O negacionismo científico devastou muitas Luanas, Pedros, Marias, Joanas, Lucas
A casa de Luana ainda não havia sido aberta. Pálida e visivelmente em choque, a mulher, que estava abrigada há três semanas no apartamento de um conhecido, reencontra seu lar. Relata que foi alertada sobre a rápida subida no nível da água devido ao não funcionamento da casa de bombas próxima do seu bairro quando já estava de pijama para dormir. Mãe e filha pré-adolescente conseguiram organizar duas mochilas. Na vizinhança, ouviam-se os gritos de “água”.
A porta da casa, que estava submersa, apresentava-se dilatada e assim se abriu sozinha. Nada havia sido roubado, mas nada lá ainda poderia ser utilizado. O fétido odor impregnava cada item daquele que já havia sido um lugar seguro. Tudo estava revirado, a casa ficou submersa em quase dois metros de esgoto. Os voluntários da equipe de limpeza começaram a retirar todas as coisas da casa. Eu acompanhei Luana até o quarto. Ela queria tentar salvar alguma coisa. Naquele momento, vi uma mãe tentando recuperar as lembranças da história da filha: cadernos, ursos, brinquedos, fotos dos seus anos iniciais. “Ela ainda gostava muito de brincar; agora será forçada a crescer, terá que abandonar a infância à força”, disse Luana.
Cada encontro com uma nova recordação fotográfica era um raro momento de alegria. Luana chorou, buscou explicações, acreditando que algo divino quis lhe ensinar a não acumular tantas coisas, e sentiu-se culpada por querer se desfazer das roupas da filha devido ao esgoto impregnado. Eu fui apenas um suporte. Como elaborar a perda de quase tudo? Quando cheguei em casa, olhei para as paredes do meu quarto. Limpas, sem marcas de inundação ou cheiro de putrefação. Um alívio, mas também uma constante sensação de exaustão física e mental.
As situações de emergência e desastres nos evocam a construir um outro lugar, enquanto profissionais da saúde mental. Tenho tido a oportunidade de vivenciar plenamente o conceito de clínica ampliada. Jamais imaginaria que faria um suporte psicoterapêutico enquanto quebrava um guarda-roupa, arrancava uma porta, empurrava entulhos com uma enxada ou esfregava o chão com uma vassoura.
Luana chorou, falou, planejou. No fim, foi buscar sua filha para apresentar as atuais condições da residência. Agora tinha coragem de dividir um pouco do caos com sua “criança que teve a infância roubada” pela falta de manutenção do sistema de proteção contra enchentes da cidade. O negacionismo científico devastou muitas Luanas, Pedros, Marias, Joanas, Lucas. Enquanto não houver uma mudança radical nas leis que garantirão a preservação ambiental, estaremos “apagando incêndios”, com o perdão do trocadilho.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko