“O Hip Hop tem provado isso há muito tempo. Quando você se organiza, as pessoas, os trabalhadores, os movimentos sociais, essa organização não só alcança bons resultados, mas, de fato, faz com que o coletivo cresça simultaneamente. Não cresça um único indivíduo, mas o coletivo”. A aposta no coletivo é de Rafael Diogo dos Santos, mais conhecido como Rafa Rafuagi, coordenador-geral do Museu da Cultura Hip Hop, em Porto Alegre. O espaço abriu as portas no último sábado (1º) em apoio às pessoas atingidas pelas cheias que ainda causam estragos no Rio Grande do Sul.
“O local não é um espaço fechado a ideias. Ele é parte integrante da sociedade. Logo neste momento em que tantas pessoas estão passando por dificuldades, se torna algo natural – o museu abrir suas portas e estender as mãos para o povo,” comenta Rafuagi.
Com apresentações de batalhas de rimas, de DJs, dos B.boys e das B.girls (dançarinos especializados em breakdance), e de importantes nomes do rap gaúcho, como o icônico grupo Da Guedes, o evento Vem pro Museu Solidário arrecadou três toneladas de alimentos. Artistas de graffiti também participaram da ação. As telas produzidas por eles serão leiloadas e o dinheiro revertido para a ajuda humanitária.
Localizado na Vila Ipiranga, na capital gaúcha, o museu ainda recebeu, do Ministério da Reconstrução do Rio Grande do Sul, 200 colchões, 500 cobertores e 200 cestas básicas. Os itens foram entregues pelo ministro Paulo Pimenta, por meio dos Correios, e irão diretamente para pontos de distribuição da cultura Hip Hop da cidade e região metropolitana.
Também participaram do evento o secretário Nacional da Defesa Civil, Wolnei Wolff; a deputada estadual, Laura Sito; e a gerente de patrocínio da Petrobras, Alessandra Teixeira.
“Eu conheci o projeto há muito tempo. Tive a oportunidade de apresentá-lo na Secretaria de Comunicação Social [Secom]. A Petrobras acreditou na iniciativa e o museu ganhou forças. O Banco do Brasil se tornou parceiro e nós vamos fazer, em novembro, o Festival Nacional do Hip Hop, em comemoração aos 50 anos da cultura no Brasil. Hoje, eu pedi o apoio dos Correios e chegou aqui coisas que o pessoal doou no Brasil inteiro”, comemora Pimenta.
Rafa Rafuagi pontua que há 25 dias vem organizando ações para recolher donativos, e que a ideia do Vem pro Museu Solidário é que, além das contribuições físicas, o evento possa ajudar na saúde mental dessas pessoas que estão passando por um momento de extremo sofrimento. “Essa foi uma forma que a gente encontrou – não só de coletar doações, mas, ao mesmo tempo, trabalhar o psicológico da população”, aponta. Somando os atos ocorridos desde maio até sábado (1º), foram reunidas 250 toneladas de alimentos pelo museu do Hip Hop.
Ele acredita que, em momentos como este é possível exaltar a raiva, mas também o entretenimento e o pensamento crítico. “Ações como as de hoje contribuem para nos tornarmos seres mais pensantes, mais leves – diante de uma série de adversidades que temos enfrentado”, comenta o coordenador-geral. Rafuagi acrescenta que “o Hip Hop faz muito isso em suas letras, traz reflexão. Ele traz um novo ser, uma nova pessoa – em sua atitude, na luta de romper barreiras”.
De acordo com Rafuagi, o Hip Hop sempre atuou no resgate das pessoas, nas diferentes situações de vulnerabilidade social. “Para mim, só confirma o que a gente já sabe e acredita sobre o poder da cultura [Hip Hop]. Em ser uma cultura cidadã e transformadora e mais que isso, uma cultura que realmente nunca esteve indiferente às grandes necessidades ou demandas da sociedade. O movimento nunca esteve alheio a nenhum momento adverso ou obscuro da história. E nesse sentido, isso é a comprovação de que sim, não descansaremos até que tudo isso tenha passado”, complementa Rafuagi, que também é rapper e ativista cultural.
Trabalho social
O ministro da Reconstrução, Paulo Pimenta, destaca o trabalho social feito pelo Hip Hop. “Aqui reúne solidariedade, afeto, cultura, competência, coragem, esperança. Nós precisamos disso para ter força e seguir adiante”, afirma.
Pimenta complementa: “O presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva] disse que não era só para eu vir para cá [RS], mas para ir nas comunidades. Olhar com os meus olhos aquilo o que as pessoas estão vivendo, o que está acontecendo. E é isso o que eu estou fazendo. O coração sente com mais força aquilo que os olhos enxergam. Por isso, é tão importante a gente poder estar aqui. Assim como eu fui em Cruzeiro do Sul, em Santa Maria, em Pelotas, no Vale do Taquari, como eu fui no estado inteiro, tenho que vir aqui, na periferia, conversar com as pessoas. Muitas vezes, essas pessoas que moram nas áreas mais vulneráveis, são as primeiras a serem atingidas e são as primeiras que precisam do nosso apoio. É por isso que eu estou aqui hoje”.
Agente transformador
O museu da Cultura do Hip Hop é o primeiro da América Latina e foi inaugurado em 10 de dezembro de 2023. O coordenador-geral do espaço conta que a concepção do local apenas foi possível por meio da organização de pessoas com um propósito em comum, o de promover a cultura e contar a história do Hip Hop no Brasil e no Rio Grande do Sul. Ele traça um paralelo entre a construção do local e o evento feito no final de semana.
“Essa organização, esse senso de coletividade que nós tivemos, foi talvez o que fez com que esse caminho que a gente escolheu trilhar, de enfrentar as adversidades, de enfrentar o fascismo, de enfrentar todo tipo de violência, ele chegasse num objetivo, que é esse, tá ligado? Proporcionar um espaço digno, um espaço bonito, um espaço saudável. Eu estou bem feliz com o dia de hoje. Ele mostrou que essa união contribui diretamente para gerar dignidade para as pessoas”, avalia.
Segundo Rafuagi, a união da população é fundamental para transformar a realidade em que vivem. “Por isso, é importante a organização das classes. Organizando, a gente alcança resultados. E hoje, por exemplo, o evento Vem pro Museu Solidário é a prova disso. Nós trouxemos atrações de todos os elementos. Teve a galera do graffiti, do break, do rap, os DJs. Todos os elementos do movimento estiveram juntos. Isso também mostra que essa organização influencia na economia da cultura.”
Ele lembra que, com as enchentes, muitos trabalhadores perderam seus postos de trabalho. “Muitas empresas quebraram, muitos pequenos comércios de bairro tiveram que fechar, espaços culturais foram fechados, como infelizmente o nosso grande bar Agulha, aqui em Porto Alegre, entre tantos outros”, lamenta.
O rapper destaca a cultura como meio de promover o trabalho e a renda. “A gente mostra que sim, a cultura e essa organização tem gerado trabalho, renda, conscientização, senso crítico e, ao mesmo tempo, gerado um mundo melhor. Porque o Hip Hop tem trabalhado, sim, no combate ao patriarcado, ao colonialismo, aos efeitos do capitalismo selvagem na sociedade”, aponta.
"Da Guedes não para!"
Grande expoente do rap sul rio-grandense, o grupo Da Guedes foi a atração principal da ação Vem pro Museu Solidário. "Estamos muito felizes de fazer parte deste movimento em prol dos atingidos no Rio Grande do Sul. O museu do Hip Hop virou um ponto de doações, recebendo apoio de todas as partes. Artistas nacionais também ajudaram. Recebemos toneladas de donativos! Hoje, é uma celebração da luta e mais uma conquista do Hip Hop para o povo que mais precisa. Os mais atingidos por essa tragédia", comenta o rapper e integrante da banda, Nitro Di.
Originário do Partenon, zona leste de Porto Alegre, o grupo Da Guedes é um dos grandes nomes da cena do rap brasileiro. Nos anos 1990, a banda ganhou destaque e expressão por ser pioneira ao fazer a união do rap com elementos do universo porto-alegrense e gaúcho.
O grupo ainda exerce grande influência no Rio Grande do Sul, não apenas pelas rimas afiadas, as batidas nostálgicas, as ideias transmitidas e a identificação com suas letras, mas pelo trabalho ativo na melhoria da sociedade. Herança de um movimento nascido nas periferias, feito para dar voz e empoderar a população dessas localidades.
Um por todos
Todos por um!
Nossa ideia do rap
Nosso logo Hip Hop
Rimar eu sei que é dom
Se expressar é bom
Descobrir o que se pode fazer
E fazer bem feito
É como ser eleito na vida, ser útil
Insista!
Se hoje eu consegui é por que um dia eu comecei
A saber que se pode manter a voz ativa[Trecho da música Bem Nessa, do grupo Da Guedes]
"Eu vejo toda a luta do Rafa Rafuagi e sua equipe e espaços como o museu ajudam a desmistificar a ideia de marginalização de nossa arte. Porque sim, o rap vem da periferia, vem do gueto, vem dos pretos, mas em espaços assim, as pessoas conseguem entender a dimensão da transformação que é feita através do Hip Hop. Esse é nosso grande legado aqui. E como diz uma de nossas letras, 'Da Guedes não para'. E essa vontade de continuar fazendo é transformadora", comemora Nitro Di a respeito da construção do museu e do agente transformador que o espaço se tornou.
Povo Pelo Povo
O Hip Hop é uma cultura popular que surgiu entre as comunidades afro-americanas do subúrbio de Nova York na década de 1970. Entre as manifestações artísticas do movimento está o DJ, o MC, o graffiti, a dança. Dos Estados Unidos, a cultura se espalhou pelo mundo. A música de protesto e o breaking chegaram ao Brasil nos anos de 1980 e logo virou uma referência para os guetos brasileiros.
Por meio da arte, da cultura, do pensamento crítico, da resistência e principalmente da atitude, o movimento tornou-se uma ferramenta de luta, de resgate, e que, muitas vezes, atua em espaços onde o Estado não alcança dentro das comunidades.
A periferia descobriu, pelo Hip Hop, a possibilidade de emancipar o povo que ainda vive às margens da sociedade, nas senzalas modernas – popularmente conhecidas como favelas. As cheias causadas pelas chuvas, os deslizamentos de terra, as ruas esburacadas, a falta de saneamento básico e de serviços básicos como o de distribuição de água, luz e comida, a falta de moradia, a precariedade do transporte público e o distanciamento social não são novidades para essa população. Essa é a realidade de muitas regiões periféricas do Rio Grande do Sul, desde muito antes das chuvas de maio de 2024 atingirem os territórios gaúchos.
O Museu do Hip Hop recebe doações em dinheiro via PIX por meio da chave [email protected] e também recebe itens físicos na Rua Parque dos Nativos, 545, Vila Ipiranga, das 9h às 12h e das 14h às 17h.
Edição: Katia Marko