Políticas públicas e participação popular são e serão decisivas no processo. Chega de Estado mínimo.
Domingo, 19 de maio de dois mil e vinte quatro, depois do meio-dia. Tradicional Bolãozinho de homens e mulheres no Ginásio Luizão de Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul. Em meio aos goles de cerveja, fala-se quase só em alemão, entre os de mais idade. O assunto, claro, são as enchentes, a tragédia e o caos reinantes. Não diretamente em Santa Emília, embora em cinco dias tenha chovido mais de 600 mm. Mas o município de Venâncio Aires, banhado pelo rio Taquari, continua sem ligação direta com Porto Alegre, mais de três semanas depois do início das chuvas. Assim, estou “ilhado” na terrinha desde o dia 1º de Maio, sem poder voltar a Porto Alegre, que continua, em boa parte, debaixo d´água.
No Luizão, os mais antigos falaram de uma histórica enchente em 1974, há exatos 50 anos, na região. Eu já morava em Porto Alegre. Houve, daquela vez, casas inteiras sob água e derrubadas, estradas interrompidas, num verdadeiro furacão.
Estamos em 2024. O Rio Grande do Sul e a quase totalidade dos seus 407 municípios nunca mais serão os mesmos, em especial a capital, Porto Alegre. Nada será como antes, inclusive no Brasil e até no mundo. Alguns números revelam o tamanho da tragédia. Mais de 160 mortes, e dezenas de desaparecidos. São 615 mil pessoas fora de casa, há 200 mil carros perdidos, mais de 2,3 milhões de pessoas atingidas, 82.666 resgatadas, 12.205 animais salvos, entre outros números quase inacreditáveis.
Santa Emília, em Venâncio Aires, – que fica entre os vales do Taquari e do Rio Pardo, vales muito atingidos em agosto-setembro de 2023, e mais ainda agora, em maio de 2024 – não teve problemas com enchentes e destruição de casas. Mas os mais de 600 mm de água que caíram em cinco dias destruíram a maior parte das plantações dos agricultores familiares da região, inclusive da minha família, que vive basicamente de verduras, frutas, legumes, vendidos na Feira do Produtor na cidade. Sobrou quase nada. As perdas de todos foi o principal tema da conversa no Bolãozinho, além das vidas perdidas e dos estragos na região dos Vales.
A água felizmente está baixando. Mas as causas de tudo que aconteceu precisam ser apuradas, assim como as responsabilidades de quem não fez o que devia ter feito, especialmente na capital, Porto Alegre, onde cada dia fica mais evidente o descaso dos últimos governos, com o sucateamento dos órgãos públicos.
O governador Eduardo Leite chegou a propor a derrubada do muro da Avenida Mauá, que era a única proteção das águas do rio Guaíba, com a proposta de um projeto para beneficiar o setor imobiliário, ou privatizando a Corsan, companhia estadual de Água e Saneamento. Se isso já tivesse acontecido, os estragos seriam infinitamente maiores.
Os últimos prefeitos da capital, especialmente o atual, Sebastião Melo, descuidaram da manutenção dos equipamentos, sucatearam os órgãos públicos, inclusive extinguindo alguns essenciais, como o DEP, Departamento de Esgotos Pluviais, e propondo a privatização do DMAE, Departamento Municipal de Água e Esgoto, que, aliás, tem R$ 400 milhões em caixa, sem uso.
Agora é hora de reconstrução. Cuidar ao mesmo tempo da cabeça, do lado psicológico e da saúde mental de quem perdeu tudo, ou está abrigado por semanas em ginásios, escolas, igrejas e outros lugares. E fazer a reconstrução material de quem não tem mais moradia, perdeu os poucos bens, viu destruída uma vida inteira de trabalho e de sustento da família.
Há muito, muito por fazer. E levará um bom tempo até se chegar à normalidade. A solidariedade e o cuidado com a Casa Comum são fundamentais neste momento. Políticas públicas e participação popular são e serão decisivas no processo. Chega de Estado mínimo, chega de privatizações, chega de sucateamento dos bens públicos.
As eleições municipais estão se aproximando. Nenhum candidato ou candidata a prefeita e prefeito, especialmente os do campo democrático-popular, pode deixar de incluir como prioridade nos programas de governo os temas ambientais e o cuidado com a Casa Comum. As candidatas e os candidatos a vereador precisam ter no seu horizonte e como preocupação o tema das mudanças climáticas. Só assim vai-se criar um ambiente em que o futuro estará, não só sendo preparado, mas presente de forma coletiva e solidariamente na cabeça das pessoas e nas prioridades de municípios e comunidades.
São novos tempos, tempos novos, jamais pensados, jamais vividos. Com desafios não apenas para quem sofreu diretamente as consequências, mas para todas e todos de boa vontade, todas e todos que acreditam que um outro mundo é possível, além de urgente e necessário.
Mãos à obra.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko