Mia Couto, no livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, afirma que “o importante não é a casa onde moramos, mas onde em nós, a casa mora”, nos convidando a perceber a casa em seus vários sentidos. A casa não é apenas uma estrutura física onde entramos e saímos diariamente. A casa é lugar de pertencimento e aconchego, onde se é livre para ser quem se é. A casa é o santuário de lembranças e memórias, que guarda a história da família. Muito disso está ameaçado pelas águas. Para muitos que não foram atingidos diretamente pelas águas, a casa se tornou o lugar de refúgio em meio ao caos que tomou conta do nosso cotidiano. Um privilégio a ser compartilhado, de alguma maneira, com os desabrigados. A casa, antes espaço exclusivo do privado e de conforto familiar, foi tomada por um grande sentimento de solidariedade, lugar de reencontros e reconciliação.
Para muitas famílias desabrigadas e que habitavam em lugares de risco, a casa se tornou um perigo e um bem instável. Essas casas que precisam ser retomadas, limpas ou até mesmo substituídas são percebidas como um lugar de trauma. Reconstruir esses sentidos de casa não será uma tarefa fácil e rápida. O desafio não é apenas reconstruir fisicamente, mas conferir novos sentidos. Essa não será uma tarefa fácil e essa dimensão precisa ser considerada nas políticas públicas de acesso à moradia que estão sendo formuladas nestes dias.
Nas grandes cidades brasileiras convivemos com imóveis desabitados. Parece um desatino, mas regiões inteiras nas nossas cidades estão “abandonadas” pela lógica da especulação imobiliária e pelo modelo elitizado de ocupação. Essa realidade contrasta com a existência de uma parcela considerável da população vivendo em situação de moradia irregular, em áreas de riscos de desabamento, inundação ou pouca infraestrutura. Geralmente, arquitetos e urbanistas, seduzidos pela suposta modernização excludente e neoliberal, negligenciam esse debate. Costumam desconsiderar a ocupação de moradias desocupadas como alternativa de melhor aproveitarmos as nossas cidades.
Um mapeamento, realizado pela pesquisadora Adriana Sabati e o orientador João Farias Rovati, evidencia a existência de uma quantidade considerável de imóveis ociosos no centro da cidade e abre caminho para uma avaliação mais detalhada de como o centro das grandes cidades está sendo de fato ocupado. Em uma observação puramente visual, Sabati constatou a existência de 49 imóveis abandonados em uma única rua do centro de Porto Alegre.
O atual prefeito de Porto Alegre sempre enfatizou em suas entrevistas que o caminho para modernizar a nossa cidade era a verticalização, ou seja, construir prédios mais altos e em regiões com infraestrutura urbana já instalada. A exemplo do projeto que removia o Cais Mauá, bem como os muros para a construção do novo espaço corporativo às margens do Guaíba.
Porém, o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) evidencia que a verticalização, combinada com o preço elevado por se tratar de regiões supervalorizadas pela especulação imobiliária, pode criar uma cidade com mais imóveis vazios que serão adquiridos por investidores interessados muito mais em rendimentos financeiros do que em objetivos habitacionais.
O censo demográfico de 2022 do IBGE revelou que, nos últimos 12 anos, Porto Alegre sofreu um decréscimo populacional de 76 mil pessoas. Por outro lado, houve um aumento na oferta de imóveis para domicílios. De 2010 para 2022, o número de domicílios particulares permanentes saltou de 574.831 para 686.414, dos quais 558.151 estão ocupados, 101.012 vagos e 27.250 em uso ocasional. Atualmente, Porto Alegre contabiliza 101 mil imóveis vazios. Em porcentagem, isso significa que 14,7% dos domicílios estão totalmente desocupados e 4% são ocupados ocasionalmente.
O censo também demonstrou que o déficit habitacional na região metropolitana de Porto Alegre é de cerca de 90 mil moradias, número inferior ao de domicílios vagos. O número de habitantes por imóvel também é baixo. Segundo Adriana Sabati, entre 30% e 40% dos moradores da região residem sozinhos ou compartilham o imóvel com apenas uma pessoa.
O censo de 2022 apontou 13 cidades do Rio Grande do Sul, da lista de 20 cidades brasileiras, com menos moradores por residência, e Porto Alegre figura como a capital com o menor percentual de ocupação, 2,37 residentes em cada domicílio. Esses dados têm valor ao definir o perfil de moradia e a ocupação do estado, possibilitando também uma avaliação da demanda futura de reconstrução.
Em meio ao caos em que vivemos, propostas paliativas surgem a todo momento.
Perguntamos: por que criar uma cidade temporária que não passa de um campo de refugiados dentro de uma cidade desabitada?
O valor da manutenção, preparo e até mesmo aquisição (quando for da iniciativa privada) de prédios desocupados pode ser uma saída mais barata e eficaz para o momento. A adaptação de moradias já existentes para a população desamparada é um caminho mais econômico e mais rápido. Acessar essas moradias em bairros já consolidados, com a infraestrutura adequada, sem segregar, sem excluir, sem varrer os desabrigados para longe dos olhos do progresso das grandes construtoras é muito superior do que a ideia estapafúrdia das cidades temporárias.
Se considerarmos o número de domicílios desocupados e de uso ocasional, 128.263 no total, percebemos que é mais do que o suficiente para comportar a população desabrigada, de 77.202 pessoas. Betânia Alfonsin, doutora em Planejamento Urbano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretora-geral do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), ao defender a proposta de aluguel social afirma que “em Porto Alegre tem muita casa sem gente e muita gente sem casa. Então, aproximar os dois pólos dessa equação seria uma solução muito mais adequada, muito mais proporcional e razoável para nossa cidade”.
Juntar mais de 10 mil pessoas em um mesmo espaço, em região periférica, com baixíssima infraestrutura de saneamento básico, iluminação, educação, saúde e assistência social é fazer uso de pseudossoluções que na verdade reproduzem o padrão de segregação e higienização de populações que historicamente são encurraladas para as periferias.
* Arquiteta e Urbanista e mestranda da UFRGS
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko