Rio Grande do Sul

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O que os povos de matriz africana têm a dizer sobre a tragédia no RS?

Iyalorixás ressaltam a solidariedade das casas tradicionais nas enchentes e cobram serem ouvidas pelo poder público

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Live foi transmitida nos canais no Youtube do Brasil de Fato RS e da Rede Soberania - Reprodução

O povo de terreiro foi duramente atingido pelas enchentes no Rio Grande do Sul, e como sempre, segue unido em solidariedade. Muitos de seus locais sagrados foram inundados, milhares de famílias perderam suas casas e muitos contribuem em ações voluntárias. Em meio a debates sobre ações emergenciais e reconstrução, fica a dúvida: essa população está sendo ouvida pelo poder público?

Esses são temas abordados na live “O que os povos de matriz africana têm a dizer sobre a tragédia no RS?”, veiculada no Brasil de Fato RS e na Rede Soberania nesta quarta-feira (22).

A iniciativa faz parte do programa “Terra, Território e Territorialidade”, organizado pela coordenação de mulheres do Fórum de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana do Rio Grande do Sul (Fonsanpotma/RS), com a condução pela sabedoria e conhecimento das Iyalorixás “Sagradas Mulheres Águas, a Tradição que Alimenta e não violenta”.

A live foi apresentada pela editora-chefe do Brasil de Fato RS, Katia Marko, e mediada por Iyá Vera Soares d'Oyá, da Nação Oyó Povo Yorubá, que integra a coordenação nacional do Fonsanpotma.

Participaram falando de Porto Alegre Iya Itanajara de Oxum, coordenadora nacional de Finanças do Fonsanpotma; Richard Evandro Guterres Alves, presidente do Clube Social Negro Associação Satélite Prontidão; e Iyalorixa Nara de Oxalá Orumilaia, Nação jeje&jexa, coordenadora de Ancestralidade do Fonsanpotma Porto Alegre. De Pelotas, participou Regina Barros Goulart, também conhecida como Kota Mulanji, médica, fundadora do Fonsanpotma e conselheira nacional do Consea.

Confira alguns trechos da live

Iya Vera iniciou destacando que o estado vive há quase 30 dias “um momento de horror” e que a tragédia é anunciada para o povo de matriz africana. “Hoje mais uma vez estamos pagando esse preço, mais uma vez perdendo a nossa identidade, mais uma vez correndo para buscar políticas para o nosso povo, que se já tivesse coordenado por política pública e de reparação, talvez não fosse tão sério quanto está.”

Richard fez um relato da história da Associação Satélite Prontidão e mostrou as ações de solidariedade que estão centralizadas no local em prol dos atingidos pela enchente. Disse estar orgulhoso em receber não só o Fonsanpotma, mas todas as entidades que formam a "rede das redes".

Iya Itanajara ressaltou a tristeza de haver muitas pessoas fora de suas casas e lembrou daqueles que não tiveram a chance de retirar suas coisas. “Principalmente nós da tradição de matriz africana, que são as nossas feituras, os nossos orixás, as imagens dos nossos caboclos, tudo aquilo que a gente cultua e, com o passar do tempo, a gente aprendeu a cuidar, zelar e amar como se fôssemos nós mesmos. A gente realmente vive nesse momento muita ansiedade, muito medo, porque não sabemos o que fazer diante desse momento tão desesperador.”

Ela ressaltou que muitas pessoas dos povos tradicionais hoje encontram-se em abrigos oferecidos pela gestão pública, onde “não pode sequer escolher o lugar”. É quando, para ela, se fazem importantes as comunidades organizadas e unidas. Elogiou o trabalho do Satélite Prontidão, que está com um grupo de voluntários recebendo e distribuindo doações que chegam de organizações de todo o país.

Para Itanajara, o poder público também é importante, mas ela diz haver uma dificuldade de comunicação. “Foi um momento que ninguém se preparou, mas a gente ainda não teve esse momento de sentar com os nossos gestores para entender o que eles estão fazendo para nos atender, para nos dizer o que vai ser feito conosco, o que vai ser feito com os nossos terreiros, o que vai ser feito com as nossas obrigações, o que vai ser feito com o povo tradicional de matriz africana, com as comunidades de terreiro que nesse momento estão passando por todo esse processo sem uma direção.”

Iyalorixa Nara prosseguiu com a crítica. Disse que a falta de reconhecimento do povo negro “é um pouco de medo porque acabaram-se as amarras, acabaram-se a os ferros e os negros começam a agir há muito tempo”. Pontuou que a história do povo negro, principalmente no Rio Grande do Sul, onde é invisibilizado, é de resistência. “Vamos continuar de pé e vamos fazer como sempre fizemos, a matriz africana sempre de pé, sempre alimentando, sempre afagando, sempre amando o seu próximo. Seja ele quem for nossas portas sempre estarão abertas”, finalizou.

Iya Vera complementou que o povo negro sempre foi solidário e sempre cuidou um do outro. “Nosso nome chama-se cuidado. Nossas cozinhas sempre foram solidárias, hoje se nós fôssemos pensar em políticas afirmativas, em políticas públicas, basta olhar dentro das nossas casas, para as ações que estão sendo feitas. Tudo que hoje eles colocam como novo e querem nos ensinar, nosso tempo já fazia, a solidariedade é a palavra das casas tradicionais, o colo na hora do choro sempre foi das nossas casas tradicionais.”

Para ela, o poder público tem que olhar para as reivindicações. “Tem tanto recurso vindo do governo federal, através dos nossos conselhos nós temos que estar sentados nas mesas para decidir o que vamos fazer para o nosso povo, aonde o nosso povo vai morar, aonde que vai morar o orixá”.

Kota Mulanji destacou também que a crise é socioclimática, pois a responsabilidade é do ser humano. Ela disse que gosta do termo porque “não é a água só, a água responde e busca o seu lugar”, mas não se pode esquecer “que foi o ser humano que primeiro aterrou e tentou calar essas águas, as grandes plantações de arroz, as grandes plantações de soja, a mineração que fez o desvio dessas águas e que hoje reclama que ela busca o seu lugar.”

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Edição: Marcelo Ferreira