Rio Grande do Sul

Coluna

Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social para enfrentar desafios climáticos

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Magnitude dos eventos climáticos recentes desafia agentes que promovem ATHIS a pensar como ela se aplica no contexto dos desastres - César Lopes - PMPA
Não temos tido tempo entre um evento climático e outro para nos prepararmos, quem dirá reconstruir

A ATHIS – Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social – é um direito instituído pela Lei Federal 11.888/2008 que assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social. 

Na prática, a ATHIS vem se definindo a partir da experimentação e das diversas formas de oferecer um serviço técnico, que é de arquitetura e urbanismo, mas também de engenharia, geografia, assistência social e de inúmeras outras disciplinas implicadas em processos que buscam garantir uma moradia adequada para as famílias de baixa renda. Ela deveria vir por meio de políticas públicas de habitação, porém tem sido ofertada por diferentes agentes, na sua maioria, privados, com e sem fins lucrativos. 

Embora sem estar consolidada por uma política pública, a ATHIS é uma realidade que vem ganhando força e se colocando como alternativa para promover moradia adequada para as populações mais vulnerabilizadas. Nessa perspectiva, a ATHIS tem se somado a temas que tangenciam a pauta habitacional e, com isso, tem ampliado suas possibilidades. 

O tema dos desastres socioambientais vem na esteira deste processo. A magnitude dos eventos que estão ocorrendo no Brasil no último período tem desafiado os agentes que promovem ações de ATHIS, das mais diferentes arenas de atuação, a pensar como essas ações se aplicam em contexto de desastres socioambientais e como podem contribuir para uma moradia adequada de modo efetivo diante de tanta tragédia.

As consequências da crise climática estão chegando tão rapidamente que não estamos tendo tempo entre um evento climático e outro para nos prepararmos, quem dirá para reconstruir. Nossas cidades, que já não eram preparadas, agora precisam lidar com emergências que não conseguimos dar conta. 

Nossos problemas com enchentes eram conhecidos e decorrentes do nosso modelo de desenvolvimento urbano, o qual estávamos cansados de avaliar, criticar e revisitar. Agora, eles deixaram de ser pontuais e ganharam uma escala global. Aliás, sempre foram globais. O fato é que hoje vivemos uma potencialização dos desastres socioambientais, onde cidades inteiras são devastadas e milhares de pessoas são desalojadas ou não têm para onde voltar.

Em 2023, a região gaúcha do Vale do Taquari vivenciou fortes enxurradas, e Porto Alegre viu as águas do Guaíba subirem e atingirem a segunda maior marca de sua história, causando impactos na escala regional. Esse também foi o ano em que a Lei Federal de Assistência Técnica completou 15 anos e o Estatuto da Cidade celebrou mais de duas décadas de existência. Ambas as legislações apresentam avanços muito lentos.

Seguimos falando sobre função social da propriedade, mas não aplicamos os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade para reverter imóveis vazios e subutilizados para o atendimento das demandas habitacionais. Ao contrário, vivenciamos despejos e imóveis representativos da nossa luta contra a especulação imobiliária, como a Ocupação Saraí, virar rooftop nas mãos do mercado.

Temos uma lei que garante assistência técnica pública e gratuita para as famílias de baixa renda, mas nenhum programa com recursos públicos permanente para atendê-las. Também temos centenas de profissionais atuando de modo voluntário para fazer rodar aquilo que deveria ser prerrogativa do Estado. Fato é que se identificam processos e ATHIS que, embora tenham nascido de muita luta, não estão estabelecidos e, agora, precisam lidar com um contexto de extrema emergência, para além daqueles de extrema carência habitacional.

A urgência da crise climática demanda a progressão e o estabelecimento de um modelo de atendimento que seja capaz de lidar com as diversas emergências que enfrentamos. A assistência técnica se destaca como uma dessas áreas. No entanto, é imperativo avaliar como as leis existentes ou o conceito de ATHIS podem ser aplicados neste contexto, ou se é necessário reinventar abordagens que ainda não alcançaram seu máximo potencial. O tempo é escasso, mas já tivemos 15 anos para agir, e é essencial agirmos agora.

Para pensar em ações em que a ATHIS pode contribuir para prevenir desastres ou responder de forma mais efetiva às consequências dos eventos extremos, precisamos primeiro conhecer o ciclo dos desastres para contextualizar a assistência a partir deles. Este ciclo é composto por três etapas: o pré-desastre, que envolve a prevenção, mitigação e preparação, onde opera a gestão de riscos; o desastre, que envolve a resposta; e o pós-desastre, que envolve a recuperação.

Assim, pensar em ATHIS no contexto de desastres é diferente de pensar no contexto da gestão de risco. O risco é uma possibilidade de dano, não significa desastre e pode ser evitado ou mitigado. Já o desastre é um risco que se concretizou. Ele é o resultado da combinação de ameaças/perigo, condições de vulnerabilidade e da insuficiente capacidade ou medidas para reduzir as consequências negativas e potenciais do risco. Ele traz perdas e danos para as pessoas e requer uma fase de recuperação.

A assistência técnica, inserida em um contexto de desastres socioambientais, que têm como consequência máxima a morte de pessoas, deve ter como centro de ação a defesa e proteção dessas vidas.

Isso implica em estarmos atentos não apenas às questões materiais que envolvem os bens, mas também às questões não materiais que abrangem a memória, a história, a cultura e as relações sociais das pessoas atingidas.

As ações de assistência técnica são territorializadas, e essa é uma condição que deve embasar qualquer ação de ATHIS para enfrentamento dos desastres climáticos. Portanto, precisamos nos debruçar sobre a realidade dos territórios, da informalidade, os quais são os mais vulneráveis, a fim de compreender o processo de produção desses espaços e, a partir disso, inserir ações de assessoria técnica que se somem e possam efetivamente contribuir para o equacionamento das desigualdades e a promoção da justiça social.

* Karla Moroso de Azevedo é arquiteta e urbanista no CDES Direitos Humanos e no AH! Arquitetura Humana; mestre e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional (Propur), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
 

Edição: Katia Marko