra, hoje assentados de reforma agrária, distribuem comida para famílias de pequenos empresários até ontem orgulhosos de pertencer a territórios eleitoralmente comprometidos com o negacionismo bolsonarista, como foram os vales dos rios das Antas e Taquari.

Disso me veio a sensação objetiva, inegável, de que precisamos retomar a interiorização de valores e o fortalecimento de organizações orientadas por decisões que vão além daquele conceito “meritocrático” fajuto, onde se supõe que a vida em sociedade deva se orientar por disputas que enaltecem os mais bem sucedidos na captura de recursos, onde mais valem, e inclusive devem ser imitados, tão somente aqueles que mais produzem e mais acumulam dinheiro.

Afinal, a crise ambiental gaúcha está mostrando, como falou aquele cacique guarani, onde isso nos leva:  “Agora é que está começando isso”, disse, evidenciando que precisaremos estabelecer, com urgência, novas formas de agir. 

E aqui se unem, em meu sentimento, os alertas de Davi Kopenawa com as atitudes de Luiz Beltrame.  


Arte/MST

Kopenawa já havia anunciado que a nossa civilização, com a depredação das fundações e da cobertura viva dos solos, está destruindo as bases do ecossistema terrestre.

Para ele, tudo seria consequência do abandono de valores reais, por parte de lideranças capturadas pela ganância da acumulação de dinheiro. Por isso, estariam sendo invisibilizados aqueles que menos produzem riqueza e mais precisam de cuidados. Abandonados ou jogados em asilos e creches, idosos e crianças perderiam suas conexões, interrompendo-se (com isso) a linha que une o presente ao passado e ao futuro da história humana. 

A superação deste mecanismo, que responde a um modelo de desenvolvimento equivocado, exige consciência e lutas coletivas que necessariamente levarão ao enfrentamento das práticas e regras que aguçam desigualdades e dão existência às tragédias.

E as grandes marchas de que participou Luiz Beltrame mostram algo que só não enxerga quem pretenda ocultar a verdade básica: somos melhores quando buscamos, de forma coletiva, a realização de compromissos dos adultos para com a realização dos sonhos das crianças. De todas as crianças.

E de fato, para isso precisamos de um projeto comum, que articule diferentes grupos. Trata-se de construção nada simples, mas que talvez possa ser alimentada por ações que já ocorrem aproximando grupos que militam em áreas aparentemente distintas, como a ecologia, a arte e a ciência, e o cuidado dos atingidos por toda forma de iniquidade, em busca de uma ética da solidariedade comum, em uma grande pátria soberana. 

Precisamos ampliar estas alianças e seus processos de educação conscientizadora. Precisamos expandir a produção e as condições de acesso a alimentos sadios, com proteção ambiental e com o plantio de milhões de árvores

Precisamos criar defesas contra futuras crises ambientais e as aventuras neoliberais que as alimentam.

Trata-se, como um todo, de enfrentar a roda viva envolvendo todas as gerações com que compartilhamos, neste espaço, os caminhos que podem levar à emancipação humana. E para isso, dentro de seus limites, cada um pode fazer sua parte.

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko