Esse é mais um artigo de posicionamento sobre a indispensabilidade de um Estado forte e atuante para orientar desenvolvimento, prevenir e mitigar crises. Não poderíamos deixar de retomar esse assunto em meio ao momento que atravessamos no Rio Grande do Sul, de uma tragédia natural e social de proporção imensurável.
Até o dia 29 de maio, conforme dados da Defesa Civil do Rio Grande do Sul, 471 municípios foram afetados pelas enchentes, abrangendo uma população de 2.345.400 pessoas. Entre elas, 47.651 encontraram abrigo em locais designados, enquanto 581.638 foram desalojadas de suas residências. Foram confirmados 169 óbitos e 44 pessoas ainda estão desaparecidas. Além disso, dois grandes bairros da cidade, Humaitá e Sarandi permaneceram abaixo d'água durante 1 mês.
As crises climáticas têm demonstrado que não são meros episódios isolados. No Rio Grande do Sul, além das estiagens que abalaram o estado em anos passados, somente no último ano, foram quatro ciclones e 2 enchentes. Ou seja, o episódio atual, ainda que tenha magnitude sem precedentes na capital e em muitos municípios do estado, não é um desastre não previsto.
Frente a recorrência desses eventos no RS, cientistas e especialistas nas áreas de prevenção e mitigação de crises começaram a alertar os governos sobre a necessidade de providências estruturais e emergenciais para evitar futuras catástrofes. Em Porto Alegre, trabalhadores do extinto Departamento de Águas e Esgotos Pluviais (DEP) revelaram que por falta de manutenção em comportas do Muro da Mauá em casas de bomba e diques a dimensão da tragédia social foi agravada.
Nesse contexto veio à tona a falta de investimentos em setores chave de infraestrutura da cidade, tais como água, esgoto sanitário e esgoto pluvial e, conjuntamente, a intenção de privatização do DMAE, dos últimos 2 governos. Houve igualmente uma predileção pelo embelezamento da cidade em detrimento de planejamento urbano e de planos estruturantes para a prevenção e mitigação de crises.
É sobre o planejamento e o papel do Estado como guia e coordenador de processos preventivos e mitigatórios de crises que desejamos refletir neste espaço. E como a falta deles pode ser dramática.
No Núcleo de Pesquisas em Gestão Municipal (Nupegem) da UFRGS, temos discutido a importância estratégica do planejamento e de suas peças em âmbito municipal. Os achados de nossas pesquisas nos permitem defender que o planejamento é um instrumento indispensável e estratégico para qualquer governo que deseje atuar de forma coordenada, mirando o alcance de objetivos coletivos e o futuro desejado pela sociedade. Em diferentes pesquisas constatamos que sem planejamento há ineficiência das ações governamentais, reveladas pela improvisação, pela atuação com base nas urgências resultando em sobreposição de ações e ineficácia do gasto público. Além disso, onde o Estado não planeja, há maior probabilidade de captura do interesse público pelo privado e do uso de recursos públicos para projetos que não beneficiam a coletividade.
Porém, apesar da centralidade do planejamento para a qualidade da gestão pública local, e sobretudo para prevenir e mitigar crises, infelizmente essa não tem sido uma prática valorizada e institucionalizada em muitos dos governos municipais do RS. Conforme pesquisas do Nupegem, os Planos Plurianuais (PPAs), possuem fragilidades formais e limitações relevantes para guiar as gestões locais ao futuro desejado. Ademais, instrumentos de planejamento, tais como planos de prevenção e de contingenciamento de desastres, são pouco desenvolvidos ou inexistentes (Lima et al., 2020; 2020b; Papi; Horstmann; Ziolkowski, 2023; Papi; Demarco; Lima, 2019; Papi et al., 2022).
Conforme dados do IBGE (MUNIC 2020), sobre a presença de um rol de planos e medidas preventivas de tragédias ambientais, nos municípios, verificou-se que das 497 cidades gaúchas, 304 têm menos de 20% das estratégias verificadas. O cenário é um pouco melhor no caso de Porto Alegre, porém ainda desalentador: a capital do estado detém 44% dos 25 dispositivos mapeados. Ademais, visando diagnosticar e qualificar a capacidade nacional de atuação na gestão dos riscos e dos desastres, o governo nacional formulou um indicador, denominado de Indicador de Capacidade Municipal (ICM). A primeira avaliação, realizada no início de 2024, demonstrou que quase 70% dos municípios têm resultado do ICM como inicial ou intermediário inicial, demonstrando uma capacidade ainda embrionária de atuação (Brasil, 2024).
Nossa hipótese para a falta de investimentos em planejamento público em amplos setores governamentais foi a adoção acrítica de um modelo hegemônico de Estado e administração pública que reduziu suas capacidades de prevenir e mitigar crises: a Nova Administração Pública.
Este modelo originou-se a partir dos anos 1970 nos países anglosaxões para substituir o antigo modelo Burocrático. Diante de crises de diferentes dimensões (econômica, social e administrativa), os Estados deveriam ser “reformados”, abrindo espaço para um liberalismo renovado, com forte sustentação na teoria econômica neoclássica (Carneiro; Menicucci, 2011). Simbolicamente, o Estado passa a ser visto como obsoleto, fechado, preguiçoso, inflado por uma burocracia “parasitária” (Mazzucato, 2014).
Com isso, as ideias de um Estado mínimo e uma nova administração pública ganharam força, aproximando a gestão pública do modelo de mercado. A partir disso conceitos como "eficiência", "competição" e "meritocracia" promoveram privatização, terceirização, descentralização e transferência de responsabilidades para ONGs. Isso resultou no desmonte de capacidades estatais, em especial nas burocráticas e administrativas do Estado, causando efeitos como falhas e ou abandono do planejamento e por consequência em ineficiência na construção e soluções em momentos de crise.
Diante destas revelações sobre a ineficácia dos mecanismos de mercados e das evidências de que eles fragilizam e não fortalecem o setor público, buscamos no modelo de Estado e administração pública Neoweberiano (NWS) inspiração para construir um Estado resiliente às crises.
Tendo surgido na Europa continental, a partir do conjunto de crises precipitadas no ocidente, tais como, o crash bancário global (2008), o desastre japonês de Fukushima (2011), a pandemia da covid-19 (2020-2022), o NWS sustenta que os modelos de administração baseados em mecanismos de mercado ou redes não foram suficientes e eficientes para prevenir e conter tais crises.
Dessa forma, o NWS advoga pelo retorno do Estado como o ator legítimo e necessário para coordenar a administração pública em torno de objetivos coletivos. Porém, isso não representa uma volta ao passado. Não se trata de revigorar o modelo de Estado interventor, centralizado e apegado a processos, mas de aproveitar o que existe de positivo no modelo de Estados ativos e planejadores, como a valorização das capacidades burocráticas, a importância estratégica dos centros de governo e das hierarquias, para associar com que há de contribuição nos mecanismos e mercados e redes, tais como a ideia de uma gestão mais aberta à sociedade, pouco apegada a processos e mais participativa, transparente, voltada ao desempenho – esse entendido como prestação de serviços qualificados e equitativos à população.
Definindo-se como um modelo híbrido, o NWS resgata princípios weberianos, tais como a reafirmação do papel do Estado e de sua legitimidade para a coordenação de mercados e redes no processo de governança; a reafirmação do papel do império da Lei como guia da administração; um serviço público com ethos distintivo para a condução de uma administrador público engajado com seu produto social, incorporando e ressignificando elementos modernizadores da gestão pública, presentes nos modelos da Nova administração pública e da Nova governança pública. Em síntese, o modelo advoga pela volta de um Estado ativo, não submisso aos interesses dos mercados, mas que governa com mercados e redes.
Conforme Bouckaert (2023), é a Hierarquia de dentro do Estado e seu setor público, que devem direcionar os atores sem fins lucrativos, bem como os Mercados e Redes na meta-governança para atender ao bem coletivo (Bouckaert, 2023). Nesta perspectiva, o ator burocrático ganha grande relevância, pois apenas um Estado munido com corpo técnico-político qualificado e engajado com o serviço público, pode produzir resultados e confiança neles.
Em síntese, inspirados no modelo NWS entendemos que é remontando as estruturas estatais desmontadas pelo modelo da Nova Administração Pública que se produz um governo e um sistema de governança resiliente às crises. Ou seja, um governo com capacidade de enfrentar, absorver, adaptar-se e se recuperar de choques e crises, como a que estamos vivendo. Portanto, não é diminuindo o Estado que se atingirá eficiência na prestação de serviços e combate à crise como se evidenciou na catástrofe natural do RS. Não é diminuindo a inteligência do governo com o desmonte de estruturas de planejamento que se atingirá boas decisões e alocações de recursos eficazes.
Pelo contrário, é com construção de instituições robustas e bem estruturadas, que podem operar sob pressão e adaptar-se a novas circunstâncias, que teremos a formulação de planos de prevenção e de contingência bem elaborados para lidar com desastres naturais, crises econômicas e outras emergências.
Nesse sentido, o modelo Neoweberiano de Estado parece ser um guia valioso para responder muitos dos questionamentos que despertaram com a crise atual, pois é mediante a estruturação de um Estado forte e moderno, com uma burocracia engajada e imbuída de valores públicos, que a coordenação social necessária para lidar com desastres e crises de diversas naturezas pode acontecer de forma efetiva. É com este Estado, aberto à participação, transparente, eficiente e com boa gestão de dados e informação — ou seja, governança e regulação efetivas — que a resiliência se torna viável.
Referências
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* Luciana Pazini Papi, Professora do curso de Administração Pública e social da UFRGS e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas UFRGS e do Nupegem; Gislaine Thompson, Mestranda em Políticas Públicas UFRGS; Pablo Padilha, Doutorando em Políticas Públicas UFRGS.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko