Rio Grande do Sul

ARTIGO

Neoliberais não merecem lágrimas

'O impasse existencial frente a tragédia do mundo precisa se transformar numa abertura efetiva para a ação'

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Precisamos de uma abertura emocional em que a tristeza da tragédia seja a base para a recusa da política hegemônica neoliberal" - Rafa Dotti

“Quando você é a vítima sempre, você acaba aceitando.”

“Poucas coisas são mais perigosas que desfavorecidos que não tem nada a perder.”
Série coreana The 8 show

Um homem chora. Ele está dando depoimento a uma repórter. Ele mostra a casa destruída pela enchente. Seu rosto está fechado, ele responde às perguntas com dificuldade, ele contém o choro. A cena evoca a imagem de Oscar Gustave Reijlander, “criança em lágrima”, retrato incluído na obra de Charles Darwin, “A expressão das emoções nos homens e nos animais”, de 1872. Na foto, Darwin viu o choro contido pelas mãos do irmão que segura uma criança.

A descrição é ponto de partida de Georges Didi-Huberman em seu “Povo em lágrimas, povo em armas”(N-1  edições, 2021) “chorar: expressar através de gestos e lágrimas, uma emoção ou um páthos. É a reação espontânea a um sofrimento vindo do interior ou do exterior. É um gesto humano primitivo”. A obra de Huberman é a análise de uma única cena do célebre O encouraçado Potemkin que é usada para mostrar o caráter coletivo e revolucionário da dor e, por isso, oferece significações para a tragédia gaúcha.

Huberman diz que o choro é uma dor soberana, que extravasa os limites da nossa simples pessoa porque “é diante dos olhos dos outros que deixamos, independente da nossa vontade, que exploda nossa emoção”. Quando o pathós se expõe, ele leva a desfiguração, e você ouve os soluços do homem que chora suas perdas, vê que sua fala é entrecortada. Ele é uma vítima da enchente e se contorce por isso. Não foi apenas seu mundo que naufragou, “seu olhar se afoga nas lágrimas”. Esse homem que chora não tem poder. Ele chora diante dos outros, diante da comunidade para expor seu impoder, seu abandono. É sua humilhação, diz Huberman. Ele se torna a imagem da desolação que a câmera percorre em travelling.

A reportagem corta para a cena de um abrigo público, onde as vítimas da enchente também dão depoimentos. Elas se lamentam de perderem tudo, novamente falam de sua impotência. Huberman diz que essa é a pobreza de povos inteiros “não apenas porque estão materialmente necessitados, famintos ou aterrorizados, não apenas porque são politicamente sub-representados, mas também porque, sempre sofrendo humilhações, alienação, opressão, correndo o risco de ser extintos, eles se expõem, primeiramente, chorando por sua sina coletiva, expondo apenas seu impoder”. Essa também é a situação de nossos refugiados da enchente que nos comovem por seu choro. Eles estão materialmente necessitados e por isso as campanhas de doações, mas aqui, o que me chama a atenção é essa sub-representação política que agrava seu processo de vitimização. 

Eles gritam pela indiferença dos políticos que resultou no agravamento de sua situação. Olhamos estas reportagens e sentimos um mal estar, começamos a sentir “um ressentimento com as pessoas que ele identifica como aquelas que conseguiram colocar, mais uma vez, toda essa impotência diante dele”. Hubemann diz que devemos saber a quem odiar neste momento. O diretor do DMAE, mais uma vez, vai ao Jornal do Almoço dizer que a chuva que acontece no dia em que escrevo este texto, segunda-feira, 3/6, é apenas “eventual”. Ele não pode ir ao programa dizer isso, gravou antecipadamente. Seu rosto está um pouco constrangido, menos do que as entrevistas que deu nos primeiros dias logo do início da catástrofe, quando podia-se ver “engolindo seco” para responder as perguntas. O mesmo semblante entristecido se via no rosto do Prefeito, que lamentava, consternado, que não podia fazer mais pelas vítimas. Essa tristeza televisionada, estéreo, quer nos comover: é como se quase estivessem também chorando pela tragédia para nos comover. Mas eles são neoliberais, e neoliberais não merecem nossas lágrimas.

Huberman sugere que nesses casos, devemos repensar nossas atitudes, trocar nossa identificação humanitária para explorar as possibilidades de transformação ou de emancipação “ligadas a todas essas figuras em lágrimas. Como elas poderão reencontrar seu rosto e, com ele, sua capacidade de falar, de ver, de querer e de agir?” pergunta Huberman. As vítimas da enchente choram por seu impoder, sua ausência de poder, sua incapacidade de mudar sua condição para evitar o sofrimento. Nessas situações é  preciso pensar dialeticamente como ensina Hegel, de que essa falta é o momento do desejo, o momento em que um caminho é sugerido. Estamos sempre no tempo, isto é, no meio do caminho, quando a enchente ocorre. Huberman lembra que, um século depois de Hegel, Freud diz que se os objetos de nosso desejo são frágeis, são suprimidos, o desejo em si não desaparece, “permanece indestrutível, o que Hegel chama de universalidade da vitalidade”. Nosso privilégio é transformar nosso sofrimento para pôr em movimento o desejo. E o autor vai adiante, em Nietzsche, para dizer que esse choro, esse grito contido está situado num nível mais fundamental, “a fonte original das próprias coisas”.

Essa dor está constantemente sendo trabalhada pela mídia, eternamente retornando em imagens, em depoimentos. Na capital, no interior, cidadãos aos prantos expõem sua dor em lágrimas que só terão sentido se nossa impotência se transformar em potência. Esse paradoxo, páthos do qual Gilles Deleuze já falava que era a verdadeira “potência de transformação”, recolocam que as paixões, ou o sofrimento não é algo fraco, inferior às ações, que teriam a força. Neste ponto, Huberman recupera uma passagem importante da Carta sobre o Humanismo, de M. Heidegger (1946): “Cuidar de uma “coisa” ou de uma “pessoa”, na sua essência, significa amá-las. Esse desejo (mögen) significa, se pensarmos mais originalmente, o dom da essência. Esse desejo é a própria essência do poder (vermögen) que pode não apenas realizar isso ou aquilo, mas fazer com que alguma coisa “se desdobre“ na sua proveniência, ou seja, fazer ser”. Aqui reside o ponto de não retorno chave para nosso imaginário político: as cenas de choro representam cidadãos que não foram cuidados por seus governantes.  

Na canção (jingle) de Sebastião Melo nas eleições de 2020, “Tamo junto, Porto Alegre”, a letra dizia coisas como “Porto Alegre, meu amor, minha vida, meu lar, com Melo, a gente pode contar”. Não pode. Essa declaração de amor não foi cumprida na enchente: ao invés de cuidar do cidadão desprotegido, sua forma de demonstrar amor, o prefeito vai ao Instituto Ling declarar seu amor aos empresários; se há algo que a enchente pode dizer ao cidadão é que seu abandono é prova de seu desamor. Este governo não cuida de seus cidadãos e por isso, eles precisam encontrar nesse choro contido a chave de um desejo de mudança, lembrar a essência de seu poder, o voto. Para o cidadão transformar sua dor em desejo de mudança, transformar sua dor em ação, ele precisa se emancipar das ideologias e crenças que o fazem votar no espectro neoliberal, responsável pelo agravamento das cheias na cidade. É preciso no consolo que fazemos a cada cidadão atingido mostrar que há uma emancipação de tudo isso.

A emoção sempre foi mal vista pela esquerda. Exageradamente desvalorizada, pois evoca pieguice e sentimentalismo para aqueles que querem fazer a revolução, não possui um lugar em qualquer ontologia de transformação radical. Demonstrei em O Paradigma Estético (Clube dos Autores, 2021, disponível em https://abre.ai/jVzf ) como a esquerda perdeu nos anos 80 a possibilidade de um debate político sobre a emoção, que se tornou nos anos seguintes o cavalo de tróia da direita em ascensão. Agora, com milhares de cidadãos entregues a emoção da perda, tornados passivos porque sofrem, eles se colocam no impasse da linguagem que os retira do mundo da ação “a paixão nos deixa sem voz”, na expressão de Hubermann.

As enchentes mexeram com as “paixões das almas“ de todos os gaúchos, as dores causadas nos corpos dos voluntários, dos cidadãos que tem de limpar suas casas também se refletem em sua alma ”e nos levam, por isso mesmo, a nos enganar sobre a natureza das coisas, principalmente porque elas nos informam menos sobre aquilo que é do que sobre aquilo que é útil ou que acreditamos ser”, recupera Huberman em Descartes, de seu Paixão da Alma (1649). Esses sentimentos são tão negativados que, imediatamente após a catástrofe, se afirma a necessidade de acompanhamento de psicólogos, assistentes sociais e psiquiatras conversar com as vítimas como se fossem quadros clínicos somente “nos quais os acessos de choro, por exemplo, entrarão como sintomas com expressão própria”, diz Huberman. Percebem o que falta aqui? Estamos reduzindo o caráter revolucionário do sofrimento dessas pessoas, retirando delas o lugar da indignação – os erros de nossos governantes – para transferí-los para outro lugar, a dimensão de sua subjetividade somente.  

Por essa razão, a contrapartida da necessidade do atendimento psicológico foi sempre o discurso de “não é hora de apontar culpados” e sequer é cogitada uma psicologia das forças no choro desses cidadãos que as retire de  sua situação,  sua função criativa. Apaga-se de agora em diante a pergunta do “porquê?”. Ao canalizar o destino da experiência da dor de uma geração atingida pelas águas, o sistema de representação sígnica do capital ofusca uma realidade tangível, a dor da perda do cidadão. Huberman diz que foi o filósofo Henri Bergson que propõe, ao invés disso, “reconhecer nelas dados imediatos cuja profundidade, variedade e intensidade pode, de fato, perturbar nossa consciência, nossa faculdade representacional ou intelectual”. O cidadão vive em dor, mas é nesse instante que ele vai dando-se conta de como chegou aqui, e vai descobrindo, confusamente, as causas de sua dor “a reversão de perspectiva agora é completa: são as emoções que se revelam, a partir de agora, simples, verdadeiras, profundas, ativas”, diz Huberman.  

Precisamos de uma abertura emocional em que a tristeza da tragédia seja a base para a recusa da política hegemônica neoliberal. Por mais que vivam um drama indescritível, como a mulher que perdeu o marido e o filho para as águas, essas emoções precisam ser recuperadas como forma de compreender o mundo: Huberman diz que Sartre reconheceu a emoção como um “modo da consciência, uma das maneiras que ela compreende seu ser-no-mundo”. A emoção dessas vítimas, portanto, não é algo a ser reelaborado, minimizado, reduzido a pura aparência psicológica: ela é, em primeiro lugar, a ferramenta para constatar a desorganização do mundo: desorganização da proteção, desorganização da rede social, desorganização do mundo vivido que tem uma causa.

Não é o exército de psicólogos que precisa se dirigir para os abrigos, mas o exército de técnicos, de militantes de esquerda, dos profissionais que possam explicar para as vítimas as causas da tragédia. Aqui, a emoção precisa ser assumida em sua frontalidade, em sua capacidade de enfrentamento dos responsáveis. Umberto Eco diz que, “justificar tragédias como “vontade divina” tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas”.  Na cidade de Passo de Estrela, interior do Rio Grande do Sul, a queda da igreja e de sua santa pelas carregadas pelas águas provocou o choro dos moradores. Quando secou a região, e a reportagem retornou ao lugar, à distância podia se ver uma fiel ajoelhada e rezando junto ao local da igreja derrubada. Não, a enchente não é um produto da natureza e nem desígnio dos deuses, não é o destino que nos foi dado pela vontade divina.  O sentimento de que a desordem do mundo é algo que não se pode enfrentar, que lhe é imposto pela natureza precisa ser transformado “em algo assim como uma revolta oblíqua “ diz Huberman. O impasse existencial frente a tragédia do mundo precisa se transformar numa abertura efetiva para a ação.

A emoção tem o poder de nos mostrar a profundidade das coisas. Quando choramos, paramos para pensar no que aconteceu. Então tudo o que foi dito, tudo o que foi criticado, tudo o que é relatado – a falta de conservação, a política de redução do estado – começa a fazer sentido. Você percebe que o que aconteceu não aconteceu num instante, mas vem de longe. O choro “exige de nós uma práxis exploratória, interrogativa. Através do abalo em que ela nos lança, a emoção nos lembra que a nossa visão permanece imparcial, para sempre separada da evidência, mas exigida”, diz Huberman. O autor de se inspira em G.A. Mazis, autor de Merleau-Ponty - habitar as emoções (1989) para quem “a emoção coloca em jogo a existência do sujeito no mundo, é claro, mas também o movimento de uma exigência que visa o conhecimento do mundo, assim como sua transformação”. Se dermos vazão a esse choro contido das vítimas, se a ensinamos que na base da agudização da tragédia está o projeto neoliberal, então, cessas lágrimas terão o destino correto.   

* Doutor em Educação/UFRGS, autor de O êxtase neoliberal (Clube dos Autores).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko