Rio Grande do Sul

Coluna

'A lição sabemos de cor, só nos resta aprender'

Imagem de perfil do Colunistaesd
Voltou a chover forte em Porto Alegre nessa quinta-feira (23) - Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Dispor da exuberância do Guaíba e seus afluentes impõe responsabilidades

Nestes tempos em que somos induzidos a desconsiderar lições fundamentais que até ontem éramos induzidos a repetir, sem entender, vale lembrar: o caminho das águas é o caminho da vida, por ele circulam forças que tanto podem nos afastar como nos atrair para a morte.

O tratamento dado a esses caminhos define a configuração e o destino das sociedades estabelecidas em territórios tão privilegiados quanto ameaçados por sua abundância. É o caso do Rio Grande do Sul. Por isso, dispor da exuberância do Guaíba e seus afluentes impõe responsabilidades que, em não sendo assumidas, tendem a transformar as maravilhas que esta condição garante nos horrores que estamos experimentando. 

Em realidade, neste mês de maio, assim como em setembro passado, não vivenciamos “eventos climáticos inesperados”. Ao contrário, estamos diante de pontos atualizados em uma trajetória que responde ao despropósito de ações humanas conduzidas por ignorância, despreparo ou desrespeito intencional, com relações óbvias que ligam aqueles efeitos a suas causas. 

Em termos práticos, estamos à mercê de um metabolismo que depende das nossas ações. As consequências se repetirão na forma de impactos da abundância (períodos de El Niño como o atual) ou escassez (períodos de La Niña, como o ocorrido em 2020-2023 e o esperado para 2025-2027) da água que movimenta nossa vida, nossa economia, nossa sociedade.

Isto significa que devemos entender as conexões entre o caminho das águas e o comportamento humano, observando e tratando de influir em como reagirá a coletividade gaúcha em relação às oportunidades e ameaças que isso desenha em nosso espaço de vida. Uma vez que o sofrimento de muitos pode alimentar o enriquecimento e o embrutecimento de poucos, as tragédias devem ser vistas como fenômenos que, em vez de nivelar sentimentos de solidariedade, podem servir para ampliar injustiças e desigualdades.

Por isso, devemos ficar atentos ao fato de que, em paralelo aos esforços do governo federal para recuperação das condições de vida no Rio Grande do Sul, estão sendo ativados mecanismos de rapina predatória, tentativas de açambarcamento/apropriação dos recursos destinados à recuperação de tudo que foi destruído, e oportunizadores da aquisição, a preço de banana, de propriedades e bens daquelas famílias induzidas a se desfazer do que possuíam, desesperançadas pelos dramas deste momento histórico. 

E é nisso que se encerra uma das piores dimensões desta tragédia: a ampliação das injustiças e da miséria, fortalecendo o que há de pior entre nós.

Penso que esta possibilidade mereça ser olhada considerando o perfil de nossos gestores públicos, com destaque para aqueles que vêm atuando, reiteradamente, de maneira desrespeitosa em coisas tão básicas, como os caminhos da água, a lei da gravidade, os investimentos realizados por gestões anteriores e as responsabilidades inerentes às suas funções.

E como há uma linha comum unindo a sucessão de governadores, prefeitos, deputados, vereadores e formadores de opinião, que desmontaram a capacidade de ação coletiva do estado do Rio Grande Sul, eles devem ser examinados como agrupamentos políticos orientados por um projeto que nos ameaça. 

Somos uma população majoritariamente urbana e ainda assim aceitamos a tutela de interesses comprometidos com um modelo de agronegócio ecocida, ambientalmente predatório e patrocinador de “bancadas ruralistas” ignorantes e negacionistas. Por que? E como isso se relaciona com o caminho das águas e suas atuais consequências sobre as populações urbanas flageladas? 

Aparentemente isso decorre da propaganda, do marketing e da “criação”/cooptação de homens públicos beneficiados pela desinformação da sociedade, dispostos a servir aqueles interesses. 

Afinal, não poucas evidências sugerem que as interpretações equivocadas a respeito de causas e responsabilidades atinentes à destruição em marcha decorrem de tolerâncias induzidas pela veiculação massiva, programada, de argumentações inconsistentes sobre a importância deste modelo de agronegócio conduzido em favor de poucos, sobre a vida de todos. 

Afinal, ali reside boa parte de “nossa” contribuição ao aquecimento global, que, por sua vez, responde pelo maior volume da água na forma líquida e gasosa, que determina a atual dimensão das águas de março. Mas isso é apenas parte do problema. 

Afinal, o agronegócio também é responsável pela substituição de uma cobertura biodiversa, cuja capacidade óbvia de retenção da água das chuvas, desaparece sob a onipresença de monoculturas homogêneas. As máquinas pulverizam a camada superficial, facilitando o escorrimento que irá assorear rios e lagos, ao mesmo tempo em que compactam o solo sub-superficial, impedindo a infiltração da água. Isso amplia a velocidade das enxurradas, determinando seu poder destrutivo. Ou não é assim?

Ademais, o uso de agrotóxicos (cerca de 100 milhões de litros anos no Rio Grande do Sul) destrói a microvida do solo. Ao eliminar esses organismos responsáveis pela fertilidade, acaba-se exigindo adubações químicas pesadas, que, ampliando o custo de produção, se somam a outros motivos determinantes do crescimento em dimensão e impacto das lavouras e da concentração fundiária. Como consequência, aqueles homens públicos cooptados são chamados a operar pela destruição de legislações ambientais protetivas, pela drenagem de banhados, pelo desmatamento e tudo aquilo que, em não existindo, contribui para ampliar o poder destrutivo das águas em relação ao que estiver em seu caminho.

Isso se repete com o mesmo perfil de gestores, quando estes dominam a administração pública de áreas urbanas. Vejam que a extinção do DEP (Departamento de Esgotos Pluviais) pelo ex-prefeito Marchesan Jr. se somou às práticas de seu ex-vice e atual prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo. Sendo que este, foi além. 

Não se limitando à irresponsabilidade com que permitiu o desfazimento da capacidade instalada de bombas, comportas, tubulações e parafusos que teriam evitado a inundação da cidade, no primeiro dia de sol, estimulou o povo a limpar as casas destruídas. Por orientação, os entulhos deveriam ser colocados nas calçadas, de onde caminhões do Demae (Departamento Municipal de Água e Esgoto), sabidamente sucateado, recolheria. Pois bem, a volta da chuva, antecipadamente anunciada, carregou aquilo tudo para as partes baixas, entupindo bocas de lobo, estourando canalizações e ampliando a pressão hidráulica nos caminhos restantes. Geisers surgiram nas ruas da cidade, mostrando locais onde a força da água arrancava tampas, estourava canos e abria crateras que só serão plenamente conhecidas quando o tempo permitir. Até lá, o desespero de quem se aventure a caminhar em áreas inundadas, para tentar salvar quem ou o que quer que seja, trará novas ameaças. Literalmente, agora é possível morrer ao atravessar ruas que ocultam buracos que sintetizam a história destes tempos.

A culpa é nossa, e será maior se permitirmos a manutenção dos mecanismos que colocaram aquele perfil de indivíduos na gestão de instituições públicas que precisam ser fortes por serem fundamentais para a preservação da civilidade e da democracia. Será maior se permitirmos que este modelo de desenvolvimento pernicioso para os ecossistemas rurais e urbanos se recupere e continue dominando corações e mentes de nosso povo.

Para isso precisamos fortalecer mecanismos de comunicação e estimular o protagonismo social. Em outras palavras, precisamos valorizar quem faz o que deve, penalizar quem age no sentido oposto e desmascarar quem pretende ficar na moita. Para recuperar a democracia participativa, vale lembrar Paulo Leminski: "Só há um segredo: está tudo na cara". 

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko