Rio Grande do Sul

SOLIDARIEDADE

Em um momento de sofrimento e de incerteza, acolhimento faz toda a diferença 

Abrigados relatam sentimento de incerteza pelo futuro e gratidão ao trabalho feito por voluntários

Brasil de Fato Porto Alegre |
"Agora é ter coragem. Eu estou muito tocada, choro muito, todos os dias, porque eu fico muito à flor da pele por estar atendendo essas pessoas diretamente", desabafa médica - Foto: Jorge Leão

A água sobe, toma ruas e rapidamente as casas, fazendo com que se tenha que deixar tudo para trás. Para além das coisas materiais, lembranças que vão também sendo tomadas. Junto com isso a dúvida de não saber para onde se vai, com quem conviverá, quanto tempo a situação irá durar, e o que se encontrará quando a água baixar. Dividindo o espaço com centenas de outras famílias, tendo um colchão e alguns pertences, apreensões, abstinência e medo surgem. Em um momento de angústia e incerteza, um bom acolhimento faz a diferença, como relatado por abrigados e médica voluntária ouvidos pela equipe do Brasil de Fato RS

“Estou vendo muitas pessoas que passaram por um trauma bem significativo, no momento que as águas subiram e elas realmente subiram muito rápido. Dentro dos abrigos existem os problemas próprios do lugar, como não conseguir dormir direito porque tem muito barulho durante a noite, algumas pessoas brigam. Algumas pessoas tentam fazer tráfico de drogas, e alguns homens são abusivos com as meninas”, relata a médica radiologista Simone Valduga, voluntária no abrigo da ESEF e também do abrigo do Colégio Rosário, coordenado pelos médicos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. 


Abrigo no Colégio Santa Dorotéia / Foto: Jorge Leão

De acordo com a médica, no abrigo ESEF tem 600 pessoas, oriundas basicamente do bairro Humaitá e também das ilhas, principalmente da Ilha da Pintada. Segundo ela, além da questão da abstinência, que já melhorou, no início também se observou questões mais com relação a enchente, como por exemplo, muitas mulheres com infecção urinária, resfriado. “São coisas muito simples que eles precisam, na verdade. O atendimento médico é um atendimento muito simples, muito básico, de coisas muito básicas, e também essa parte mais emocional, que é o trauma do acontecido”, comenta. 

Sobre a questão de violência de gênero, Simone conta que nos abrigos que ela atua, não teve nenhum caso de estupro ou abuso, mas é um medo enorme que as mães e os pais das adolescentes têm. “Eles se juntam em famílias e botam as adolescentes, durante a noite, no meio, e ficam fazendo vigia. Infelizmente tem esse lado que está também acontecendo. No início não estava tendo guarda suficiente, o pessoal da brigada não estava conseguindo vir. Agora, nos últimos dias conseguiram, porque contrataram mais gente.” 


“A gente espera que existam questões emocionais bem mais fortes daqui a alguns dias” / Foto: Jorge Leão

Abrigos exclusivos para as mulheres têm sido criados em diversas cidades do estado após denúncias de violência. Segundo tem conhecimento o Centro de Referência da Mulher (CRM), há 17 abrigos exclusivos para mulheres e crianças.

A importância da escuta e do acolhimento 

“São pessoas que ficaram muito traumatizadas, porque foi uma coisa rápida, chegaram precisando ser ouvidos, precisando falar sobre o que aconteceu, eles estão com muito sentimento pela perda da casa, do carro e de todos os bens, dos animais. Eles falam muito dos animais que perderam. Choram muito. E agora essa dúvida de 'o que vai ser da minha vida, o que eu vou fazer'. Eles ainda não sabem como é que vai estar a situação das suas casas. Eu acho que muitas casas não vão ter condição de receber as pessoas. Eles vão perceber que perderão as casas”, relata Simone. 

Uma outra questão, observa a médica, que teremos que lidar, é do estresse pós-trauma. “A gente espera que existam questões emocionais bem mais fortes daqui a alguns dias.”

Em meio a toda essa situação, há, também, o reconhecimento e a gratidão do trabalho feito por voluntários nos abrigos e do acolhimento realizado. “Eles dizem que nesse lugar eles estão recebendo comida, atendimento médico, odontológico, todo tipo de atendimento que eles precisam. Muitos estão agradecidos, dizendo que estão num lugar muito bom, sendo bem acolhidos. Alguns reclamam bastante do barulho, mas o desejo de todos, é voltar para casa.”


“São pessoas que ficaram muito traumatizadas, porque foi uma coisa rápida, chegaram precisando ser ouvidos" / Foto: Jorge Leão

“É uma situação de vulnerabilidade total, tu perde a tua vida”

O fotojornalista do Brasil de Fato RS Jorge Leão visitou alguns abrigos, entre os dias 14 e 15 de maio, e constatou essa realidade. A primeira visita foi no Colégio Santa Dorotéia, no bairro Cristo Redentor. De acordo com a coordenadora do abrigo, Janaína Kunzler, o colégio recebeu 498 abrigados ao todo. Atualmente tem 159 pessoas, sendo 83 mulheres, 60 homens, 16 crianças, 26 cães e dois gatos. Segundo informou, o abrigo não tem falta de nenhum item devido a boa leva de doações. O abrigo tem moradores de Eldorado do Sul, Navegantes e Sarandi. O local conta com um bom número de voluntários, um centro de bem estar com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e farmacêuticos. 

“Minha família é bem pequena, são só eu e minha mãe, de 75 anos, com vários problemas de saúde. É até um pouco difícil falar, me emociono ainda porque a gente realmente nunca pensou que fosse acontecer o que aconteceu. O Sarandi inteiro embaixo da água, as casas totalmente inundadas. Nunca a água chegou a entrar no pátio, chegar perto, ninguém acreditava”, relata emocionada Karen Magnus, moradora do bairro Sarandi há 44 anos. 

O bairro localizado na zona Norte da Capital foi um dos mais impactado com a enchente, onde mais de 26 mil pessoas foram afetadas.  


Karen Magnus, moradora do bairro Sarandi / Foto: Jorge Leão

“A gente saiu de casa de sábado (11) para domingo, uma hora da manhã, com voluntários batendo na porta perguntando se a gente queria sair porque a água estava subindo muito rápido. É horrível, é uma situação de vulnerabilidade total, tu perde a tua vida. Tudo que fica para trás, a tua vida, a tua história, às vezes fotos, coisas que tu nunca vai conseguir recuperar. Quando a gente sai não sabe o que vai ser da gente, onde vai parar. Tivemos muita sorte de ter vindo parar neste abrigo. A gente foi muito bem acolhida. As pessoas são extremamente acolhedoras. Eles fazem tudo para tentar amenizar o máximo possível esse momento tão difícil que todos estamos passando. O problema vai ser a volta para casa, eu realmente não sei o que esperar. A gente não sabe nem se vai conseguir recuperar alguma coisa. Espero que deus abençoe a nós e a todas as famílias do RS inteiro porque todos nós estamos precisando de muito apoio”, desabafa. 

“A gente vive um sonho em meio a um pesadelo”

“Eu venho de uma inundação na vila Farrapos, no bairro Humaitá. Tive a minha casa coberta de água no dia 3 de maio que deu início a tudo isso que estou vivendo. Não sabíamos para onde ir, até porque temos um filho atípico de três anos, o Pedro. E com isso procurávamos um lugar onde ele pudesse ficar o melhor possível. Recebemos o convite de vir para cá no abrigo, no Crossfit South Training juntamente com as meninas do Colo de mãe”, conta Dienefer Ayres da Silva, 30 anos. Além de Pedro ela tem uma filha de 11 anos.  

Conforme relata Dienefer, a família perdeu tudo que foi adquirido ao longo dos anos. Contudo no abrigo eles têm desde alimentação a terapeutas, psicólogos, nutricionistas. “A gente tem um acompanhamento impecável nesse lugar. A gente tem amor, carinho, dormimos quentinhos. Os nossos filhos têm todos os terapeutas que um dia precisaram. O Pedro é TEA (Transtorno do Espectro Autista) nível 2 de suporte, e hoje ele tem todos os terapeutas que já foi indicado por uma neuro. Onde a gente não teve pelo Estado, nós estamos tendo com as meninas do Colo de mãe.”


Dienefer Ayres da Silva perdeu tudo na inundação no bairro Humaitá / Foto: Jorge Leão

Conforme o Censo de 2022 o Brasil teria 5.641.342 autistas do total de 203.080.756 habitantes. Ou um em cada 44 crianças apresentava TEA naquele ano. No Rio Grande do Sul, segundo especialistas, há cerca de 100 mil autistas.

“Eu costumo dizer que a gente vive um sonho em meio a um pesadelo. A gente conheceu pessoas que jamais imaginaríamos conhecer se isso não tivesse acontecido. O que a gente pede é inclusão e respeito, porque só nós, mães atípicas, sabemos o quanto é difícil ter acesso à sociedade de uma forma natural. Os nossos filhos sofrem muito bullying, desrespeito. Minha casa hoje está embaixo d'água. Eu não tenho mais nada, porém aqui eu tenho tudo.”

A iniciativa de abrigos específicos surgiu através do Instituto Colo de Mãe, organização criada pela jornalista Débora Saueressig e a nutricionista Roberta Vargas, mães de crianças autistas. “A necessidade de um abrigo PCD surge exatamente quando a enchente começa. E por a gente saber que os abrigos com 600, 700 pessoas em ginásios, abertos, com muito barulho, com alimentação pouco específica, seriam absolutamente comprometedores para a saúde psíquica, emocional das crianças e dos adolescentes PCDs (pessoas com deficiência)”, expõe Débora.


Abrigo no Crossfit South Training / Foto: Jorge Leão

Segundo ela, desde o início da enchente havia uma única célula naquele momento responsável por receber as famílias atípicas, que era o Colégio Rainha do Brasil. "Nós entramos em contato com elas que nos receberam, e receberam algumas das famílias que haviam entrado em contato conosco. A partir de então sentimos a necessidade de estabelecer e de estipular alguns parâmetros de abrigamento que eram muito distintos, principalmente no que diz respeito aos profissionais de saúde e há algum olhar mais de intervenção para essas famílias.”

O primeiro abrigo criado pela instituição foi o do South Training, que o Brasil de Fato RS visitou no dia 15 de maio. De acordo com o proprietário do local Marlon Rosa, a iniciativa começou com uma aluna, Alessandra, que é uma mãe atípica. “Ela me ligou na segunda-feira, às oito horas da manhã, me perguntando se eu podia dar esse espaço para essas famílias se abrigarem. Eu avisei o pessoal da minha comunidade do CrossFit, que eu não abriria o box por talvez uma, duas semanas porque abrigaríamos essas famílias. Com isso a gente convidou voluntários entre nossos próprios alunos. E a gente montou tudo isso em cinco horas. Uma das sócias do Colo de mãe veio até o local e começamos a receber as famílias. E o instituto dando suporte na questões terapêuticas, médicas.”

O espaço chegou a abrigar ao todo 40 pessoas, sendo 14 famílias, 14 crianças, oriundas da Ilha do Pavão, Humaitá e Sarandi. Conforme explica Débora, o abrigo se tornou pequeno e a instituição trouxe o contingente de lá e mais algumas famílias de outros abrigos, para um espaço localizado na Nilo Peçanha, 2400. O novo abrigo está em funcionamento há uma semana e possui uma estrutura maior, com mais aparato humano, com mais aparato físico. “Hoje a gente conta com aproximadamente 60, 65 pessoas, PCDs até 12 anos acompanhados de seus familiares. Essa é a estrutura que mantemos hoje e irá manter, se necessário for, pelos próximos seis meses.”


"O espaço chegou a abrigar ao todo 40 pessoas, sendo 14 famílias, 14 crianças, oriundas da Ilha do Pavão, Humaitá e Sarandi" / Foto: Jorge Leão

A jornalista explica que assim que as famílias entram no local é estabelecida uma rotina de horários, rotina de cuidados alimentares, uma rotina de cuidados com a higiene, de cuidados com a administração da medicação. “Boa parte dos nossos abrigados usa medicação de uso contínuo. Então temos uma rotina bastante rígida, no sentido de nos preocuparmos muito que essas famílias consigam absorver todos esses rituais diários para quando voltarem paras suas casas, já estarem com isso bastante internalizado.”

No abrigo tem oficinas diárias no espaço kids para as crianças, oficina de leitura, oficina de pintura, oficina de esportes, oficina de judô, oficina de skate, cinema. “Tem uma série de convenções sociais que a gente disponibiliza também para não gerar ainda mais isolamento para essas pessoas. Fizemos adaptações de segurança.”

De acordo com o último boletim divulgado pela Defesa Civil na manhã desta quinta-feira (23), dos 497 municípios do RS, 468 foram impactados com as enchentes, afetando 2.342.460 pessoas. 581.643 pessoas estão desalojadas e 65.762 estão em abrigos. Até a manhã deste domingo (19), Porto Alegre tinha 147 abrigos, com 12,8 mil pessoas. 

“Agora é seguir em frente, ter coragem. Eu estou muito tocada, choro muito, todos os dias, com várias notícias, porque eu fico muito à flor da pele por estar atendendo essas pessoas diretamente. E afinal, torcendo para que quem esteja no comando, na orientação de tudo isso, que oriente, que pensem nas pessoas que têm menos dinheiro, nas pessoas menos favorecidas. Que essas pessoas recebam casa, que essas pessoas sejam atendidas de alguma forma”, conclui a médica Simone. 

Nesta quinta-feira, o governo do estado anunciou a autorização do início da construção das primeiras 300 moradias definitivas do programa A Casa é Sua – Calamidades, com um investimento inicial de R$ 41,8 milhões do Tesouro. Segundo o Executivo estadual somadas às unidades doadas por outros órgãos e entidades privadas, 553 casas beneficiarão famílias que tiveram seus lares destruídos por enchentes.


Foto: Jorge Leão


Foto: Jorge Leão


 Foto: Jorge Leão


Foto: Jorge Leão


Edição: Katia Marko