Rio Grande do Sul

Rio Grande do Sul

Um estado em ruínas

'Danos à subjetividade das vítimas da catástrofe também estão na conta das autoridades que agudizaram a tragédia'

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Moradores do bairro Balneário dos Prazeres, em Pelotas, colocam sacos de contenção proximo as casas para evitar inundações - Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

“Chamo de ‘semiocapitalismo’ essa articulação entre acumulação, produção semiótica e estimulação nervosa. A psicopatologia do semiocapitalismo é marcada pela ansiedade, pelos distúrbios de atenção e pelo pânico”. Franco Bifo Berardi, no livro O terceiro inconsciente. Autonomia Literária/ Glac Edições, 2024.

Um olhar perdido em direção ao que foi um dia sua casa. Um carro submergido na lama. Os móveis que foram jogados fora estão no meio da rua. A imagerie da capital se converteu em cenário de destruição. Antes, guardávamos em nossa mente como imagem representativa da cidade a vista do pôr-do-sol do Guaíba, agora é a sombra noturna das ruas cheias de água. Falamos o tempo todo que estamos em guerra, que estamos no interior de um filme-catástrofe. Queremos saber quem causou tudo isso, pois milhares de pessoas passam a viver sem ter uma casa, mudando de abrigo em abrigo. Fala-se em novas cidades provisórias. Mas não sabemos como falar do que se passa na cabeça daqueles que são vítimas da tragédia.

Nelson Brissac Peixoto sabe. Em Cenários em Ruínas (Brasiliense,1987), ele afirma que há três modos de descrever a constituição da subjetividade e o mundo na cultura contemporânea: são as figuras do detetive, do viajante e do estrangeiro. O autor encontrou no cinema imagens que, entendo, podem ajudar a descrever o sentimento das vítimas da tragédia. E com isso tornar maior a responsabilidade dos autores que colaboram na sua agudização. É o que tento fazer aqui.

Tudo começa no instante em que pessoas começaram a viver na beira da estrada como se fossem estranhos em sua própria terra. São pessoas que deixam tudo para trás para ir para abrigos ou fixam-se nas estradas nas proximidades de sua casa: todas têm medo de perder algo, “partem para deixar de ser quem eram e virar um personagem”, diz Peixoto.

A primeira figura de Peixoto, o detetive, se releva aqui na tragédia porque tudo se passa em termos de perguntas: “E se tivessem feito a manutenção das comportas?”, “E se tivessem ouvido os avisos dos cientistas?”. 

A segunda figura, o viajante, se revela pela própria condição dos nossos refugiados, se passa nos abrigos e nas avenidas, com as vítimas da catástrofe. 

A terceira figura, o estrangeiro, ocorre quando as vítimas deixam de ser o que eram para virar uma nova mitologia, aquela do gaúcho exilado em seu próprio estado.

Todos estes personagens e suas histórias estão sendo construídos diante de nós. Elas estão nas fotografias dos jornais, nos depoimentos das vítimas, nas formas como é narrada a tragédia dia após dia. Somos detetives porque estamos à procura das causas da agudização da tragédia. Ela foi pior do que poderia ser. A imprensa de esquerda assumiu este lugar desde o início e o mais recente indício de um crime foi a omissão das autoridades aos sucessivos alertas feitos por técnicos do Departamento Municipal de Águas e Esgotos (DMAE) da necessidade urgente, desde 2018, de fazer melhorias no sistema de proteção e que foram sucessivamente repetidos até 2023, e sobre os quais a administração nada fez. 

“Ele parece estar procurando alguém que desapareceu”, diz Peixoto. Quem desapareceu? Os agentes públicos responsáveis, mas não adianta se esconderem, as pistas que são recolhidas ao longo da tragédia possuem as marcas de sua autoria. Olhamos a cidade como um detetive à procura de pistas ocultas, ainda no subsolo, as omissões de quem tinha a obrigação de proteger a população. Diz o governador que “havia outras agendas” em um programa de televisão. A crítica corrosiva da esquerda vem em seguida: sim, a agenda da destruição ambiental, a agenda neoliberal, a agenda de venda da cidade às incorporadoras de plantão, entre tantas coisas mais importantes do que o risco de vida dos cidadãos para os nossos governantes. 

Até a imprensa hegemônica da capital, que vinha endossando o discurso do “procurar responsáveis depois”, se curva ao clamor das vilas de periferia que pedem ajuda. Se, em entrevista à GZH, o prefeito diz que irá fazer reparos e manutenção, a pergunta que fica é “por que não fez antes?”. Porque não quis. Por isso investigamos. Somos detetives de nossa própria tragédia. Isso acontece porque precisamos saber o que de fato aconteceu. E encontramos nas denúncias dos técnicos, nos depoimentos de servidores o indício necessário para reconstruir esta história. “O private eye está em busca de alguém que fugiu, que tenta se esconder”, diz Peixoto. 

Exatamente como nossos governantes agem, eles correm para contratar uma agência especializada exatamente nisso, em reduzir os danos culposos no caso de tragédias. Diz um meme que é mais fácil e rápido contratar uma consultoria para reduzir danos políticos do que resolver os problemas da cidade. “Todos tentam escapar do seu destino. Tentando enganar o detetive”, prossegue Peixoto. Os relatos que fazem é apenas para nos enganar, como o do diretor do DMAE que alega que o projeto original de defesa da cidade das enchentes foi mal feito. Esses diretores nunca são contratados pelas razões que se apresentam, sempre há outro motivo. É só olhar o novo substituto do Secretário Municipal de Educação, agora ocupado por um ex-diretor da Carris (empresa de transporte coletivo de Porto Alegre). É só olhar o currículo do titular do DMAE, especializado em gerir empresas. Onde está a preocupação em dotar nossos órgãos públicos de técnicos com expertise no setor? Na verdade, eles estão ali para passar a sujeira para baixo do tapete, dissimular, enganar. “Aqui todos usam máscaras”, finaliza Peixoto.

Nosso detetive, diferente daquele dos filmes Noir descrito por Peixoto, não vai a quartos de pensão, a ruas desertas e becos sem saída. Vai a casas de bombas, aos portões do muro da Mauá, a barreiras e taludes e a tudo aquilo que integra a rede de proteção. São lugares como o dos filmes antigos sim, mergulhados na escuridão como o centro da cidade durante a noite, onde a chuva torrencial toma as ruas por completo.

Vigiamos nossas autoridades dia e noite porque são nossos maiores suspeitos. Acompanhamos o que se passa na cidade através do noticiário sete dias por semana, 24 horas por dia, o famoso 24/7, e graças a eles reconstituímos os passos de uma tragédia. Como diz Peixoto, procuramos algo maior “através dessa investigação de um outro, o detetive está em busca de si mesmo. Como todos os habitantes da noite, ele vive em permanente crise de identidade. À procura de alguém, em meio a coisas perdidas e acontecimentos inesperados, sintetiza a obsessiva e infindável tentativa de autorreconhecimento desses indivíduos”. 

É assim aqui. Depois da tragédia, o gaúcho, o porto-alegrense, não se reconhece mais. Tudo que era sua referência no lugar, o Mercado, a Praça da Alfândega, está sob as águas.  

E procura nas coisas a si mesmo, a chuva produziu essa crise de identidade para os moradores do lugar e cada vez que, baixado as águas, os moradores voltam para seus comércios, para suas casas, estão buscando saber o que sobrou de si mesmos, sua própria semelhança em meio a coisas perdidas.

Que identidade era esta? O cineasta Ivanir Boca Migotto, no livro Um certo cinema gaúcho de Porto Alegre ou como o cinema imagina a capital dos gaúchos (Pragmata, 2022), lembra que, apesar da existência de uma arquitetura eclética e sofisticada, presentes nos prédios do Correios e da Biblioteca Pública e grandes nomes como Augusto Meyer e Araújo Viana, “nada disso foi suficiente para dissolver a concepção derrotista que o porto-alegrense desenvolveu sobre sua própria cidade. Resultado da dicotomia entre a cidade imaginada e a cidade real”, diz Migotto. O autor inspira-se nos estudos da historiadora Sandra Pesavento, para quem “falar mal da cidade, queixar-se da pequenez do ambiente”, uma percepção negativa da cidade que só mudaria a partir dos anos 80, entre vários motivos, principalmente pelo contexto de redemocratização que atinge a capital.

Desde então sempre tivemos uma visão otimista de Porto Alegre, tanto em governos de esquerda como de direita. Quando a esquerda estava no poder, a capital era vista de forma positiva porque era a cidade do Orçamento Participativo e do Fórum Social Mundial. Quando a direita chegou ao poder, essa visão se manteve: agora é a cidade do empreendedorismo e do South Summit. A identidade do porto-alegrense era positiva, de que podia vencer suas adversidades, valor cultuado pela propaganda governamental que se mostrou frágil com a enchente. É como se, de certa forma, viesse para fora do inconsciente da cidade aquilo que seus cidadãos reprimiram, aquilo que fora recalcado, sua autoimagem negativa. 

Frente às chuvas, novamente, os cidadãos sentiram-se pequenos diante do mundo, sua cidade imaginada mostrou-se distante da cidade real. Esse choque o faz descobrir quem é ele próprio. Os cidadãos da zona norte, abandonados pelo poder público, sentem que não são ninguém. Mas lembra Peixoto que, sem as luzes no centro da cidade “no mundo da escuridão, todos são detetives”.

Começa-se pelas pistas. Como o prefeito, o governador diz que foi alertado dos riscos ambientais, mas que “havia outras agendas”; o diretor do DMAE diz que reformar o sistema de proteção leva tempo, e mesmo as pequenas medidas têm de passar pelo processo de licitação, mas não explica porque o tempo entre as primeiras denúncias (2018) e a última grande enchente (2023) não foi suficiente para as providências cabíveis. 

As primeiras reações, inclusive dos órgãos de imprensa do establishment, começam a se revelar nas buscas das razões da crise e a encontrar nas autoridades os culpados. Isto acontece porque as autoridades que nada fizeram para proteger a população, quando avisados do perigo, fizeram uma traição, um delito. Como nos filmes de detetive, “a partir deste ato criminal, dessa falha, a vida desses indivíduos se dissolverá num quebra-cabeça sem solução, cheio de acontecimentos confusos, tornando impossível reconstituir o personagem”, diz Peixoto.  Não é assim que se sentiu o prefeito quando questionado no Jornal do Almoço sobre seu papel na tragédia? Sua face surpresa não revela o quebra-cabeça que começa a mostrar suas peças? Ele fica se desculpando “o DEP foi extinto por outro governo”, “porque esses técnicos não fizeram nada”, quer dizer, as suas explicações começam a ficar cada vez mais confusas, como o réu confrontado por um detetive nos filmes. 

O diretor do Dmae também insiste que o projeto estava errado e não previa o montante de chuvas. Mas não previu acertadamente um limite para as águas que não foi ultrapassado? Mas não previu um sistema de barreiras que só por má conservação ruiu? Técnicos da época de sua criação vem a público, inclusive no programa Fantástico, da Rede Globo, atestar sua qualidade. Onde está o erro do projeto?

É que “a investigação é uma série de encenações e falsificações de provas, onde todo mundo tenta enganar o outro”, aponta Peixoto.

A segunda figura de Peixoto é a do viajante. A água cobre os bairros e casas numa lâmina por todo o horizonte. Impossível não se comover com o cenário de Eldorado do Sul, Canoas ou do Bairro Sarandi e Humaitá em Porto Alegre. As cidades se transformaram num deserto de águas, apenas os telhados são vistos ao longe, sempre do alto. Há ali até cavalos, como o Caramelo. Cara Melo, chama a atenção o jornalista Carlos André Moreira. Apenas águas, ou rios de água que circulam entre os tetos das casas. A água toma o espaço e não fica nada ao redor. As pessoas deixam suas casas para os abrigos, caminham fugindo das águas, abandonam tudo. Partem para onde as equipes da Defesa Civil as levam.

Diferentemente dos aventureiros descritos por Peixoto, que viajam sem destino, nossos viajantes têm destino definido, partem, mas querem voltar. Eles não buscam uma cidade no fim da estrada, eles querem é voltar para o início da sua vida na cidade, para as suas casas. Não querem fazer raízes noutro lugar, querem voltar para o seu lugar “neste mundo imenso e vazio, a procura de identidade tem um sentido espacial. Aqui tudo se coloca em termos de lugar”, diz Peixoto. Nas casas inundadas eles tinham uma família, uma referência. Eles não compreendem um mundo em movimento, o mundo dos imigrantes do século 19, ou dos cowboys de Peixoto. É o contrário dos viajantes tradicionais, pois eles sabem quem são e de onde vieram, mas a enchente não diz para onde vão. Eles sofrem um imenso processo de desterritorialização, nos termos do filósofo Gilles Deleuze (1925-1995) e do psicanalista Félix Guattari (1930-1992). 

A vítima da enchente é alguém que sofre pela falta de um lugar. Foi obrigado a ir mais longe: moradores de Eldorado do Sul, castigada pelas chuvas, tiveram de ir para abrigos em Porto Alegre. Ir tão longe é impossível sem se desterritorializar. Aqui, estar distante é não ser alguém, é transformar-se em um ninguém. O viajante das enchentes não viaja por opção, mas ao contrário, pela falta de opção. Nisso ele se distancia do viajante tradicional, para quem não estar em casa e estar em viagem é a sua recusa de um lugar. É que ele não é um viajante comum, ele é um náufrago. Ele é a vítima de um acidente climático, a enchente, e foi salvo por uma embarcação. É sua casa, seu barco, seu lar, que sofreu um naufrágio. “Para se encontrar, ele tem de ir embora e não morar em lugar algum”, diz Peixoto.

A identidade do viajante tem por referência ter a sua casa, a de nosso náufrago é não ter. Mas como assumir essa inquietude, como constituir a perda em modo de ser? Viver nas estradas em lonas, como os refugiados do Mali em guerra civil que chegam no Marrocos e na Mauritânia, como descreve a estudante de jornalismo Jéssica Paulo, só pode ser expresso em termos de desespero. “Eu sei porque você está aqui. Você está aqui por causa da gente. Quando voltar pro seu mundo, por favor, conte a eles que estamos aqui”.  

É essa a atitude dos moradores do Sarandi, da Vila Farrapos, que fecham as ruas para chamar a atenção dos meios de comunicação pelo fato de, há mais de 20 dias, estarem sem água e sem luz. Rosane de Oliveira, em artigo no jornal Zero Hora, registrou as reclamações dos vereadores na sessão plenária que cobrou das autoridades as providências adotadas pela prefeitura para resolver os problemas da enchente. “Para se encontrar, ele tem de ir embora e não morar em lugar nenhum”, diz Peixoto. Para nossas vítimas, é o contrário, eles têm de voltar para morar em suas casas. É aqui que eles sentem o pânico descrito por Berardi: e se não conseguirem voltar, o que será deles? 

Esse é o dano moral, o sentimento de desespero que também cabe na conta das autoridades. 

Aqui o movimento aparece como algo provisório. Eles partem para longe, buscam rotas de fuga, abrem buracos nos prédios para fugir das águas. São partidas para viver por pouco tempo em abrigos, mas, ao contrário dos viajantes, eles querem voltar. A proposta de criação de cidades provisórias é uma ameaça a seu desejo de retorno: eles sabem que podem ficar ali definitivamente, e por isso não querem criar raízes ali, nem mesmo nos abrigos. Eles temem que, caso se apeguem, vão ter desistido de suas casas. Os próprios voluntários sabem que, nesse mundo passageiro, não é possível criar vínculos - ali adiante, eles próprios, os voluntários, terão de voltar para o seu mundo, para o seu trabalho. Vivem todos no estranhamento “não ter casa, não ter memória, não ter para onde ir”, explica Peixoto. 

O que nossos viajantes por obrigação sofrem devido a enchente é um processo de desenraizamento involuntário. Não foi por sua vontade que fugiram para se isolar em um lugar qualquer. Agora que só tem orientações das autoridades, se transformam em novos nômades. E elas também não sabem o que fazer. Os abrigados no Pepsi-on-Stage tiveram de ser removidos para um lugar mais seguro. Para nossos desabrigados, os lugares de acolhimento são apenas um lugar de estadia provisória, um lugar de passagem. Logo alguns irão reencontrar seus familiares e tentar voltar para as suas casas quando as águas baixarem. Estar num abrigo ou no meio da estrada, tanto faz. As fronteiras dos municípios são ultrapassadas, vão para mais longe da tragédia, da água acumulada em suas casas, como na região de Lami, que já era a mais distante do centro de Porto Alegre. 

É essa distância que tomam do lugar de onde vivem que os torna viajantes, mas essa viagem que não escolheram também os torna estrangeiros em seu próprio lugar. “São aqueles que vêm do nada e parte para lugar nenhum”, diz Peixoto. 

Nas histórias de cinema descritas pelo autor de Cenários em Ruínas, alguém sempre aparece de repente vindo de longe sem nome e sem história, ao contrário das cenas de catástrofe que estamos vendo nos jornais. Ali eles têm nome: são os voluntários, mas também são os servidores públicos, os bombeiros, os médicos, etc. Eles têm sido sacrificados, desvalorizados e humilhados pelos políticos neoliberais de plantão, mas quando aparecem tudo muda na vida das vítimas que salvam dos telhados das casas, das ruas alagadas.

Nesse mundo de viagens, a estrada é substituída pelos rios que surgiram entre as casas dos bairros alagados. As motocicletas são substituídas por barcos que passam a toda velocidade, seja nas ruas do bairro Sarandi, seja nas ruas do centro de Porto Alegre, junto ao Mercado Público. Essas vias são também ocupadas por criminosos de plantão, que usam a noite e a calamidade como forma de aumentar lucros e nisso muito se assemelham aos capitalistas de plantão. Afinal, não foram eles que estavam por detrás do mote “Deixar passar a boiada”, que significou aproveitar a confusão para passar todas as formas de ilegalidades imaginadas para o meio ambiente? Esse mundo das águas à noite se transforma num novo faroeste caboclo, agora gaudério, um lugar sem ordem e sem lei. Para os criminosos, as ruas alagadas e as propriedades abandonadas são o meio ideal para seus crimes, e eles também se tornam viajantes, pois nada abala seu universo e se adaptam à catástrofe, pois conseguem barcos sabe-se lá onde para perpetuar seus crimes. “Em vez de desaparecerem na escuridão, os indivíduos agora somem nessas extensões ilimitadas“, assinala Peixoto. O alagamento é esse espaço a conquistar, todos correm pelas ruas ou navegam por elas até chegar à última fronteira determinada pelo Muro da Mauá.

A última figura de Peixoto é a do estrangeiro. As ruas amanheceram naquela quarta-feira de 22 de maio com lixo acumulado pelos moradores. A água estava reduzindo sua presença nas ruas, mas eis que, no dia seguinte, na quinta-feira, tudo mudou. A chuva imensa retornou e retirou de casa, mais uma vez, aqueles que tentavam voltar para o seu lar. Foi a prefeitura que orientou, dias antes, os cidadãos a retornarem para suas casas, mas não aprendemos ainda que é na tempestade que os atuais gestores revelam sua incompetência. 

A consequência foi que os moradores tiveram de sair mais uma vez de suas casas, o lixo ficou nas ruas e eles voltaram para a casa de amigos e parentes. Era um dia normal até então, com as pessoas indo trabalhar e, à noite, tiveram de voltar para suas casas. O transporte começou a rarear e aqueles que tinham de voltar para longe, para a zona sul, logo enfrentaram dificuldades de transporte. Diz Peixoto: são “viagens que levam para longe, sem sair do lugar. O extremo deslocamento deles, a falta de uma linguagem nativa para expressar sua perdição, [expressa] o sentimento de não pertencer àquele mundo”.  Essas pessoas que tentaram voltar para casa sem transporte se sentiram perdidas. Seus bairros sob as águas já não lhes pertenciam mais. “O estrangeiro é aquele que não tem lugar no seu próprio país”, diz Peixoto.

Esse porto-alegrense que está a caminho de casa, no início da noite de quinta-feira, sem ônibus, no meio da água, caminham como se o fato da enchente os levasse a ficar em movimento. Eu os vi numa reportagem da RBS Notícias. Ele não sabe ainda se a água já chegou a sua casa e se chegou, ele não tem mais para onde ir. Ele está “condenado a ser para sempre estrangeiro. Não há mais um lugar onde eles possam se localizar”, assinala Peixoto. 

Ir até a própria casa deixa de ser uma busca por um lar e passa a ser apenas uma travessia. Talvez para ter de chegar e voltar para a casa de parentes. Na imagem da reportagem o vemos caminhando pela rua alagada, sozinho, com sacolas, em silêncio, vivendo seu drama. A enchente priva os cidadãos de sua linguagem. É o silêncio que se impõe. Fora os breves momentos em que o cidadão é entrevistado pela imprensa, que se consolam entre si, é como se mal pudessem falar. “Incapazes de retratar a si mesmos e a paisagem ao redor. Carentes de imagens nas quais se reconhecer”, diz Peixoto.

Vemos a fala de morador do centro indignado com o fato de o prefeito não ter consertado uma casa de bombas que destruiu o seu trabalho e o de seu filho, ou dos móveis onde já aparece escrito “É culpa do Melo”. Vemos no Jornal Nacional de sexta-feira, dia 24 de maio, uma mulher mostrar seu rosto e dizer: “É o rosto de quem não pode mais dormir, entende?”. Esses indivíduos ficaram deslocados em relação ao seu mundo, a sua casa, ao seu trabalho. Por isso, uma série de pessoas saiu às ruas nos dias em que fez sol para fazer fotos: eles precisavam ter língua, descrever, mostrar o que aconteceu: vemos diversas pessoas fazendo fotografias da arquitetura dos prédios do centro da cidade, como o Mercado Público ou o Margs (Museu de Arte do Rio Grande do Sul) para mostrar o nível da água. E a arte da fotografia se revela nos tons que avançam, os tons de amarelo-areia que se mostram em degradê como uma obra de arte. “Daí o recurso à imagerie, lhes oferecem as imagens que estão procurando de si mesmos e de seu lugar”, diz Peixoto.

Essas vítimas da enchente, como estrangeiros em nossa cidade, estabelecem relações, mas de que tipo? Na rua, espaço onde se encontram os vizinhos, encontram-se também voluntários vindos de lugares distantes. As relações se tornam muito efêmeras, como no caso do casal de viajantes Renan e Michelle, com mais de 1,5 milhão de inscritos no Youtube, que correu para o Rio Grande do Sul para ajudar no que pudesse. Eles recolheram donativos, foram às cidades e regiões inóspitas, entregaram doações, se emocionaram e emocionaram moradores, mas no fundo, teceram relações muito efêmeras. 

Para as vítimas da tragédia “tudo o que podem esperar é um encontro momentâneo com alguém que lhes ajude na busca de si mesmos, uma pausa num itinerário que não pode ser interrompido. Do mesmo modo que se aproximaram eles se separam”, diz Peixoto.

Quando o cidadão que perdeu tudo se dá conta, quando “cai a ficha”, chega à conclusão de que “é preciso mudar tudo”, como se a tragédia de alguma forma servisse para politizá-lo mais uma vez. Ele quer recuperar não apenas a dignidade, mas a cidadania. Ele se conscientiza das falhas dos administradores, do prefeito, do governador. 

Haverá eleições, mas “para eles não há volta possível”, diz Peixoto.

Talvez seja preciso uma tragédia de tamanhas proporções para acordar um povo contra o neoliberalismo. Transformar um morador em estrangeiro em sua própria cidade toma assim o sentido de um despertar: ele aprende na marra para que serve o Estado, sua importância, o papel de nossos governantes, das políticas públicas. Eles sofrem por seu abandono e querem virar porto-alegrenses novamente, gaúchos novamente. Deixar de não ter casa, viajar sem destino, não ter uma identidade associada a um lugar.  

Foi preciso sair da própria casa para sentir na pele o que significa um Estado que não age pelos pobres, mas somente para os ricos. Não foi o que moradores da zona norte criticaram quanto a instalação das bombas de sucção de água, que foram instaladas mais perto de grandes armazéns privados do que perto da população mais pobre? Aqui, os argumentos técnicos cedem ao papel da ideologia de plantão. Foi preciso, como diz Peixoto, que um travelling contínuo passasse diante de seus olhos duas vezes para se darem conta da incompetência dos gestores: duas enchentes foram necessárias, o retorno da água para regiões que pareciam estar se recuperando, não foi uma obra do destino apenas. Foi uma lição dada pela natureza. 

O prefeito já havia errado quando havia mandado transformar o Pepsi On Stage em abrigo, pois teve de tirar os abrigados dali. E errou mais uma vez quando mandou a população descartar o lixo às vésperas de uma grande chuva prevista pelos meteorologistas. 

Cidadãos deram-se conta de que a prefeitura errou. Não há desculpa para a produção de tanta dor coletiva. 

A velocidade da tragédia converteu a cidade num filme catástrofe. Ruas voltaram a ser alagadas, novamente pessoas acuadas nos telhados. Aqueles que estão a salvo da tragédia, veem tudo de suas casas como se fosse um cinema, devido ao poder de registro 24/7 da imprensa local. Ela é auxiliada por inúmeros cidadãos munidos apenas de uma câmera que alimentam esse vertiginoso campo imagético, “transformando tudo que está em cena do outro lado. O movimento constrói o mundo como imagem”, diz Peixoto. 

Como o cinegrafista da RBS que olha seus pés de botas e vê a chuva aumentar o nível da Rua José de Alencar e para, logo após, ver um bueiro com águas que jorram para o alto. A imagem daquele bueiro é a perdição da cidade, mostra para os cidadãos que tudo voltou a ser a mesma catástrofe dos dias anteriores, com as pessoas tendo de ser novamente resgatadas de casa. Novamente cidadãos têm de escolher o que salvar, o que levar para o abrigo. Em outro bote da Defesa Civil, uma idosa perambula pelo rio vendo como estranho o lugar onde deveria ser sua casa. O prefeito reitera no Jornal do Almoço de sexta feita, dia 24 de maio, que as pessoas continuam morando onde não devem. Como assim? Até no bairro Cidade Baixa não deviam? No bairro Menino Deus também não? Pelo menos o perfeito inovou no estilo para as câmeras, tirou a casaca da Defesa Civil e a substituiu por um casaco de nylon verde. Afinal, ele é um defensor da ecologia. E da natureza. Estou sendo irônico, é claro.

Os repórteres entrevistam pessoas que foram vítimas da natureza duas vezes. Elas tinham voltado para casa, buscando a identidade que haviam perdido, estão permanentemente mobilizadas em família voltando para o lugar de onde foram expulsas pelas águas. Nesse mundo tudo fica na borda, o lixo na borda das casas, a água no limite do meio-fio da rua e a calçada, que as águas transformaram em terra de ninguém e as pessoas voltam para ocupá-las novamente.  Mas agora a paciência transborda. É demais. Eles não aceitam se desterritorializar, eles não aceitam se transformar em estrangeiro. Não é fácil ser um estrangeiro em sua própria cidade, virar um refugiado. Nos reconhecemos como os moradores de um lugar, é um porto-alegrense que ama sua cidade. “Neste mundo, todos têm sua identidade em crise”, diz Peixoto. Fora de casa estão deslocados, sentem que vão desaparecer.

Resta reconhecer: vivemos uma cidade em ruínas, vivemos um estado em ruínas, como os cenários descritos por Peixoto em seu livro.

Dos 497 municípios gaúchos, 417 foram atingidos. Nossos governantes, com seu projeto neoliberal do qual jamais se afastaram um centímetro sequer, fizeram com que os cidadãos da cidade perdessem tudo o que constituía suas raízes. Com o abandono da conservação da proteção da cidade, com a erosão da política ambiental que promoveram, com sua entrega irredutível ao desejo do capital (mais prédios, vamos!), deram início a primeira etapa do processo de desterritorialização do porto-alegrense, nos transformando em estrangeiros em nossa própria casa. Fim da autoestima elevada pela incapacidade das autoridades de trocar parafusos e borrachas das casas de bombas da cidade, o que agudizou a inundação, dano incomensurável que é a prova de que o capitalismo vive da destruição: quanto não lucrarão as empresas agora? 

Mas, fora a economia, há outro dano maior, um dano incomensurável ao espírito do porto-alegrense. “Uma tristeza imensa domina todos eles, um sentimento de perda, de malogro, de ser tarde demais”, diz Peixoto. Se essa tristeza for posta para fora nas próximas eleições, se esse estranhamento se tornar força de reação, então teremos chance de mudar o modelo econômico que nos trouxe até aqui, e com isso, dar uma verdadeira esperança de vida para as novas gerações. 

* Jorge Barcellos é historiador, doutor em Educação e autor de O Êxtase Neoliberal (Editora Clube dos Autores)

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


 

Edição: Katia Marko