Rio Grande do Sul

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Os abutres rondam a catástrofe

'É nos períodos de crises que se costuma 'passar a boiada', infelizmente'

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Entorno do Mercado Público de Porto Alegre nesta sexta-feira (24) - Rogério Soares

Livros e palestras de autoajuda empresarial propagam a ideia de que onde há crise, os espertos veem oportunidades. Essa é a lógica do capitalismo, ou seja, é possível lucrar inclusive com as tragédias. Países apoiam guerras em outros pontos do planeta para que sua indústria bélica venda armamentos  – muitas vezes para ambos os lados – e, depois de terminado o conflito, suas empresas reconstruam os países destruídos. Da mesma forma, alguns governantes atuam para que determinadas empresas públicas sejam sucateadas para, depois de perderem a credibilidade, serem privatizadas. 

Assim foi feito com a CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica) e com a Corsan (Companhia Riograndense de Saneamento), no Rio Grande do Sul. Com a Carris (Companhia Carris Porto-Alegrense) e o DEP (Departamento de Esgotos Pluviais), e poderia ter sido privatizado o DMAE (Departamento Municipal de Águas e Esgotos), em Porto Alegre. 

Foi tentado com a Petrobras, com os Correios, com o Banco do Brasil, com a Caixa Econômica Federal, porém – felizmente! – não foi levado a cabo porque o Lula venceu a eleição de 2022. Conclusão: o capitalismo visa o lucro, não obedece à ética, nem se pauta pelas necessidades do povo.

Muitos dos leitores não eram nascidos durante o tempo em que vivemos a inflação, quando o valor pago por um produto no supermercado chegou na casa dos milhões. Sim, milhões! À época, final da ditadura civil-militar (de 1964 a 1985), vivemos uma recessão imposta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) que, em troca de renegociação de dívidas do Estado Brasileiro, impunha aos governantes a implementação de arrochos à população brasileira. Desemprego em alta, salário de fome, milhões de brasileiros abaixo da linha da miséria. Obviamente eram governantes do espectro político da direita. 

Volta e meia o capitalismo vive suas crises, crises que, aliás, ele mesmo gera. O neoliberalismo é uma tentativa de sobrevida do sistema capitalista. No Brasil, vem se manifestando a ideia – por meio de retóricas como “o mercado se autorregula”, de que o Estado gasta demais com políticas sociais – de que se deve vender (privatizar) empresas estatais, enfim, da defesa da ideia de um Estado mínimo. Interessante salientar que esses setores empresariais defensores do Estado mínimo, quando ocorre uma crise, são os primeiros a gritar pelo socorro do Estado, como os bancos privados, agronegócio e grandes empresas, ao mesmo tempo em que se opõem que o Estado proteja a população que se encontra em maior vulnerabilidade diante do capital.

Neste exato momento, estamos assistindo ao revigoramento dessa retórica de que o Estado atrapalha. Talvez muitos dos leitores estejam até se convencendo e repetindo inadvertidamente.

É nos períodos de crises que se costuma “passar a boiada”, infelizmente. 

Diz a Psicologia que para superar o trauma precisamos viver o luto, e após o luto, sobrevém a raiva. A energia da raiva, nesse momento, é o que nos impulsiona para agir, nos impedindo de cairmos na apatia e na depressão. A tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul nos impacta tão dolorosamente que somos passíveis de cair na desesperança. Daí que discursos sobre realocar populações de bairros e de cidades inteiras podem parecer tentadores. Mas, atenção: não são! Significa ser indiferente às vidas, à história, à cultura e às memórias, com o pertencimento de comunidades inteiras construído através do tempo naqueles locais, transferindo-as como se não possuíssem autonomia, igualdade e dignidade. E para quê? Para destinar esses mesmos locais a empreiteiras que lucrarão com a especulação imobiliária, sonhando reproduzir torres como as de Dubai exclusivas para os VIPs.

Há políticos que deveriam estar trabalhando na iniciativa privada, pois, quando governantes, usam a estrutura do Estado, trabalhando para destruí-lo, apenas para privilegiar os interesses mercadológicos em detrimento das necessidades do povo. 

As repúblicas e os Estados Nacionais surgiram e foram organizados para frear o poder virulento de monarquias absolutistas. Neste momento, precisamos do Estado para frear a sanha do mercado que é, como se diz, um capitalismo selvagem. Ao contrário do capitalismo neoliberal, o Estado deve obedecer à ética.

Assim, em solidariedade às gerações passadas, as presentes e às futuras, em vez nos prostarmos impotentes e acatarmos as imposições das vontades de lucros e, sabendo que muitas das perdas e danos foram ocasionados por negligência, aqueles que contribuíram para a tragédia devem SIM ser responsabilizados.

* Miriam Beatriz Barbosa Corrêa é artista visual, ativista cultural e vice presidenta do PT de Balneário Pinhal, Rio Grande do Sul. 

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko