Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

'Mudanças climáticas têm peso enorme sobre sistema de lagoas do Sul', aponta pesquisadora

Geóloga Maria Luiza Rosa propõe interpretação do passado remoto para compreender alterações do século 21

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Geóloga Maria Luiza Rosa é especialista em planície costeira gaúcha - Maria Eduarda de Freitas

A geóloga Maria Luiza Correa da Câmara Rosa resolveu usar vídeos para explicar, com palavreado acessível aos leigos, a história da formação geológica da planície costeira gaúcha, uma das áreas mais afetadas pela enchente de 2024. Produziu quatro, um deles referente à lagoa dos Patos, recuando milhares de anos no tempo. Explica, por exemplo, que o território onde está a grande lagoa, mais outras duas, Mirim e Mangueira, foi tomado ao oceano.

“Através da análise de dados relacionados às chuvas, ventos, ondas, marés, correntes, e, inclusive, à presença de diferentes formas de vida, é que se compreende como o ambiente funciona”, diz a especialista, que coordena o Grupo de Pesquisa em Estratigrafia Ambiental do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e é vice-diretora do Centro de Estudos de Geologia Costeira e Oceânica (CECO). 

Confira os principais trechos da entrevista:

Brasil de Fato RS - Seu estudo se concentra naquele que é o maior complexo de lagunas da América Latina, compreendendo as três grandes lagoas – Patos, Mirim e Mangueira – e muitas outras. Nos últimos 30 dias de enchentes estamos ouvindo falar bastante dele. O que julga mais importante saber a respeito do sistema? 

Maria Luiza - Do ponto de vista mais específico do nosso trabalho, relacionado à geologia, é muito importante que se conheça tanto a história de formação, ou seja, a evolução geológica, quanto os processos relacionados à dinâmica atual desses sistemas. Entender o passado é chave para que se possa planejar a ocupação do espaço e ações coerentes com o futuro que desejamos.

Se não conhecemos o passado, como vamos saber o que mudou?

Por exemplo, compreender como mudanças climáticas atuaram na formação desses corpos d’água, analisando como as subidas e descidas do nível do mar fizeram os ambientes se deslocarem no espaço, modificando as formas de vida que lá existiam ao longo do tempo, nos dá a capacidade de prever cenários relacionados às tendências de mudanças atuais e futuras.

Da mesma forma, é preciso compreender a dinâmica atual, que também é base para entender o passado. Através da análise de dados relacionados às chuvas, ventos, ondas, marés, correntes, e, inclusive, à presença de diferentes formas de vida, é que se compreende como o ambiente funciona. Além disso, precisamos conhecer as dimensões do sistema, seu relevo e suas variações de profundidade. Isso é fundamental em situações como as do momento presente, para determinar as áreas de risco, os locais que precisam ser evacuados e as áreas seguras.

Tendo conhecimento dessas características do sistema, pode-se determinar em que áreas ocorre a deposição ou a erosão dos materiais (sedimentos, como areia e argila) que constituem os ambientes. Entendendo essas relações, é possível antever como os ambientes responderão e se modificarão ao longo do tempo, ou seja, analisar o presente nos ajuda a interpretar o passado; interpretando o passado, compreendemos as mudanças que nos trouxeram para o presente. Com isso, temos a possibilidade de antever possibilidades de futuro.

A falta de uma cultura geológica contribui para cenários de tragédia como a que estamos enfrentando

Além disso, os seres humanos são agentes de transformação dos ambientes. Nesse sentido, a ciência geológica também precisa considerar essa atuação, que vem sendo incluída nas variáveis de modelagem de cenários.

Esses conhecimentos, por sua vez, precisam ser levados para além dos especialistas. É fundamental que as pessoas conheçam as histórias de formação dos locais que ocupam, pois a gente tende a considerar mais o que a gente conhece. Não é possível que se ocupe, se construa, se viva sobre o planeta, sem ter a mínima ideia da história que fez aquele local ser daquele jeito. Esse desconhecimento ou a falta de uma cultura geológica também contribui para cenários de tragédia como a que estamos enfrentando.


"As praias, os rios, as lagoas são parte da planície costeira e estão em processo de formação" / Maria Luiza Rosa

BdF RS - Se formos usar medidas geológicas, podemos dizer que o litoral é a parte mais jovem do território gaúcho. É correto dizer que ainda está em formação?

Maria Luiza - Sim. As praias, os rios, as lagoas são parte da planície costeira e estão em processo de formação. Mesmo outras áreas da planície costeira formadas por antigas praias, rios ou lagoas, onde existem registros de ambientes como esses, gerados em tempos um pouco mais antigos, por serem ainda muito recentes estão sujeitos a uma dinâmica que pode criar modificações no tempo atual. 

A linha de praia se deslocou no sentido do oceano, ficando em torno de 100 km mais distante do que está hoje

BdF RS - Aliás, no passado remoto – talvez um milhão de anos ou um pouco menos – o oceano ocupava a área hoje da lagoa dos Patos. Ou seja, rios como o Jacuí e o Camaquã desaguavam no Atlântico e os locais onde estão Pelotas, Rio Grande, São Lourenço do Sul, Porto Alegre eram banhados por água salgada, não? 

Maria Luiza - Sim, houve momentos ao longo da evolução, quando os locais onde estão essas cidades estavam submersos, com o oceano ocupando essas áreas. Para Porto Alegre, isso ocorre em parte, pois algumas regiões da cidade são formadas por rochas do Escudo Sul-riograndense, que são muito mais antigas e no período relacionado à evolução da planície costeira já constituíam morros. As áreas baixas onde está o Guaíba e arredores eram um estuário.

Podemos imaginar ilhas ou uma paisagem como o litoral entre Santa Catarina e o Espírito Santo. Porém, ao longo do tempo, também houve quedas do nível do mar, e a linha de praia se deslocou no sentido do oceano, ficando em torno de 100 km mais distante do que está hoje. Nesses períodos, os rios também desaguavam no Atlântico, porém percorrendo um caminho muito maior. As áreas das cidades citadas eram parte de uma grande planície, recortada por alguns desses rios.

Creio que uma carga de sedimentos com esse volume (que chega à lagoa) deva impactar diversas espécies

BdF RS - Em algum momento, diante das cheias, houve gente propondo a abertura de um canal entre a lagoa e o oceano na altura do Litoral Norte. Isso faz sentido para você?

Maria Luiza - Acho extremamente temerária essa proposta. Não sou especialista em hidrologia, mas colegas que são indicam que pode não ser tão expressiva a efetividade em termos de contribuição para a drenagem e diminuição dos níveis nas áreas interiores.

A inundação em Porto Alegre e região Metropolitana, por exemplo, é muito mais controlada pela quantidade de água que chega dos rios que compõem as bacias hidrográficas que drenam para o Guaíba.

Além disso, os impactos potenciais são inúmeros e já foram citados em diversas notas como as divulgadas pelo Centro de Estudos de Geologia Costeira e Oceânica (CECO), do qual faço parte, pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) e pelo Instituto de Biociências (IBIO), da UFRGS.

Nessas notas, especialistas de diferentes áreas da ciência chamam a atenção para a diversidade de impactos que poderiam acometer o sistema hídrico, biológico, geológico, social e econômico. Compreende-se que diante de tragédias como a que está ocorrendo surjam ideias e se demandem resoluções, mas diante de tantas outras ações necessárias, o investimento deveria se concentrar em buscar soluções que tenham como base a lógica de minimizar intervenções com potenciais impactos negativos. Não fazer isso é seguir na mesma lógica que, como estamos presenciando, resulta em imensas perdas.


Pesquisadora Maria Luiza Rosa em trabalho de campo no litoral gaúcho / Eduardo Barbosa

BdF RS - Imagens aéreas mostram uma água barrenta ingressando na lagoa dos Patos, contribuição dos sedimentos vindos com a inundação. Que problema esse aporte pode causar para a lagoa em termos de biodiversidade, navegação, transformação de suas características?

Maria Luiza - Esse material será depositado no fundo e nas margens da laguna, além de ser levado para o oceano, chegando à nossa costa. Não sou bióloga, mas creio que uma carga de sedimentos com esse volume deva impactar diversas espécies. Além disso, essa água traz consigo muitos outros elementos, além dos que compõem os sedimentos oriundos da erosão das rochas. Não sei se já estão sendo feitos estudos para avaliar na Laguna dos Patos, mas essa composição pode ser perigosa, como demonstrado nas primeiras análises feitas pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas em Porto Alegre.

Acho fundamental que esse projeto (implantação do parque do Albardão) siga adiante e essa área seja conservada

BdF RS - Há um debate em curso sobre a implantação do Parque Nacional do Albardão, junto às lagoas Mirim e Mangueira e onde estão algumas das praias mais intocadas do Brasil, livres da especulação e da destruição. Qual a sua opinião sobre esse novo parque?

Maria Luiza - Acho fundamental que esse projeto siga adiante e essa área seja conservada. A região do Albardão está em um local ímpar, numa paisagem incrível, ainda muito preservada e onde ocorre um registro único da história geológica do nosso litoral, com camadas de conchas: os concheiros.

Além disso, esse é um setor onde, na escala dos grandes ciclos da planície costeira, a linha de praia é classificada como transgressiva, o que significa que ainda está se deslocando no sentido do continente, ou seja, é um local naturalmente de erosão costeira. No local, ainda existe um grande campo de dunas móveis ou livres e, na retaguarda, a Lagoa Mangueira. É um sistema sensível e dinâmico, por isso, deve ser conservado, deixado livre de especulação.

O clima tem um controle evidente na dinâmica das lagoas

BdF RS - Qual o peso do aquecimento global e das mudanças climáticas sobre o sistema de lagoas do extremo sul do Brasil?

Maria Luiza - É enorme. Como podemos compreender tanto pela evolução geológica quanto pelo que está acontecendo agora no Rio Grande do Sul, o clima tem um controle evidente na dinâmica das lagoas, ambientes extremamente sensíveis a essas modificações. Os períodos de aquecimento global registrados no passado levaram a uma elevação dos níveis d’água no interior desses sistemas, tanto em decorrência das elevações do nível do mar quanto do aumento da precipitação, criando, por exemplo, depósitos de sedimentos em altitudes mais elevadas do que as das áreas onde esses sedimentos se depositam atualmente.

O que vemos nesse momento, em um grande evento relacionado às chuvas, é uma elevação dos níveis d’água ocorrendo em todas as lagoas e lagunas do Rio Grande do Sul.

Isso deixará marcas, com a erosão em alguns locais e a deposição de sedimentos (areia, lama...) em áreas onde isso não costuma ocorrer. Se pensarmos em um cenário onde essa seja a tendência, diversas áreas se modificarão. Possivelmente, muitas áreas ficarão submersas, enquanto em outras ocorrerão deposições de materiais diferentes dos que costumam se depositar atualmente.

Sendo um evento relacionado à precipitação, ou seja, às chuvas, muita água doce e muitos sedimentos estão sendo transportados do interior do continente até o oceano. Se imaginarmos um cenário de elevação do nível do mar, além de uma elevação no nível d’água desses corpos, haverá uma modificação nas relações de salinidade no seu interior. Como cada área irá se transformar, dependerá daquela interação dos diversos fatores que controlam essa dinâmica. A certeza é que toda a vida que depende de forma direta ou indireta desses ambientes será afetada.

Edição: Katia Marko