Meus colegas da Fundação de Economia e Estatística - FEE (ex-governador Sartori é responsável pela sua extinção), Tanya Barcellos e Enéas de Souza, me motivaram a avançar no primeiro texto Grande Desafio. Vamos para o segundo.
Tanya apontou para necessidade de entendimento das circunstâncias específicas que levaram a essa catástrofe de maio de 2024. Enéas, foi quando realizei a leitura do seu texto, “A Cidade e a Cultura”, no livro “A Cidade e suas Anamorfoses”, que aborda a cultura no contexto do capitalismo financeiro. Transpus suas observações para as questões do meio ambiente nos atuais governos do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre.
Como introdução do assunto, é necessário realizar uma breve análise na perspectiva das políticas públicas ambientais. É inegável a constatação de que houve um desmonte dos órgãos administrativos. Na Capital, que teve a primeira secretaria municipal de meio ambiente no Brasil, a atual gestão transformou-a em SMAMUS, Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade e, no site da Prefeitura, encontramos a seguinte designação: "responsável por promover equilíbrio entre o uso racional dos recursos ambientais e a geração de renda, visando à qualidade de todas as formas de vida".
Já a SEMA, Secretaria Estadual do Meio Ambiente, atualmente foi reunida à de obras, referenciada como Secretária de Meio Ambiente e Infraestrutura. As mudanças não se restringem somente à troca de nomes das entidades, mas também a uma perda significativa de pessoal, serviços e estudos que eram desenvolvidos.
As ações de privatização atacaram os serviços públicos de luz, água e assistência à saúde. A Carris, em Porto Alegre, uma das melhores empresas de transporte público do Brasil, foi vendida por valores irrisórios. Nossos parques são alvos de concessões, sofrendo descaracterização e perda do ambiente que acolhia árvores, gramíneas e animais silvestres agora com construção de restaurantes, equipamentos como roda-gigante e outros do gênero.
Mais especificamente com relação à legislação, temos o Código Ambiental do RS, referido em várias denúncias, pois em 2019 o governador cortou ou alterou quase 500 pontos, significando um retrocesso de 40 anos. Não houve consulta aos técnicos da Fundação Estadual da Proteção Ambiental - FEPAM, não passou pela Comissão da Saúde e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa. Foi aprovado com 37 votos dos partidos PSL, PTB, PSDB, MDB, PP e DEM e 11 votos contra dos partidos de esquerda e centro esquerda. Aqui temos instituído o estapafúrdio autolicenciamento, incluído no projeto de flexibilização dos critérios do licenciamento ambiental com a justificativa de deixar o processo menos moroso e burocrático.
Malu Gaspar divulgou no jornal O Globo dados referentes à consulta dos programas de governo de Eduardo Leite e Sebastião Melo no Tribunal Superior Eleitoral nas Eleições de 2022 e 2020 e constatou que não foi mencionada emergência climática e prevenção de desastres. Foi divulgado em outras mídias que o exame dos dados do Portal da Transparência de POA mostra que a Prefeitura não investiu nenhuma verba em prevenção de enchentes em 2023.
Muitos vídeos de antigos técnicos do DEP e DMAE, Departamento de Esgotos Pluviais (extinto) e Departamento de Municipal de Água e Esgotos, respectivamente, denunciam que não houve manutenção necessária do sistema de proteção de cheias, gigantesca obra de engenharia, concluída na década de 1970, formada por 68 km de diques que cercam a cidade nas margens do rio Gravataí e do Guaíba, com 19 estações de bombeamento e 14 comportas.
O movimento ambientalista teve sua primeira organização nos anos de 1970, com atuação do ambientalista José Antônio Lutzenberger. Em parceria com Augusto Carneiro, Magda Renner, Giselda Castro, Hilda Zimmerman criaram a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, a Agapan, vigente até hoje com 53 anos. Esse grupo pioneiro nos legou ensinamentos que valem até hoje. O atual movimento ambientalista com vários segmentos, desde a Agapan até o recente Eco Pelo Clima dos nossos jovens, vêm trabalhando incansavelmente na reversão do quadro de destruição do meio ambiente.
Nesse ponto, vou retomar as observações do Enéas que expõe sobre a "transformação na sociedade capitalista, de uma sociedade capitalista industrial para uma sociedade capitalista financeira, as finanças passam a dominar a sociedade contemporânea".
Segundo Enéas de Souza, toda a sociedade é comandada pelo pensamento financeiro. O capital financeiro é altamente especulativo. Tudo para as finanças é ativo financeiro (fazer dinheiro), até mesmo os seres humanos. O Estado passa a ser um ente financeiro, pregando o estado mínimo, privatizando saúde, educação, cultura e serviços básicos como luz, água... resta um núcleo central, o das finanças e o que garanta a segurança da sociedade financeira, a polícia e as forças armadas, e para resolver os conflitos legais, o judiciário.
Eduardo Leite, no início da semana, comprovou o paradigma acima, pois ao invés de chamar estudiosos, cientistas, gestores responsáveis e criadores da estrutura de proteção às inundações, convocou empresários para uma reunião, certamente dentro desse esquema já pensam em fazer dinheiro com a reconstrução das cidades.
As cidades passaram a ser geridas na perspectiva de mercadoria e abandona-se a preocupação com o bem-estar da população, substituída por uma visão financista. Cidade para quem lucra com ela e não para quem tem sua moradia e busca condições de boa qualidade de vida. São ruas asfaltadas sem escoamento da chuva, parques, hospitais, escolas, sistemas de esgotos, iluminação pública, abastecimento de água, transporte privatizados, incluindo a construção de bairros privados, de torres.
No caso de Porto Alegre, é burlada a legislação, alterando a situação do Guaíba, de rio para lago, desconsiderando que a denominação oficial do IBGE mantém o nome rio Guaíba. A finalidade é desrespeitar a determinação das áreas de preservação permanente (APP) que garantem uma medida razoável de margem sem construção nos cursos dos rios, para que as águas nas cheias não invadam.
Na área rural que incorpora florestas, pastagens e atividades agropastoris não é diferente. Ao abandonar as atividades agrícolas como cultura e passar a ser administrada pelo pensamento financeiro temos a poluição dos mananciais, dos solos, do ar, as queimadas, contaminação dos leitos dos rios, o desmatamento, a compactação do solo. Assistimos o esgotamento dos recursos pelas práticas do agronegócio baseada nos monocultivos com uso excessivo de agrotóxicos, não preocupados com a segurança alimentar da população em geral, mas em exportar e ganhar dinheiro.
Contabilizamos também a pecuária extensiva, mineração e garimpo, extração vegetal. Como consequências temos a desertificação, a morte dos solos, erosão, perda da biodiversidade, contaminação da fauna e flora, danos à saúde humana e não humana, alterações no microclima, intensificação das mudanças climáticas ora com inundações, ora com estiagens.
Aqui cabe um esclarecimento, conforme o cientista Carlos Nobre, atualmente as alterações climáticas, designadas por desastres desnaturais, ocorrem em todo o planeta com uma maior frequência e intensidade. Os grandes responsáveis são os combustíveis fósseis pelas emissões de gás de efeito estufa. Assim, podemos entender que após 1941, quando tivemos a grande enchente, esse evento volta a acontecer depois de quase 80 anos, entre setembro de 2023 e maio de 2024, quando sofremos três grandes inundações no Rio Grande do Sul. Importante salientar que foram previstas, mas no contexto de gestões neoliberais, capitaneadas pela hegemonia das finanças, resultou em uma tragédia, porque desmontaram entidades de gestão e estudos na área ambiental, entre elas os Comitês de Bacias Hidrográficas, negligenciaram a manutenção do aparato de proteção às enchentes e estão sendo destruídos nas nossas cidades e campos os recursos naturais com capacidade de harmonia, aquilo que Fritjof Capra chamou de Teia da Vida.
Rualdo Menegat, geólogo, alerta "que não só há um apagão da infraestrutura do estado do RS... Sartori e Leite (ex e atual governadores) desmontaram também a inteligência estratégica do estado: DEPRC, Metroplan, FZB, FEPPS, FEE, SEMA e CIENTEC". Na FEE, que trabalhei mais de 30 anos como pesquisadora, publicamos um estudo que desenvolveu o indicador do potencial poluidor das atividades industriais no RS, por municípios, juntamente com a Fepam. Essa pesquisa, que apresentamos inclusive na Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul, Fiergs, pouco repercutiu e não conseguimos levar adiante a série histórica por não termos mais acesso a alguns dados que faziam parte do cálculo do indicador.
Encaminhando o texto para o final, quero afirmar a crença de que crise pode ser uma oportunidade e que juntos, em um movimento de mudança, possamos restabelecer a história de criatividade do passado, suplantar o individualismo da conjuntura rentista, voltar a respeitar os limites ecológicos, restabelecer o metabolismo entre sociedade e natureza. Esses dois últimos são, conforme Michael Löwy, os principais eixos do projeto ecossocialista.
Ainda inspirada nas palavras de Michael, afirmo que para escaparmos da catástrofe ecológica, resultado da lógica do capitalismo, atualmente na sua fase mais perversa, do dinheiro fazer dinheiro, precisamos de uma transformação revolucionária da sociedade. Uma ruptura radical, com a construção de um novo pacto civilizatório que envolve ações a curto, médio e longo prazos.
* Naia Oliveira é socióloga e ecofeminista.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira