Ao mesmo tempo em que se garante comida, casas, emprego e renda, é hora de diálogo
Primeira semana de junho de 2024, semana do Dia Mundial do Meio Ambiente, o sol, feliz e finalmente, voltou em Santa Emília, Venâncio Aires, onde continuo “ilhado”. É hora e tempo de reconstrução no e do Rio Grande do Sul, ainda no meio da dor, do sofrimento, das mortes e da destruição geral. As marcas das enchentes, dos temporais, da quantidade de água e chuva jamais vistas nos pagos gaúchos continuam mais que presentes na vida das famílias, das comunidades por todo estado, 40 dias depois do início da tragédia e do caos geral.
Hora e tempo de pensar e refletir sobre o que aconteceu e ainda está acontecendo, cabeça e coração um pouco mais calmos. Estamos numa crise civilizatória. No caso, em primeiro lugar, o sinal são as mudanças climáticas em curso, não só no Rio Grande do Sul, mas também no Brasil e no mundo. A pergunta inevitável: à luz dos acontecimentos recentes, como será e como estarão o meio ambiente, a natureza e as condições de vida e sobrevivência nas próximas décadas, em 2051, por exemplo, quando chegarei aos 100 anos?
O capitalismo neoliberal predador, associado ao pensamento conservador, sempre na ganância do lucro e da preservação do mercado, e o consumismo reinante continuam sem dar maior atenção ao cuidado com a Casa Comum. A vida está em jogo. O planeta terra está em risco. A democracia está sob ameaça diária. A organização e a capacidade de doação da sociedade foram, felizmente, mostradas na solidariedade de gaúchas e gaúchos, de brasileiras e brasileiros e mesmo do mundo inteiro. A expressão “ninguém solta a mão de ninguém”, surgida em tempos de neofascismo, nunca foi tão vivida no cotidiano e na ação concreta de todas e todos.
É fundamental e urgente voltar a discutir um projeto estratégico de sociedade e de Brasil. Qual o papel do Estado? Qual a relação dos governos com a sociedade? Como construir políticas públicas com participação social, abandonadas nos últimos anos em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul e no Brasil? Como garantir e afirmar a democracia e o cuidado com a Casa Comum?
No plano mais imediato, em meio à solidariedade, com as Cozinhas Solidárias e Comunitárias e tantas outras iniciativas de movimentos sociais e populares, de ONGs, de igrejas e pastorais, de escolas e universidades, é hora e momento de, à luz da pedagogia de Paulo Freire, fazer e incentivar a Formação na Ação. Agir e formar, formar e agir. Ao mesmo tempo em que se garantem a comida, a reconstrução das casas, o emprego e a renda, é hora e tempo do diálogo com as pessoas, especialmente as mais pobres entre os pobres, com as comunidades, perguntar sobre as causas dos acontecimentos, discutir a vida e o futuro, organizar as comunidades em torno dos problemas comuns. Assim, constrói-se uma sociedade democrática, com protagonismo popular, com cidadania, onde todas e todos participam da construção comum, com consciência social e política.
O Orçamento Participativo, surgido no contexto da frase famosa dos Fóruns Sociais Mundiais em Porto Alegre, “um outro mundo possível”, foi o exemplo, e continua sendo, de como tratar os recursos públicos e de como cuidar coletiva e solidariamente da Casa Comum. O cuidado com a Casa Comum, como vem dizendo e anunciando o Papa Francisco, coloca-se nas prioridades de todo mundo. Isso exige e coloca enfrentar a desigualdade social e econômica, fazer da política e do poder um serviço da e para a maioria e não apenas de alguns poucos milionários e bilionários.
Há uma oportunidade especial para isso em 2024, no processo eleitoral municipal de outubro. Todos os programas eleitorais de outubro devem abrir espaço e colocar este debate no centro do programas que candidatas e candidatos a prefeita e prefeito, vereadoras e vereadores vão defender. Eleitoras e eleitoras vão pautar seu voto na reconstrução da natureza e na boa harmonia entre meio ambiente, pessoas e comunidades, de ter matas ciliares em todos os rios e riachos, de estimular a agroecologia e a produção orgânica, entre outras muitas propostas de uma sociedade do Bem Viver. Assim, talvez, a sociedade, à luz do caos e da tragédia, possa acordar, exigindo a responsabilização dos poderes públicos e dos governos que pouco ou nada fizeram para evitar ou diminuir o desastre em Porto Alegre e na quase totalidade dos 497 municípios gaúchos.
Antes que os tempos apocalípticos se consolidem, como escreve profeticamente Leonardo Boff, em Tempos apocalípticos, os nossos?, publicado no site Brasil 247, no dia 5 de junho. O tempo urge e ruge.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko