A enchente de 2024 é, de longe, a pior da história da presença civilizada no Rio Grande do Sul. Entre Abril e Maio choveram cerca de mil milímetros de chuva. Mais da metade do esperado para um ano inteiro. É bem provável que ela vai passar a ser o parâmetro tomando o lugar da grande enchente de 1941 no imaginário popular.
As águas invadiram áreas baixas de diversos locais do Vale do Sinos e outras regiões do Estado. Na região Metropolitana se romperam diques e em Porto Alegre o sucateado sistema de proteção das cheias falhou completamente e grande parte da Capital ficou debaixo de água.
Um detalhe tem que ser lembrado. Os diques do Vale do Sinos foram locados bem perto do rio e deixaram uma parte do banhado do lado "seco" que acabou atraindo o povo sem outra opção de moradia para lá. Uma verdadeira armadilha. Isso para deixar áreas realmente altas para ocupação por gente em melhor situação econômica.
Curiosamente o que também ocorreu em 1824 quando o Império queria fazer a colônia onde hoje é o parque da Floresta Imperial em Novo Hamburgo, mas o dono da terra junto ao passo de São Leopoldo (terras doadas pela Coroa, por sinal) convenceu o representante local da colonização a comprar sua terra e assentar povo na beira dos banhados do Sinos.
Essa área roubada ao banhado poderia estar ajudando a segurar o nível da enchente mais tempo e não seria uma área de risco humano se tivesse ficado como reserva natural a exemplo do Parque da Imperatriz em São Leopoldo ou o banhado da estrada da integração em Novo Hamburgo. Tivessem respeitado os banhados e talvez o centro de São Leopoldo hoje ficasse em Novo Hamburgo.
O mesmo caso ocorre em Canoas, Esteio e Sapucaia onde as partes mais atingidas são os assentamentos humanos localizados em antigos banhados e várzeas.
São detalhes que afetam muitas vidas e mostram como é importante que decisões importantes sejam tomadas com muito debate popular e com apoio da ciência.
Os diques foram erguidos nos anos da ditadura militar e São Leopoldo foi iniciado no Império. Democracia era algo que não existia nesses dois momentos históricos.
O Comitesinos propôs um mapeamento das áreas de risco de todo o vale e tentou orientar os municípios, pelo menos a não deixar ocupar com mais urbanização essas regiões. Quem mais resistiu foi a gestão pública de Canoas e algumas das suas entidades empresariais. Curiosamente foi a cidade com mais gente fora de casa e que defendia que a estrada do parque (BR 448) fosse construída como um grande dique para poder se expandir no sentido do rio. Se isso tivesse ocorrido certamente os danos da enchente seriam maiores ainda.
Hoje pagamos um preço terrível por erros do passado no processo de ocupação do território.
Outra coisa que fica evidente é que um dos problemas do RS é que estão exterminando os órgãos técnicos científicos onde trabalha a inteligência do Estado que é capaz de gerar as soluções. É triste, mas é verdade. A cultura de serviço público vai se perdendo e chega num ponto que ficamos sem rumo. No meu setor junto à Fepam se aposentaram três das cinco pessoas que tinham quando entrei. Houve uma reposição em 10 anos. Faz quatro anos que esperamos substituição dos outros dois. Em breve os mais velhos se aposentam não vai ter ninguém para ensinar, transmitir a experiência que o setor acumulou para quem chegar.
A Metroplan, que trabalha com o tema da proteção de inundações, perdeu muito pessoal. A Fundação Zoobotânica que estudava a nossa biodiversidade foi extinta.
Nada contra a iniciativa privada trabalhar para o Estado. Muitas vezes é necessária. Mas o serviço público é essencial para conduzir a gestão. É assim em todos os países desenvolvidos. Sem serviço público de qualidade um país fica como os países pobres da África. Um verdadeiro salve se quem puder em meio a um caos de lutas internas entre grupos rivais, como já ocorre em alguns locais de nossos grandes centros.
Outro fato a ser analisado nesse contexto é que o voluntariado tem limite. Ainda que sua contribuição seja um exemplo magnífico da solidariedade humana, o fato é uns dias depois de a tragédia deixar de ser pauta da grande mídia a maioria dos voluntários volta para casa até porque não são profissionais e têm que cuidar de suas vidas. Quem vai seguir é o serviço público. É assim sempre. Só que não se falam disso em muitos veículos de imprensa. Especialmente os aliados com a ideia do Estado mínimo que ajudou muito a levar o RS a esse estado de calamidade.
O país hoje está cheio de jovens bem preparados. Muitos que gostariam de trabalhar no serviço público. Em 20 anos como servidor público trabalhei com pelo menos 40 estagiários. Muitos nos procuraram porque queriam se tornar servidores públicos. Alguns até passaram em concurso e trabalham no setor público. O jovem que entrou no meu setor foi meu estagiário. Mas têm muitos que não recebem oportunidade. Alguns até vão embora do Brasil. Desperdiçando a sua qualificação, pois lá vão ser trabalhadores de serviços para gente com pouca formação.
Também irrita um pouco a política de algumas empresas privadas de previsões meteorológicas especializadas em fazer manchetes catastrofistas para atrair leitores para suas páginas na internet recheadas de anunciantes. Quando muitas das suas previsões trágicas não ocorrem ficam quietos como as videntes que todo novo ano as revistas de fofocas entrevistam para prever o que virá. Cientificamente são capacitadas, mas não nos parece correto que lucrem atemorizando as pessoas e faturando em cima da espetacularização da desgraça (como, aliás, também o fazem muitos veículos de mídias para aumentar a audiência de seus programas). Os serviços de alerta de risco devem ser ponderados e objetivos em suas manifestações. Dar a informação precisa é fundamental para que os alertas sejam levados a sério pela população. Abusar do sensacionalismo só atrasa a formação de uma cultura de prevenção.
Também vemos nessas horas que muitos técnicos que seguem com dificuldades para aceitar que precisamos de tecnologias que cooperem com a natureza para lidar com os desafios que as mudanças climáticas nos impõem. Ainda há muitos que insistem que devemos buscar soluções tecnológicas que no fundo só ampliam os danos ao planeta. Como os caras que defendem destruir a vegetação das áreas de proteção permanente para fazer açude para combater as secas ao invés de propor recuperar essa vegetação para ela retomar seu papel no equilíbrio da dinâmica das águas das nossas bacias hidrográficas. Ou gente que propõe abater as florestas das encostas para que o peso das árvores não derrube o solo dos morros.
Uma ideia muito debatida é fazer um canal de saída para o mar na Laguna dos Patos ao norte de Rio Grande para baixar mais rápido as águas represadas em Porto Alegre e arredores. Alegam que ao fazer a BR 101 no litoral médio se construiu um grande dique que bloqueou saídas da Laguna para o mar que existiam antes, retendo mais água na Laguna. Apontam como exemplo disso a barra falsa do Bojurú onde essa solução poderia ser implantada.
A Laguna dos Patos se formou no último milhão de anos. Obra de um ciclo de recuos e avanços do mar ao longo de pelo menos quatro transgressões marinhas. O leito da BR 101 está na parte mais alta do litoral médio num divisor de água. Não constitui barreira construída pela humanidade do sistema de drenagem natural para o mar. Por conta dessa faixa de terra é que a Laguna existe e não é parte do oceano como antes da sua formação. As barras de saídas de água para o mar no litoral médio são do sistema de lagoas do conjunto da Lagoa do Peixe e outras ao longo da costa. A barra falsa do Bojurú pode ser uma paleo saída pro mar. Mas hoje ela corre para o oeste assim como os cursos d'água da Lagoa do Casamento e do rio Gravataí que em eras geológicas mais antigas corriam para o mar. Um canal assim funcionaria nos dois sentidos conforme a maré ou os ventos. E poderia salinizar toda a Laguna trazendo problemas para a irrigação de arroz e potabilização de água para as cidades do entorno e afetando em muito a biodiversidade do local que é fonte de renda para muitas famílias.
Essa ideia faz pensar. Caso tenhamos um buraco no telhado, onde entra a chuva, o que é melhor fazer? Fazer o conserto do telhado ou aumentar o tamanho do ralo para inundação passar mais rápido? Nesse caso me parece mais inteligente consertar o telhado. No caso do RS o conserto significa a recuperação das matas ciliares nos rios gaúchos, melhorar as práticas de agricultura para controlar a erosão e mesmo construir pequenos açudes ao nível de produtor que poderão ajudar na próxima seca que a maioria esquece no momento da enchente. Isso também pode ajudar a conter a erosão que assoreia os rios.
Falando em assoreamento também se ouve que alguns velejadores defendem que se retire toda a areia do fundo do Guaíba para aumentar o canal de drenagem do Lago. E que ela seja usada para usos diversos, como material de construção. Fato que só não ocorre por conta de oposição dos Ecologistas (quase os culpando pela tragédia, por sinal).
A areia que está no fundo do Guaíba, segundo estudos feitos pela Ufrgs, infelizmente está contaminada por metais pesados, decorrentes da poluição das indústrias metal-mecânica e dos curtumes gaúchos. Por isso é melhor não usar o resíduo da dragagem dos canais em usos que não sejam construções de ilhas artificiais como a do clube Jangadeiros. Também por essa razão não se recomenda minerar areia no leito do Guaíba. Mexer nesses metais que hoje estão quimicamente estabilizados no fundo poderia trazer sérios prejuízos à qualidade da água e até o risco de inviabilizar seu uso para potabilizar para consumo humano.
Esses exemplos mostram que muita gente não entendeu que o paradigma tecnológico que levou a sociedade a situação atual de desequilíbrio ambiental não tem capacidade de trazer soluções para a crise que vivemos. Precisamos pensar como a natureza e copiar ou ajudar a implementação das soluções que ela usa para sairmos desta e ter esperança de um futuro para a humanidade no planeta.
Por fim outra coisa que chama a atenção nessa enchente é que muita gente tende a definir o que está sendo visto no RS como cenas de guerra. Vamos combinar que assistimos cenas de uma tragédia decorrente das mudanças climáticas combinadas com décadas de devastação ambiental e negacionismo político neoliberal dominando a máquina pública. Não têm ninguém bombardeando os atingidos pela enchente. Cena de guerra é em Gaza ou na Ucrânia e em outros conflitos mundo afora. Pergunta em qualquer desses lugares se eles não trocariam de lugar com os gaúchos agora. Falar em cena de guerra é fortalecer a cultura da violência. É fazer propaganda da militarização das soluções dos problemas do mundo. A mesma lógica de guerra que constrói muros entre nações ricas e pobres e mata os inocentes, em diversos lugares do mundo.
Falar em cenas de guerra também é descaracterizar o debate das mudanças climáticas. O que não contribui em nada para a construção de políticas de superação das causas dos aumentos da temperatura no planeta. Temos que falar em paz e solidariedade nesse momento. Em reduzir emissões de gases estufa. Em políticas públicas de adaptação. Não precisamos reproduzir, sem pensar, a linguagem da cultura de competição que está destruindo as possibilidades de vida humana e outros seres no planeta.
* Arno Kayser, Agrônomo, Ecologista e Escritor.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko