A Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) divulgou no dia 17 que estava acolhendo cerca de 200 pessoas em situação de rua em três alojamentos provisórios na zona sul de Porto Alegre, que foram estabelecidos para atender especificamente esse público durante o período de calamidade. Os espaços foram organizados em parceria a Rede Calábria, Amurt Amurtel e Centro Social Padre Leonardi.
Um quarto espaço de acolhimento para esta população, contudo, acabou se formando de forma orgânica no Colégio Estadual Júlio de Castilhos, no bairro Santana. Coordenador do espaço, Rudnei Pinto diz que ele e um grupo de pessoas tomou a iniciativa de montar um abrigo e, como conhecia a diretora do colégio, marcou uma reunião e pediu a cedência do espaço, o que foi aceito. Segundo ele, inicialmente, o abrigo não estava vinculado à rede de acolhimento que foi se institucionalizando pela prefeitura e não exigia que ninguém tivesse passado por triagem anterior, acabando por funcionar como um espaço de “portas abertas”. Posteriormente, o abrigo também foi integrado ao processo de triagem realizado pela prefeitura.
De acordo com voluntários que atuam no Julinho, os primeiros moradores em situação de rua chegaram ao local já no início da enchente e, a partir do boca a boca, a notícia de que havia vagas para quem estava nessa situação começou a se espalhar. No momento de maior ocupação, 138 pessoas foram abrigadas ali.
Nessa segunda-feira (20), de cerca de 100 abrigados, 55 eram identificadas como pessoas em situação de rua.
Em anonimato, fontes da Fasc argumentam que não há vagas para moradores de rua além desses abrigos e que esta população estava sendo vítima de segregação nos demais locais de acolhimento. Uma trabalhadora contou à reportagem que, quando chegavam ao centro de triagem da prefeitura montado no ginásio do clube esportivo Geraldo Santana, pessoas em situação de rua eram orientadas a procurarem outros abrigos. Uma estratégia que estaria sendo usada por policiais que atuavam na segurança desses locais era “puxar a ficha” da pessoa à procura de antecedentes criminais, o que levava à exclusão do sistema de abrigamento.
A preocupação maior, contudo, é quanto ao que ocorrerá nas próximas semanas. A coordenação do abrigo no Colégio Júlio de Castilhos informou aos acolhidos que o espaço deve ser devolvido à escola no início de junho, o que gera uma preocupação com o futuro das pessoas em situação de rua que estão ali.
Rudinei confirma que o abrigo será fechado no início do próximo mês e reconhece que os últimos abrigados, à medida que a água baixa e as pessoas vão retornando para suas casas, será a população de rua. “No momento, algumas pessoas estão saindo. Vamos chegar no momento em que os últimos provavelmente serão as pessoas em situação de rua. Aí vai entrar o poder público”, avalia. Por outro lado, ele nega que tenha havido qualquer tipo de tensionamento no abrigo com relação às pessoas em situação de rua e diz que, da parte da coordenação, não houve nenhum tipo de encaminhamento dos abrigados para outros locais.
No entanto, a preocupação com a transição pós abrigamento não diz respeito apenas à situação no Julinho. Ângela Maria Aguiar da Silva, integrante do Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), acompanhou o acolhimento feito pela organização Amurt Amurtel, na Avenida Juca Batista, bairro Ponta Grossa. Segundo ela, o acolhimento ocorreu de forma tranquila, sem situações significativas de atritos, mas a preocupação dos abrigados é justamente com o que irá ocorrer nas próximas semanas, uma vez que esse espaço, bem como os demais, desenvolve outros projetos sociais que serão retomados.
“A população de rua, desde o primeiro dia, diante da avaliação de que estavam sendo ‘bem tratados’, apontavam a preocupação do que aconteceria com eles. Preocupação diária era de que, da noite para o dia, poderiam retornar para a rua. Alguns bem assustados, pois tinham sobrevivido ao incêndio da Pousada Garoa“, diz Ângela.
A assistente social pontua ainda que espaços convencionais de acolhimento para a população de rua, como o Albergue Acolher II, localizado no bairro Floresta, foram fechados em razão das enchentes e não havia ainda previsão de retorno. O mesmo vale para uma das unidades do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (POP), da prefeitura, que ficou embaixo d’água.
“A questão é que não se tem nada efetivo de projeto emergencial para a população de rua, e eles sabem disso. Eles sabem que não terão para onde ir e que retornarão para a rua, em uma realidade que não sabem se os locais onde ficavam ainda existem. O que é assustador é que, diante de toda essa calamidade, não ouvirmos nada da Prefeitura de um projeto emergencial e nem de um local alternativo para acolhimento com o encerramento dos locais que hoje funcionam. Defensoria Pública estadual e federal estiveram no alojamento e a grande demanda era por auxílio moradia e serviços que pudessem ser acolhidos. Sem resposta efetiva do poder publico, fica na conta do trabalhador, que está direto no atendimento administrar a falta de informação e serviço”, avalia Ângela.
Situação gera atenção do Poder Público
Integrante Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Darcy da Silva Costa está em Porto Alegre e durante esta semana acompanhou a situação da população de rua em abrigos da capital.
“O que a gente percebeu logo de início, quando a gente chegou aqui, é que ainda existe um preconceito cultural muito forte em cima da população em situação de rua. Por causa desse preconceito histórico, as pessoas não estão aceitando a população em situação de rua dentro dos abrigos que deveriam ser para todos. Querem que esses abrigos também sejam segregados, que seja colocada a população de rua dentro de um abrigo específico. E também a gente tem notado que está ocorrendo uma rejeição das medidas de calamidade para atender a população em situação de rua. Algumas pessoas acham que a população em situação de rua, por exemplo, não tem direito de receber um recurso também desse programa de calamidade para que possa reconstruir sua casa e sua vida social. Pelo fato de já estar na rua antes dessa calamidade”, afirma.
Representantes do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) realizaram um mapeamento, a partir de dados de trabalhadores da Fasc e da Saúde, que aponta que o Julinho é o único espaço que acolheu um número considerável de pessoas em situação de rua, com o número sendo apenas residual em outros abrigos, geralmente não passando de cinco. A pasta está atenta a situações de segregação, bem como a ameaça de retirada das pessoas dos espaços de acolhimento e à falta de apoio de saúde, um problema que é mais específico do abrigo no Julinho.
Ao contrário de outros espaços, o abrigo não conta com atendimento de saúde presencial constante feito por equipe vinculada à Secretaria Municipal de Saúde. O atendimento é feito por voluntários. Na segunda-feira, um dos voluntários foi o médico Fred Nicácio, que ficou conhecido no Brasil por participar do programa Big Brother, em 2023. Ele esteve no Julinho, e em outros abrigos, como parte de uma iniciativa com apoio do Fundo Positivo para atender a população LGBTQIAP+ e pacientes soropositivos.
Junto com representantes do MDHC, Darcy avalia que é necessário tratar as pessoas em situação de rua como vítimas da enchente assim como qualquer outra pessoa que perdeu sua casa e que, inclusive, esta é uma oportunidade de garantir direitos e permitir que as pessoas tenham oportunidade de reconstruírem suas vidas. Ele também confirma que tomou conhecimento sobre as denúncias de que pessoas estavam sendo excluídas de abrigos e, nos casos de eventualmente conseguirem vagas, encaminhadas para fora destes locais posteriormente.
“A gente acha horrível que o que se tem a oferecer ainda é a reclusão do indivíduo e não o cuidado em liberdade ou o fortalecimento da rede. É isso que a gente quer, que as redes que já existem possam trabalhar de forma intersetorial e apoiar toda essa população que ainda está nessa situação de rua. A situação que está aqui mostra que, de um momento para o outro, as pessoas podem se encontrar numa situação sem abrigo, totalmente frágil. Então, eu acho que é um momento de reconstruir isso e criar fundamentos para que situações como essa não voltem a se repetir e as pessoas que estão nessa situação de rua também consigam se levantar”, aponta.
Também nesta segunda-feira, uma equipe da Defensoria Pública do Estado esteve no Julinho como parte de um mutirão do Projeto Identifica, que busca auxiliar pessoas em situação de rua e em vulnerabilidade social a refazerem seus documentos, para marcar o Dia da Defensoria Pública, 19 de maio. Também aproveitaram para ouvir demandas da população em situação de rua.
Defensoras ouvidas pela reportagem avaliam que a necessidade de acolhimento da população em situação de rua aumentou com as enchentes por uma série de motivos, como o fato de locais em que dormiam terem sido alagados, especialmente na região central, pelo aumento do frio e pelo fato de que a enchente impediu que eles trabalhassem com catação e outras atividades, o que levou à falta de alimentação. “Essa fonte de ganho ficou completamente inviabilizada, tendo em vista que o centro de Porto Alegre tá totalmente tomado pelas águas”, diz a defensora Viviane Agostini, do Núcleo de Defesa Cível.
Segundo a defensora Cláudia Barros, especialista em atendimento às vítimas de violência doméstica, a principal demanda que ouviu das pessoas em situação de rua é sobre o acesso a benefícios como auxílio-moradia e auxílios emergenciais.
“Muitos deles tinham uma situação que não era necessariamente de rua, porque eles conseguiam ficar em abrigos durante a noite, então tinham algum apoio estatal. Alguns já recebiam o auxílio-moradia e moravam nessas pensões onde os valores são mais em conta [como a rede de pousadas Garoa]. A enchente acabou por desalojar essas pessoas. Então, a maior demanda aqui é pelo auxílio-moradia. Muitos deles já são inscritos no Bolsa Família, mas precisam de outros auxílios emergenciais agora, porque muitos perderam até o pouco que carregavam consigo. A pessoa em situação de rua geralmente carrega uma mochila, um carrinho, muitos deles tiveram que sair correndo e deixar para trás. Eu ouvi agora um relato de uma pessoa que disse assim: ‘Eu perdi o tudo que eu não tinha’”, relata a defensora.
No caso da transição pós-abrigos, Cláudia avalia que uma situação que precisa ser encarada é a colisão de direitos. Isto é, o direito ao acolhimento, o que inclui pessoas desalojadas e em situação de rua, e o direito à educação, uma vez que boa parte dos abrigos foram montados em escolas e instituições de ensino.
“Uma das principais questões que nós vamos ter que buscar é a moradia. Tentar alojar novamente essas pessoas numa moradia, se não definitiva, um pouco mais definitiva do que o abrigamento. Se o poder público não conseguir dar vazão a toda essa demanda, com certeza a Defensoria vai participar do processo na questão da busca desse direito”, afirma Viviane.
Edição: Sul 21