Rio Grande do Sul

SALVEM A CULTURA

Ato simbólico de reabertura da Terreira da Tribo emociona e convoca à ação em defesa da Cultura

O dia ensolarado possibilitou o início do mutirão de limpeza do espaço de um dos grupos de teatro mais antigos do país

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Ato de reabertura da Terreira da Tribo na manhã de sábado foi marcado por emoção e solidariedade - Foto: Rafa Dotti

O dia amanheceu neste sábado (1º), um mês após o início da maior enchente do Rio Grande do Sul, com o brilho do sol. Muitos aproveitaram para iniciar ou dar seguimento na limpeza de casas, empresas, comércios e espaços culturais.

Assim foi também na Rua Santos Dumont, no 4º Distrito, bairro muito destruído pelas águas. Era cedo ainda quando começaram a chegar as primeiras pessoas para o ato de reabertura da Terreira da Tribo. O objetivo era marcar esse momento como um manifesto, um pedido de ajuda e um compartilhar da esperança.

Considerado um dos mais importantes agentes culturais do estado, o encenador, cenógrafo, iluminador, produtor e professor Paulo Flores foi um dos fundadores do Ói Nóis Aqui Traveiz na década de 1970. Em 2024 o grupo completa 46 anos, e Flores, 50 anos de Teatro.

Visivelmente emocionado, Paulo Flores diz ser um momento muito triste. “É difícil até falar alguma coisa, mas a gente sabe que o que nos levou até esse desastre, essa tragédia que Porto Alegre está vivendo, foram os erros políticos de vários mandatos. Então, a gente vai pressionar para que o poder público venha, de alguma forma, ajudar.”

Segundo ele, o povo da Cultura, os trabalhadores e trabalhadoras da cultura que, junto com toda a população da cidade, sofreu o impacto dessa tragédia, vai ter muita dificuldade para reconstruir o seu trabalho.

“Principalmente, os espaços culturais que foram duramente atingidos, como a Terreira, onde foi uma devastação total. Nós perdemos nosso acervo, figurinos das nossas peças, das peças que nós estávamos apresentando, como o Amargo Santo da Purificação, o Ubu Tropical. É muito, muito triste... Sem palavras, porque não tem como dimensionar esse prejuízo, essa grande perda que a Terreira está tendo.”


Acolhimento e carinho marcou o início do mutirão de limpeza da Terreira do Tribo / Foto: Rafa Dotti

A Terreira da Tribo precisa ter seu espaço

A professora de História Clarice Falcão está há 30 anos junto com o Ói Nóis Aqui Traveiz. Começou a participar na época em que o Ói Nóis ainda estava na José do Patrocínio e havia ameaça de retirada do grupo pelos proprietários.

“Nós fizemos toda uma campanha, ganhamos a manutenção do espaço como prioridade do Orçamento Participativo na época, mas fomos despejados da Cidade Baixa e viemos aqui para o bairro Navegantes. Foi uma experiência interessante, porque a Oficina para Formação de Atores, da Escola de Teatro Popular, começou aqui, na João Inácio.”

Clarice começou a dar aulas de história do pensamento político no ano 2000, na Escola de Teatro Popular. “A Terreira da Tribo é a minha militância. Estou nessa militância há 30 anos, e nesses anos todos a gente desenvolveu toda uma luta para conseguir preservar o teatro feito na Terreira.”


"Agora estamos aqui flagelados, perdemos tudo. A minha sala de aula estava cheia de água, cheia de água", lamenta Clarice Falcão / Foto: Rafa Dotti

Segundo ela, a Terreira recebeu a cedência via TPU (Termo de Permissão de Uso) de um terreno na Travessa Carmen, 95, no bairro Floresta, perto da Igreja São Pedro, da prefeitura municipal. Mas é uma ruína de casa e um galpão que está em estado deteriorado. Nós temos 46 anos. E nós estamos nessa história há muito tempo. Agora estamos aqui flagelados, perdemos tudo. A minha sala de aula estava cheia de água, cheia de água.”

“Todos nossos espetáculos estão afogados”

A atriz/atuadora Tânia Farias integra há três décadas o Ói Nóis Aqui Traveiz. Nos palcos já viveu Kassandra, Medéia, Sophia, Ofélia, Sasportas. Mas talvez agora viva seu papel mais desafiador. A tragédia veio para a vida real e exige força, coletividade e muita solidariedade.

“Todos nossos espetáculos estão afogados. Não existe mais figurinos, máscaras, adereços, instrumentos musicais. E vocês devem imaginar o quanto isso custa. Custa de afeto, tempo, mas também de dinheiro”, iniciou destacando no ato de reabertura da Terreira da Tribo.

Segundo ela, o atual espaço é alugado, assim como o galpão onde são guardados os cenários, que também está alagado e que inclusive ainda tem água lá. Os dois juntos custam mensalmente R$ 16 mil. “A gente nunca se salvou sozinho. E a gente sabe que uma tragédia dessas proporções ninguém vai sair dela sozinho.”


"O Ói Nós é um coletivo de teatro que passou 46 anos fazendo um trabalho comprometido", afirma Tânia Farias / Foto: Rafa Dotti

Tânia lembrou que o Ói Nós é um grupo que tem afirmado que trabalhar em coletivo é melhor. “Nós somos aqueles teimosos, com o que há de melhor na teimosia, porque eu tenho certeza de que aqui nós temos uma coletividade de gente teimosa, que teima em acreditar no ser humano, que teima em acreditar que se organizando coletivamente a gente faz mais, melhor e transforma a vida para os que virão depois de nós.”

Destacou ainda que o Ói Nós é um coletivo de teatro que passou 46 anos fazendo um trabalho comprometido, “porque acreditava que a gente podia ser semente para deixar um mundo melhor para os que virão depois de nós.”


Mutirão de limpeza iniciou neste sábado e segue durante a semana / Foto: Rafa Dotti

“Há 46 anos nesse lugar, e cada uma, cada um que tá aqui sabe e também faz isso diariamente, nós ressignificamos, e vamos mais uma vez ressignificar tudo isso em ação, em luta. Esse ato de abertura é também para que os nossos representantes compreendam que na hora de pensar um plano de reconstrução para o Estado, precisam pensar na cultura e nas artes. Porque quem faz cultura e arte é trabalhador e trabalhadora. Parem de achar que tudo que é arte é só para elite. O Oi Nós é um coletivo de teatro. Teatro é uma manifestação artística. E nós entendemos que a gente tem que construir e ampliar o conceito de arte pública porque é isso que o Oi Nós faz há 46 anos”, defendeu.

Com o representante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Miguel Stédile, presente, a atriz recordou que o MST estava lá, porque conhece o trabalho do grupo. “A gente percorreu vários assentamentos com nossos espetáculos. A gente criou espetáculos para o MST porque o MST é o novo, o MST transforma, o MST ensina, nos ensina, e a gente quer construir com eles, porque nós fazemos arte pública.”

“Não queremos editais, precisamos de auxílio”

“A gente precisa salvar a cultura e as artes, porque essas asas que a cultura e as artes colocam na nossa cabeça, essa pulga que o teatro, a dança, o circo plantam na orelha das pessoas, é uma semente de transformação. O que está não é legal. Não podemos naturalizar. Dizer, é assim? Não, não é assim. Podia ser melhor. E a gente só vai ser melhor coletivamente. É por isso que a gente queria que vocês estivessem aqui. Porque a gente não quer essa tragédia sozinho”, afirmou Tânia.

E por favor, reforçou ela, não nos deem só trabalho, não digam que a gente tem que parar de limpar os nossos espaços, as nossas casas, pra fazer plano de ação. “Consultem a gente, façam um plano de ação, a gente não tem condição de parar de limpar para construir plano de ação. E a gente tem que ser visto e atendido mesmo assim. Esse é um apelo também para que vocês reverberem isso, cada um no seu nicho, cada um que pode escutar e que pode levar adiante e dizer, olha, eu estava lá, eu vi.”


A atuadora defende que a arte e a cultura precisam de auxílio. E não tem que ser através de edital e concorrência / Foto: Rafa Dotti

Tânia também foi enfática ao dizer que a cultura não precisa de editais, mas de auxílio. “A gente não pode mais, na verdade isso não deveria mais nem existir, porque na pandemia isso já foi uma catástrofe. O edital é sempre assim, tem 300 inscritos e tem 90 contemplados. Quantas pessoas não foram contempladas aí? Eu entendo que o recurso é sempre pouco, mas não dá pra ser assim sempre. A gente tem que parar de competir entre nós. A gente estava brigando entre nós na pandemia, gente!”

A atuadora defende que a arte e a cultura precisam de auxílio. E não tem que ser através de edital e concorrência. “O capitalismo adora que a gente concorra. O neoliberalismo adora nos colocar como empreendedores. Se eu sou melhor do que tu, eu ganho mais do que tu. E se não tiver comida, não como, por que eu não sou bom empreendedor? É isso. Eu não quero mais essa lógica. Entendam a situação, façam linhas. Mas não botem a gente a concorrer, por favor. Que essa tragédia nos faça experimentar isso e deixe um rastro de exemplo para que não seja mais edital, edital, edital.”


A deputada federal Maria do Rosário também ajudou na limpeza da Terreira da Tribo / Foto: Rafa Dotti

Entre as presenças de alunas e alunos, apoiadores, parceiros da cultura, também estavam as pré-candidatas à prefeitura de Porto Alegre Maria do Rosário e Tamyres Filgueira, o vereador Adeli Sell, a deputada estadual Sofia Cavedon e federal Fernanda Melchionna.

Projeto prevê auxílio emergencial para a cultura

A deputada federal Fernanda Melchionna apresentou o Projeto de Lei 1896/24 de auxílio emergencial para a cultura. Segundo ela, é um olhar específico para a cultura e a arte, com um recurso para os equipamentos, bibliotecas atingidas, grupos de teatro atingidos, músicos que perderam seus espaços coletivos de guardar material de apresentação.

“Esse foi um caminho que a Aldir Blanc nos ensinou na pandemia, graças à mobilização da classe artística, que criou essa possibilidade de um recurso direto para movimentos independentes, não só para equipamentos públicos, que também é importante, mas para equipamentos dos movimentos organizados da cultura e da arte”, explicou ao Brasil de Fato.


Fernanda Melchionna apresentou o Projeto de Lei 1896/24 de auxílio emergencial para a cultura / Foto: Rafa Dotti

Melchionna afirma que já conseguiu 260 assinaturas de deputados para o regime de urgência. “Ele tem que ir à votação ainda, então agora nós estamos reivindicando ao governo, às bancadas partidárias para que seja colocado em regime de urgência. Para acelerar a aprovação do projeto tem que votar o regime de urgência, mas as assinaturas que é super difícil conseguir, nós já conseguimos, que é para não passar pelas comissões e poder ir direto ao plenário.”

A deputada destaca que quando a Câmara quer e tem pressão popular, os projetos são votados rápido. “Quando tem mobilização, a gente consegue que se vote rápido projetos que beneficiem a vida do povo. Então a gente tem que seguir essa luta, essa pressão, para que seja votado rápido um auxílio como esse.”

O auxílio vem de transferência governamental do dinheiro que já foi liberado do arcabouço fiscal. “Ainda bem, a gente sabe que o arcabouço é um austericídio e quando vem essas catástrofes, enfim, tem que ter recursos públicos. Ou o Estado entra ou não tem reconstrução.”

Melchionna ainda chama a atenção para os grandes grupos econômicos que vão querer abocanhar esses fundos públicos. “Seja a partir de consultorias que são vinculadas a fundos abutres, como a consultoria Alvarez & Marsal, que tem uma história de vinculação com os fundos parasitas da especulação imobiliária internacional. Seja a Fraport, que agora diz que quer discutir o contrato da concessão do aeroporto, quando na verdade, na hora de privatizar, os lucros são privados. Aí quando tem as catástrofes, querem que os prejuízos sejam coletivos. Não, o que tem que ser coletivo é a reconstrução para atender aos interesses populares, sociais, do povo trabalhador, das micro, pequenas e médias empresas que foram muito atingidas, das mulheres, enfim, das comunidades atingidas.”

A Terreira é um dos principais centros de investigação cênica do país


Reconhecida como Ponto de Cultura, a Terreira é um dos principais centros de investigação cênica do país / Foto: Rafa Dotti

A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz começou a ser gestada no final de 1977 com encontro de jovens artistas descontentes com o teatro que se fazia em Porto Alegre e no país. Influenciado pelos movimentos de vanguarda e principalmente pelo teatro revolucionário que acontecia em diferentes partes do mundo, o Ói Nóis Aqui Traveiz desenvolveu a sua expressão cênica a partir da criação coletiva, do contato direto entre atores e espectadores e da corporalidade na cena.

Esse teatro de ruptura e invenção precisava de outro espaço que não fosse as salas convencionais de espetáculos com o seu palco italiano e sua plateia fixa. Após constituir os espaços do ‘Teatro Ói Nóis Aqui Traveiz’ (1978/79) e 'A Casa Para Aventuras Criativas’ (1980/82) a Tribo criou em 1984 a sua Terreira no bairro Cidade Baixa. 

A Terreira da Tribo abrigou desde sua origem diversas manifestações culturais, como espetáculos de teatro, shows musicais, ciclos de filmes, seminários e debates, performances e celebrações, além de oportunizar as pessoas em geral o contato com o fazer teatral. 


Todo o acervo das peças do Ói Nóis Aqui Traveiz ficou debaixo d'água / Foto: Rafa Dotti

Reconhecida como Ponto de Cultura, a Terreira é um dos principais centros de investigação cênica do país e se constituiu como Escola de Teatro Popular, referência nacional na aprendizagem teatral.

As três principais vertentes da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz são: o Teatro de Rua, nascido das manifestações políticas - de linguagem popular e intervenção direta no cotidiano da cidade; o Teatro de Vivência, no sentido de experiência partilhada, em que o espectador torna-se participante da cena; e o trabalho artístico-pedagógico, desenvolvido na sua sede e outros bairros populares junto à comunidade local.

Edição: Ayrton Centeno