Rio Grande do Sul

Coluna

Há 1 mês, 31 dias

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Há 1 mês, 31 dias, cidades, municípios e comunidades inteiras estão destruídas, como no Vale do Taquari" - Foto: Francisco Proner/MAB
Há 1 mês, 31 dias, mais que nunca, é preciso anunciar: Na boa luta, com fé e coragem, Esperançar

Há 1 mês, 31 dias, mês de maio inteiro, estou ´ilhado´ na casa da família em Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, sem conseguir chegar em Porto Alegre, onde moro desde 1971.

Há 1 mês, 31 dias, a RS-287, principal ligação de Venâncio Aires, Santa Cruz do Sul, Santa Maria e outros muitos municípios com a capital gaúcha, está interrompida perto da ponte do rio Taquari na Vila Mariante.

Há 1 mês, 31 dias, não compro a edição de final de semana do jornal Zero Hora em Venâncio Aires, porque a edição impressa não chega no supermercado da cidade.

Há 1 mês, 31 dias, saí de Passo Fundo, depois de participar, dias 29 e 30 de abril, da Oficina Sul da PNEPS-SUS, Política nacional de Educação Popular em Saúde.

Há 1 mês, 31 dias, levei 20 horas para ir de Passo Fundo a Venâncio Aires, viagem que leva normalmente 3 horas, numa viagem de vida e morte, onde estourei pneu, dormi em pousada na beira da estrada, estourei a frente do carro e desviei de montanhas de terra e água correndo no asfalto.

Há 1 mês, 31 dias, cheguei na casa da família no dia 1º de Maio e as primeiras palavras que disse ao mano Marino, que estava preparando o almoço, foram TÔ VIVO, que era como me sentia, e não Bom Dia.

Há 1 mês, 31 dias, não vi o sol mais que em 7 dias, mês de maio em que, tradicionalmente, acontece o que chamamos de Veranico de Maio, no qual, em tempos idos, aproveitávamos duas ou três semanas de sol intenso para colher a soja na roça, com a ajuda de parentes e vizinhos, antes que começassem o frio, o inverno e a chuva.

Há 1 mês, 31 dias, os jogos de futebol de Grêmio, Internacional não acontecem porque a Arena e o Beira-Rio, seus estádios, estão debaixo de água, e a Copa Serrana, de futebol amador de Venâncio Aires, onde participa meu São Luiz de Santa Emília, não acontece.

Há 1 mês, 31 dias, só se ouve falar de destruição, aumento do número de mortos, muitos desaparecidos, municípios inteiros e comunidades em frangalhos.

Há 1 mês, 31 dias, a manchete principal do jornal Folha do Mate de Venâncio Aires, tem sido, nas sucessivas edições: 02.05, Maior cheia da história; 04.05: Calamidade; 07.05, Colapso; 09.05: Acesso alternativo para ligar Venâncio à Capital; 11.05: Iniciativa privada oferece ajuda para conectar a 287; 14.05: Obras de reconexão são iniciadas; 16.05: Prejuízo de R$ 92,5 milhões para o Interior; 18.05: Tempo de acolher e recomeçar: cuidados com a saúde mental; 21.05: RS-287 liberada no início de junho; 23.05: Matriz do supermercado Lenz reabre amanhã; 25.05: Área do antigo IPM vai ganhar 40 casas; 28.05: Profissionais da UFRGS avaliam deslizamentos.                  

Há 1 mês, 31 dias, a cabeça está cada dia mais atordoada, o coração cada dia mais doente, os nervos cada dia mais à flor da pele.

Há 1 mês, 31 dias, hospitais e casas de saúde estão superlotados, ou fechados por estarem cercados de água, ou sem energia, ou sem água para consumir.

Há 1 mês, 31 dias, caíram mais de 1000 mm de água, correspondentes a meses ou anos de chuvas normais.

Há 1 mês, 31 dias, olho ao redor de casa, falo com os irmãos agricultores familiares e ouço que não há quase o que vender na Feira do Produtor das quartas e sábado, porque a água em demasia não permitiu que alfaces, beterrabas, cenouras, moranguinhos e outros legumes e verduras crescessem.

Há 1 mês, 31 dias, a vida de todas e todos está em permanente sobressalto, sem saber o que e como vai ser o dia seguinte.

Há 1 mês, 31 dias, não chegam as peças do carro para o devido conserto na oficina, resultado da viagem de Passo Fundo a Venâncio Aires em 30.04 e 01.05, ou por falta de comunicação, ou porque as lojas foram alagadas, ou por falta de peças.

Há 1 mês, 31 dias, a pergunta diária é sobre o que e como será o amanhã da Casa Comum, da natureza e tudo mais em Santa Emília, Venâncio Aires, Rio Grande do Sul, Brasil e mundo.

Há 1 mês, 31 dias, cidades, municípios e comunidades inteiras estão destruídas, debaixo d`água, como Porto Alegre, Canoas, Eldorado do Sul, São Leopoldo, Sinimbu, Lajeado, Muçum, Roca Sales, Encantado, Cruzeiro do Sul, Arroio do Meio e mais de 450 municípios dos 497 do Rio Grande do Sul.

Há 1 mês, 31 dias, escolas públicas e privadas abrem e fecham, dia sim, dia não, a Rodoviária de Poeto Alegre foi transferida de lugar, o aeroporto Salgado Filho de Porto Alegre está alagado, o Trensurb, que liga Porto Alegre a Novo Hamburgo, não funciona, o transporte público está caótico.

Há 1 mês, 31 dias, Cozinhas Comunitárias e Solidárias ajudam centenas de milhares de desabrigados e famílias fora de casa, sobrevivendo em salões paroquiais, ginásios, escolas que servem de dormitório e aconchego, para alimentar quem não tem mais nada, mas, felizmente, estão vivas-os.

Há 1 mês, 31 dias, o tempo não conta, não anda, está parado.

Há 1 mês, 31 dias, parece não haver futuro, e, em muitos casos, a história e passado de fotos, documentos foi perdido, virou barro e lixo.

Há 1 mês, 31 dias, a vida está (quase) paralisada, ou parece ter mudado de ritmo e de lugar.

Há 1 mês, 31 dias, Deus parece ter abandonado o Rio Grande do Sul.

Há 1 mês, 31 dias, o celular e o rádio, onde há internet e energia, alimentam os dias, informam do sofrimento de milhares, milhões, tornando-se amigos inseparáveis, para quem conseguiu mantê-los ou para quem ainda funcionam.

Há 1 mês, 31 dias, amigas e amigas, companheiras e companheiros de todos os lugares, inclusive de fora do Brasil, perguntam quase todos os dias, como estou e como estão as coisas, se preciso de alguma coisa, onde e como ajudar.

Há 1 mês, 31 dias, a primeira coisa que faço de manhã cedo é olhar pela janela, ver o céu, se há nuvens, se está chovendo, ou se há alguma chance de sol, finalmente.

Há 1 mês, 31 dias, não participo de nenhuma reunião presencial e o prédio da sede do CAMP, Centro de Assessoria Multiprofissional, do qual sou fundador e atualmente da direção, está cercado de água no centro de Porto Alegre.

Há 1 mês, 31 dias, telefono de vez em quando para minha vizinha Goreti, minha condômina, para saber como estão as coisas, se já voltou a água no prédio, pedir para regar as plantas de casa, uma vez que a cuidadora ´oficial´ de muitos anos, Loiva, teve que sair de casa no Bairro Humaitá em Porto Alegre, primeiro para um abrigo em Cachoeirinha, e agora alugou apartamento no litoral, praia de Tramandaí, para sua proteção e do seu irmão.

Há 1 mês, 31 dias, todos os eventos previstos para maio foram cancelados, como a Conferência Antifascista, de 17 a 19 de maio na Igreja da Pompéia, o XXV Fórum Paulo Freire, na UFRGS, de 23 a 25 de maio ambos em Porto Alegre. E o Encontro Sul de Participação social e Educação popular, sob coordenação da Secretaria Geral da Presidência da República, em Florianópolis, 27 a 29 de maio, foram adiados para não se sabe que data, ou cancelados.

Há 1 mês, 31 dias, a solidariedade tomou conta do Rio Grande do Sul e do Brasil, todo mundo cuidando de todo mundo, a sociedade exigindo políticas públicas e apoio dos diferentes níveis de governo, e redes de solidariedade sendo formadas por todos os lados e maneiras.

Há 1 mês, 31 dias, as perguntas surgem, cada dia mais fortes, sobre como cuidar das vidas, sobre quem deixou de cuidar das vidas, sobre quem descuidou de políticas públicas, sobre quem não cuidou de equipamentos e serviços públicos que pelo menos pudessem diminuir os estragos.

Há 1 mês, 31 dias, a vida teima em renascer dia após dia, no meio da dor, do sofrimento, das mortes, da destruição.

Há 1 mês, 31 dias, a Casa Comum, a Mãe natureza, o meio ambiente, chorando, pedem respeito e olhar pleno de ternura.

Há 1 mês, 31 dias, o tempo passa, mas não passa.

Há 1 mês, 31 dias, mais que nunca, é preciso anunciar: NA BOA LUTA, COM FÉ E CORAGEM, ESPERANÇAR.

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko