Rio Grande do Sul

Ensaio

A cidade de emoções submersas

Assim como as ruas, meus olhos, uma hora, também vão secar

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Do alto da Rua Duque de Caxias, vista para o centro histórico de Porto Alegre - ana c

Minha mãe conta que, quando eu era criança, certa vez, precisei ser internada num hospital da capital para tratar de um quadro respiratório. Eu tinha pouco mais de um ano de idade.

Com a segurança de quem disse suas primeiras palavras aos oito meses, eu conversava abertamente com as enfermeiras e tinha um certo orgulho em pronunciar meu recém-descoberto diagnóstico: pneumonia.

Filha de professora, eu lembro até do esforço cognitivo que fiz nas tentativas de pronunciar a palavra corretamente. Gostava de parecer inteligente. E me comunicar sempre me foi importante.

Minha mãe conta, essa parte eu não me lembro, mas ela conta, que eu também pedia pra ir na janela do hospital e dizia: "Mãe, deixa eu ver o Porto Alegre".


Vista do centro histórico da capital gaúcha, do alto da Rua Duque de Caxias: "Mãe, deixa eu ver o Porto Alegre" / ana c

Não sei o que passava na minha cabeça, nem quem ou o quê eu imaginava ser essa "entidade O Porto Alegre", que eu queria ver.

Fato é que eu me debruçava na janela e olhava as luzes piscantes desse monstro adormecido, que o futuro ainda ia me ensinar a amar. 

Muitos anos depois, eu mudei para Porto Alegre. Na primeira oportunidade, fui morar bem na barriga do monstro.

No coração do Bom Fim, me assentei para estudar, como milhares de jovens da região metropolitana, e, assim como tantos, nunca mais consegui ir embora. 

Nessa cidade, me construí como pessoa. Aqui fiz faculdade, amigos, festas. Mudei de rumo acadêmico e profissional, conheci minha primeira namorada (e todas as seguintes).

Morei só, morei junto, morei em coletivos. Parti e voltei uma infinidade de vezes.

Sobrevivi à pandemia.

Fui embora para sempre e voltei em um ano, pois, como eu sempre repeti: "Porto Alegre é uma cachaça".

Ao longo dos anos fui construindo uma relação muito íntima com essa cidade.

Aqui aprendi a fotografar suas cenas, a trabalhar no que me dá sentido, a ocupar suas ruas com meu corpo e minha alegria. 

O prazer de estar aqui era parte constituinte de mim e me mantinha sedenta de vida, da urbe.

É maio de 2024 - e faz o mesmo dia há 23 dias.


Centro histórico de Porto Alegre passados mais de 20 dias das cheias / ana c

Ver a cidade, hoje, me dói. Física e literalmente, me dói.

Sinto que a cidade também (se) desmancha (nos) meus músculos. 

se fragmenta nos meus ossos. 

e alaga (n)os meus olhos.

São muitas as camadas de dor. Muitos lutos sobrepostos, muitas faltas a preencher. 

E ainda, se ao menos tivéssemos a possibilidade de arrastar as chinelas num forró, numa roda de samba quente, daquelas que aquecem o coração e as coxas, seria mais fácil suportar.

Mas essa possibilidade não há… parece que não tem espaço pra alegria nesses últimos dias.

A cidade destruída me dói no corpo.

A identidade que construí pra mim nos últimos anos incorporou muito de Porto Alegre.

Seus sons, seus cheiros, suas ruas, seus caminhos, são também os meus sons, meus cheiros, meus caminhos.

Nas ruas que percorri reconhecendo a mim mesma. 

Nas coisas que fiz nesta e por esta capital e por mim, na esperança de nos ver bem e felizes. 

Minha poesia nascia nas esquinas cheias de gente, nos barulhos urbanos, nas risadas juvenis no entorno da minha casa. No olhar afetuoso do outro, que conhecido ou não, também transita pelas ruas, tão minhas, tão nossas.

Hoje tudo aqui é ausência. tudo aqui é dor. tudo aqui é morte. 

Os prédios, as ruas e os olhares estão vazios.

Noite após noite escuto o ensurdecedor silêncio do Centro Histórico, cortado apenas pelo barulho ritmado dos helicópteros e som agonizante do elevador do prédio onde me hospedo - grata gentileza das amizades.

Em um solene ato fúnebre, morre, assim, a cidade que conhecemos.

Sepultadas sob a lama pútrida, nossas lembranças mais felizes.

O esgoto, que antes fluía silencioso e metafórico no interior das repartições políticas, extravasou para um plano físico, material. E se embrenhou pelas nossas casa, nossas vidas, nossa gente.

A lama da enchente castiga nossa história.

Por aqui, me agarro às lembranças bonitas como a um bote salva-vidas.

Por ora, elas são tudo o que tenho. 

Eventualmente o sol retorna e aquece o que, de longe, parece uma esperança:

assim como as ruas,

meus olhos, uma hora, 

também vão secar. 

* ana c, de carolina, é comunicadora por vocação, produtora cultural por capricho e multiartista por essência. mulher lésbica, feminista e latinoamericana, escreve para dar sentido ao que sente. 

até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis. provérbio africano.

 

Edição: Katia Marko