Senhor Governador, no programa Roda Viva, da TV Cultura, o senhor foi questionado sobre o enfraquecimento dos Comitês de Bacia. Sua resposta foi: “Não há um enfraquecimento dos Comitês de Bacia. Há um processo, apenas, que eu tenho conhecimento eu estou aberto para conversar com essas comunidades, sem problema, que exige que determinados gastos que faziam diretamente pelos comitês passem por ordenação de despesa que passe pela secretaria".
É bem visível seu desconhecimento a respeito dessa instância importante na gestão das águas. Não se tratam de “comunidades”: são colegiados criados pela Lei das Águas do Rio Grande do Sul em 30 de dezembro de 1994, a Lei 10.350/94.
Tudo indica que o senhor não sabe que nosso estado foi um dos pioneiros, no Brasil, do cumprimento da Constituição Federal, no seu artigo 21, XIX e da Constituição Estadual, artigo 171 que instituem, em nível federal e estadual, sistemas de gestão dos recursos hídricos.
Nossa Lei 10.350 foi gestada experimentalmente pela criação dos dois primeiros comitês de gerenciamento de bacia hidrográfica do Brasil, o Comitesinos e o Comitê Gravataí, criados, respectivamente, em 1988 e 1989.
Talvez agora, com a catástrofe político-ambiental que vivemos, o senhor, a mídia e a população estejam conhecendo e entendendo o que é uma bacia hidrográfica, sua complexidade, seu dinamismo e sua profunda relação com o ambiente e com a sociedade. A evidência de que as questões relacionadas com as águas da natureza precisam ser conhecidas, tratadas e planejadas nessa unidade geográfica ficou dramaticamente explícita e, mesmo que a contragosto, reconhecida e levada a sério.
Bacias hidrográficas, senhor Governador, são a conformação geográfica pela qual as águas da natureza se apresentam e se tornam disponíveis para uma multiplicidade de usos essenciais para a sociedade. Todas as águas superficiais de uma bacia fluem para o rio principal e todo o solo desse território está envolvido nesta dinâmica. As águas subterrâneas também entram nesse processo, recebendo e contribuindo e as águas atmosféricas também aí estão presentes. Mas “bacia hidrográfica” não é apenas um conceito físico: todas as atividades humanas nela desenvolvidos estão relacionadas não apenas com o solo da mesma, mas, de forma muito especial (e de múltiplas maneiras) com a água, sua dinâmica, sua presença – suficiente, escassa ou excessiva.
Para qualquer tomada de decisão, senhor Governador, é fundamental o conhecimento, tradicional e científico, da natureza e do comportamento das águas, de suas relações com o solo e o clima, assim como das atividades humanas desenvolvidos na bacia hidrográfica, a análise sócio-política e econômica dessas relações. O envolvimento de todos os interessados, individuais, coletivos e corporativos nesse conhecimento e o debate constante sobre as decisões, atitudes e atividades levando a um planejamento participativo dos usos da água e do solo da bacia o que se chama gerenciamento de uma bacia hidrográfica. De uma forma mais genérica, pode-se falar em gestão dos recursos hídricos, seja no nível de uma bacia hidrográfica, de um estado federado ou da nação.
Os municípios, através das prefeituras, são importantes intervenientes nessa gestão, pois cabe a eles o planejamento das cidades e a gestão das atividades municipais, quase todas se relacionando com os usos da água e do solo.
E aqui chegamos, Senhor Governador, ao momento em que, na década de 70 passada, no Rio Grande do Sul, a percepção de uma extrema poluição dos rios Sinos e Gravataí levou parlamentares, ambientalistas, parcela de empresários a clamarem por atitudes e soluções. Foi no âmbito dos profissionais públicos e das universidades que se desenvolveu a busca de soluções. Técnicos de diversos organismos públicos, como a Corsan, Companhia Riograndense de Saneamento (quando pública); a Metroplan, o antigo Departamento de Meio Ambiente da Secretaria da Saúde; o DMAE, Departamento Municipal de Águas e Esgotos (Porto Alegre); o Semae, Serviço Municipal de Água e Esgotos (São Leopoldo), a Cientec (Fundação de Ciência e Tecnologia), também profissionais do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH-UFRGS); Unisinos e outras universidades apontaram para a necessidade de tratar da poluição na unidade da bacia hidrográfica e partiram para a criação desses colegiados. No caso do Sinos, a própria imprensa regional (Grupo Editorial Sinos) contribuiu para a mobilização.
Os dois comitês pioneiros tornaram-se laboratórios para a busca da gestão, com inúmeras iniciativas bem sucedidas, sempre com a participação de responsáveis pela poluição, voluntária ou por pressão.
A busca de experiências em nível nacional e em outras nações (especialmente com o modelo francês de gestão das bacias reconhecido internacionalmente) tornou evidente que esses comitês e outros a serem criados deveriam estar enquadrados em um sistema de gestão mais amplo e operativo. A própria Constituição Estadual teve a contribuição dessas experiências, o que gerou o Artigo 171 instituindo um sistema que adota “as bacias hidrográficas como unidades básicas de planejamento e gestão, observados os aspectos de uso e ocupação do solo”. Na elaboração desse artigo deve ser destacada a participação da Procuradoria Geral do Estado, que teve representantes contribuindo lado a lado com os demais profissionais.
A partir desse marco, tratou-se de constituir uma legislação que, aproveitando as lições práticas dos dois primeiros comitês e dos debates que eram feitos em nível nacional, gerasse um sistema inovador, participativo e eficaz.
A nossa Lei das Águas, senhor Governador, foi um marco em nível nacional e nela, em grande parte modelou-se a Lei Federal 9433/97 que instituiu efetivamente o Sistema Nacional de Recursos Hídricos. Na sua elaboração é preciso destacar a participação, no grupo redacional, de uma Procuradora do Estado, que deu segurança jurídica aos aspectos legais. A Lei 10.350 foi promulgada em 30 de dezembro de 1994 e causa espécie que tenha sido tão desconhecida e valorizada pelos governantes que se seguiram.
A essa altura, é preciso dizer-lhe, Senhor Governador, que os 25 comitês de gerenciamento de bacia hidrográfica criados oficialmente no nosso estado (sempre a partir de muita participação social) compõem um sistema de gestão que compreende ainda o Conselho Estadual de Recursos Hídricos, o Departamento de Recursos Hídricos (acrescentado não muito devidamente “e de Saneamento” subordinado à Secretaria de Meio Ambiente (infelizmente com o acréscimo meio inexplicável de “Infraestrutura”) e as Agências de Região Hidrográfica. Sobre estas falaremos a seguir.
O que é preciso lhe dizer, Senhor Governador, é que os comitês são conselhos deliberativos, com funções definidas pela própria Lei. Não têm atribuições executivas e muito menos dispendem “certos gastos que faziam diretamente pelos comitês…” como afirmou o Senhor. Ao contrário, a subsistência de uma estrutura mínima – uma sede e um(a) secretário(a) executivo(a) é que dependem de um pequeno recurso a ser provido pela Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do Estado do Rio Grande do Sul (Sema). A composição de cada comitê é definida pela lei em três grupos: setores usuários da água (40%), setores representando os interesses difusos (grupos sociais como ambientalistas, escolas, sindicatos etc) (40%) e órgãos públicos com atribuições relativas à gestão dos recursos hídricos, com reuniões periódicas, sem qualquer remuneração. As recomendações e decisões de um comitê, se implicam recursos financeiros, são encaminhadas, aplicadas, efetivadas pelos organismos ou setores (públicos ou privados) correspondentes.
Ao responder sobre o enfraquecimento dos comitês gaúchos, o Senhor Governador negou que eles existam. Realmente, o Senhor não acompanha o que acontece. Não é apenas um enfraquecimento o que existe, é a quase impossibilidade de existir e cumprir suas funções, é o abandono por parte do Governo. Os comitês estão sobrevivendo e tentando cumprir suas funções legais, durante 36 anos por parte do Comitesinos, 35 anos pelo Gravataí e um pouco menos pelos outros, apenas pela dedicação, pelo voluntarismo de pessoas dos mais diversos setores que têm representação nos mesmos. Alguns são apoiados por universidades, outros por entidades ambientalistas ou representando setores produtivos ou até sobrevivendo nos espaços particulares de dirigentes de comitê Pode-se dizer, Senhor Governador que é heróica a sobrevivência dos Comitês de Bacias Hidrográficas do Rio Grande do Sul. Essa “façanha” que serviu de modelo a todo o Brasil não precisa causar-lhe preocupações orçamentárias, nem vai comprometer qualquer equilíbrio fiscal ou passar “por ordenação de despesa que passe pela Secretaria".
Em compensação, uma determinação da Lei 10.350 que não foi cumprida até hoje é a da criação das Agências de Região Hidrográfica, cada uma sendo o braço executivo dos comitês da respectiva região (assim denominadas a grande bacia do Guaíba, a parte gaúcha da grande bacia do Uruguai e uma região composta pelas pequenas bacias que deságuam diretamente no oceano.). Cabe, legalmente, a essas agências (técnicas, e não de regulação) a coordenação da implementação dos Planos de Bacia aprovados por cada comitê, pelos responsáveis por cada uso da água (e solo) ou por entes públicos nos três níveis federativos. Além dos Planos de Bacia, a Lei prevê um Plano Estadual de Recursos Hídricos que também tem ficado em segundo plano.
Nesse ponto é fundamental que o Senhor Governador (assim como todos os decisores públicos) conheça um dos instrumentos de gestão fundamental, indispensável à existência e atuação dos comitês e à execução dos Planos de Bacia: a cobrança pelo uso da água aos setores usuários. A viabilização e aplicação desse instrumento previsto claramente na Lei até hoje não foi cumprida (essa ”façanha” está em plena execução em muitas bacias brasileiras). É importante frisar que não se trata de mais um imposto, mas de uma cobrança do tipo condominial (usuários que compartilham um mesmo recurso econômico, ou seja, escasso relativamente à disponibilidade e aos usos concomitantes e às vezes conflitantes). Os valores (conforme tipo, qualidade e quantidade do uso), formas de arrecadação e aplicação devem ser decididos pelo comitê, onde estão presentes os próprios usuários.
Muito se poderia dizer, Senhor Governador, para que conheça melhor não só os Comitês de Bacia Hidrográfica mas todo o Sistema Estadual de Recursos Hídricos e sobre a saga que esse sistema vem vivendo há tantos anos. Mas é importante finalizar com uma informação relevante no momento dramático que estamos vivendo: os Planos de Bacia, pela Lei, devem ocupar-se das condições da qualidade das águas, das intervenções estruturais e não-estruturais na bacia e dos aspectos financeiros de sua execução.
Especialmente no segundo tópico, encontra-se a aplicação de medidas relacionadas à quantidade de água em uma bacia, seus usos e a proteção contra eventos adversos, naturais ou provocados.
É impossível, Senhor Governador, deixar de relacionar o descaso com os Comitês de Bacia Hidrográfica, a não criação do braço técnico, as Agências (mesmo que fosse apenas uma para todo o estado) e a não aplicação da Cobrança pelo Uso da Água com os danos humanos, materiais e psicológicos provocados pela atual tragédia (que se poderia dizer anunciada). Nossa Lei das Águas determina que um dos objetivos da Política Estadual de Recursos Hídricos é “combater os efeitos adversos das enchentes e estiagens e a erosão do solo” e diz que “a gestão…processar-se-á no quadro do ordenamento territorial” que pode ser entendido como tanto urbano quanto rural. O Senhor pode verificar como um Plano de Bacia poderia ter contribuído com planos de desenvolvimento urbano, com obras de contenção compatíveis com a respectiva bacia hidrográfica e com o disciplinamento de usos que degradam os solos e as águas.
Finalmente, Senhor Governador, espero que, algum dia, a efetiva gestão dos recursos hídricos possa contribuir para impedir ou minimizar tragédias como estamos vivendo e que possamos dizer que os esforços de todos e todas que se dedicam ou dedicaram à implementação de uma política de recursos hídricos e de uma gestão correspondente sirvam de modelo para todos os governantes.
* Luiz Antonio Timm Grassi é ex-presidente do Comitesinos e do Comitê do Lago Guaíba.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Sul 21