Rio Grande do Sul

Enchentes RS

E agora, como reconstruir para não ser destruído de novo?

Plano de adaptação climática é central para reconstrução, ou bilhões podem ser varridos pelas águas no próximo desastre

Extra Classe | Porto Alegre (RS) |
Região do Vale do Taquari, onde morreu um idoso por leptospirose, enfrenta a terceira grande enchente em oito meses - Rafa Neddemeyer / Agência Brasil

Em oito meses, o Rio Grande do Sul foi fulminado três vezes pela crise climática. Nas últimas semanas, mais de 90% do território gaúcho submergiu sob a força das chuvas torrenciais. De 25 de abril a 14 de maio, o volume de chuva registrado foi até dez vezes superior à média histórica, segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).

A população nem tinha conseguido se recompor da catástrofe de setembro e novembro de 2023, quando a maior enchente da história se abateu sobre o estado, arrastando o que tinha sido reconstruído e aprofundando estragos e destruição.

Uma das cidades mais devastadas novamente, Roca Sales, que fica às margens do Rio Taquari e a 141 km de Porto Alegre, estima mudar 50% do território de endereço para uma área a cerca de 3 km do centro atual. O prefeito Amilton Fontana (MDB) disse que planeja transferir o centro e o parque industrial para a nova região.

Além de habitações, vão ser construídos novos prédios públicos, escolas, hospitais e a sede da gestão municipal. Já para as pessoas que vivem em regiões ribeirinhas, não há previsão de mudança de local, apenas reconstrução das regiões destruídas.

Deniso Dias relata que vivenciou, em oito meses, quatro enchentes baterem na sacada do segundo andar no apartamento onde mora com sua família na parte mais alta, em Roca Sales. O professor conta que agora, início de maio, houve a terceira enxurrada que devastou a cidade e, em menos de uma semana, quando a água desceu e o lodo apareceu, uma nova cheia veio e arrastou tudo outra vez. “Assustador. Desesperador e triste de madrugada – sem luz, sem água, sem telefone, sem internet – a gente ouvir o único barulho da água do rio passando e de pessoas, ao longe, gritando por socorro, desesperadas”, resume.

Ele descreve que a desesperança é grande no Vale do Taquari. “Posso dizer que está todo mundo sem ânimo para se reerguer, depois que aconteceu e está acontecendo aqui. No último fim de semana, três vizinhos do meu prédio se mudaram. Só não tem mais gente saindo porque as estradas de acesso estão destruídas”. Deniso afirma que não se muda agora com a mulher e as duas filhas pequenas, porque a de seis está na fase de alfabetização, por isso vai esperar terminar o ano letivo. “Mas já decidimos, vamos nos mudar para uma parte alta de Lajeado. Precisamos de lugar seguro para criar as filhas”, relata.


O município de Arroio do Meio, no Vale do Taquari, foi mais uma vez atingido pelas enchentes / Foto: Divulgação MAB

Cristiana Losekann, doutora em Ciência Política pela UFRGS, pesquisadora do CNPq na área de política ambiental e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), alerta que a reconstrução precisa de um olhar abrangente, porque um desastre dessas proporções afeta de forma profunda as pessoas, gera um trauma.

Ou seja, não se trata apenas de um plano de reconstrução habitacional, mas de histórias e de vidas. “Isso pode ser amenizado pela solidariedade que desperta, mas precisa ser tratado com uma política de cuidado, de atenção e compreensão aos sofrimentos que cada sujeito está vivenciando”.

Reconstrução inteligente

Uma vez que a emergência climática é uma “crônica de uma morte anunciada”, conforme pesquisadores da área de clima e especialistas indicam há tempos, o cenário de desastres naturais deve ser cada vez mais frequente e forte. Diante do fenômeno com chance cada vez maior de se repetir, políticos, gestores, cientistas, moradores das cidades afetadas, todos se perguntam, como organizar um plano para reconstruir estruturas mais resistentes a intempéries e em lugares mais sustentáveis?

Respostas fáceis e definitivas não existem. Contudo, caminhos melhores e mais seguros estão ao alcance dos tomadores de decisão, em detrimento aos que podem ser descartados. Diferentes universidades e mais de 50 cientistas estão trabalhando no plano de emergência climática e ambiental, que vai ser entregue aos governos de Porto Alegre, do RS e Federal até o fim deste mês.

“Não podemos seguir repetindo o mesmo tipo de infraestrutura e modelo produtivo como se estivéssemos vivenciando algo único, que jamais se repetirá. Todos os alertas foram dados: eventos climáticos extremos ocorrerão com maior intensidade e frequência”. É o que relembra Paulo Nierdele, pesquisador e professor de Sociologia da UFRGS.

A professora Marcia Barbosa, da UFRGS, reconhecida internacionalmente por sua pesquisa, lidera um grupo de pesquisadores de universidades do Sul e pequenos empresários. A cientista afirma que os projetos contemplam diversos eixos para a recuperação dos municípios gaúchos – ações a serem aplicadas de imediato, a médio e a longo prazo -, um olhar muito além do Plano Marshall.

Segundo a especialista, é preciso construir dois tipos de serviços: um grupo de monitoramento local e de disparo de alertas com governo e população, sabendo o que fazer na hora do perigo. Outro de serviços de construção, preparando cidades, pontes, agricultura, pecuária, indústria para ter resiliência para emergências futuras que serão chuvas, mas também períodos de seca, relata Marcia.

O grupo propõe urgentemente seis serviços, em dois eixos, conforme detalhado a seguir:

Serviços de Alerta

Climático RS – Responsável por ampliar o monitoramento meteorológico, hidrológico e oceânico, por meio da expansão da base de dados e do desenvolvimento de modelos de alta precisão, mais fidedignos e com o emprego de cenários futuros (2040), gerados com modelos já validados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Será responsável por prover prognósticos de tempo e de clima, bem como de seus potenciais impactos capazes de se traduzir em desastres através de um sistema de alertas.

Impactos na Capacidade Estadual – fornecimento de água, saneamento básico e energia, tanto para abastecimento humano, como para a manutenção de serviços essenciais como hospitais, espaços públicos. Este serviço, além de monitoramento, irá criar um sistema de alertas.

Construção de Capacidades – A Rede de Emergência Climática e Ambiental tem responsabilidade de treinar, capacitar e formar os recursos humanos estatais, privados e mistos com o propósito de atuar em ações de adaptação e construção de resiliência frente a emergências climáticas. Isto inclui: formação de gestores sobre previsão de riscos, organização de equipes de intervenção, planejamento da infraestrutura, avaliação de resultados, entre outros, de modo a dotar a defesa civil assim como outros atores para criar um sistema de apoio e proteção para situações de emergência. Este igualmente estará associado aos dois anteriores, centralizando por meio de sistema de alertas.

Serviços de Resiliência 

Educação Climática e Ambiental – A Rede de Emergência Climática e Ambiental desenvolverá um amplo processo educacional que visa tanto a disseminação de informação científica e conhecimentos gerais sobre as mudanças do clima em curso, assim como preparar a população para situações de emergências, como evacuações e deslocamentos rápidos e forçados. O serviço de educação climática e ambiental também busca gerar maior consciência ambiental, fomentar a sensibilidade para acolhida de campanhas de informação nas redes sociais e comunitárias.

Infraestruturas Resilientes – Escritório de projetos para o desenho de novas cidades, urbanismo e edificações bem como de projetos de relocação ou reconstrução de prédios, estradas, pontes e sistemas de água e esgoto usando tecnologias sustentáveis e de baixo custo, mas que sejam capazes de resistir aos eventos climáticos que cientistas do clima preveem para o RS. Desenvolver guias e orientações de como desenvolver obras de engenharia (prédios, pontes, estradas) resistentes a eventos meteorológicos, hidrológicos e geodinâmicos extremos. O serviço dará igualmente apoio a empresários, particularmente a microempresas, a ter resistência ante ao cenário climático e a buscar modelos de reconstrução mais adequados ao novo cenário, além de estimular o empreendedorismo inovador para o enfrentamento dos grandes desafios existentes.

Proteção à Terra, Ordenamento Territorial e Produção de Alimentos com Base Ecológica – Terá como função orientar ações integradas dos poderes públicos federal, estadual e municipais de adaptação às mudanças climáticas para: (1) proteção e a restauração da vegetação nativa florestal e não florestal por meio de reservas legais, Áreas de Preservação Permanente e restrições para autorizações de supressão; (2) a promoção de paisagens agrícolas mais resistentes, resilientes e regenerativa a extremos de seca e de chuva, a partir da diversificação de cultivos e práticas agrícolas que se fundamentam em princípios ecológicos. A oferta de alimentos em quantidade e qualidade é estratégica para a segurança alimentar. Criar um serviço de proteção aos efeitos devastadores dos eventos climáticos disruptivos como enchentes, secas e ciclones, que afetam o acesso aos alimentos ou implicam em aumentos de preços. Estimular formas de produção sustentáveis, que não contaminem as águas, impliquem no assoreamento de rios e cursos hídricos e respeitem a biodiversidade. Da mesma forma, é preciso construir um sistema de abastecimento seguro, eficaz e resiliente, dotado de infraestrutura de armazenagem, estoques e um sistema de logística baseado em dados e redes sistêmicas e colaborativas. Além disso, trata-se de construir um sistema de financiamento específico que deverá ser acionado tanto como seguro a perdas, danos e impactos, funcionar como mecanismo de crédito para reconstrução de ativos ou até mesmo operar como um fundo de recursos a título perdido para apoiar populações vulneráveis gravemente atingidas por eventos climáticos.

Universidades x Consultorias privadas

Ao responder sobre a necessidade de chamar empresas de consultoria privada para elaborar planos de recuperação local e estadual, o professor de sociologia Paulo Nierdele conclui. “Com muito menos recurso e muito mais competência, as universidades dariam uma resposta mais adequada e, não apenas no desenho dos projetos, mas também na implementação e no monitoramento de longo prazo”.

Proposta do estado

O governador Eduardo Leite, no dia 17 de maio, anunciou a criação de uma secretaria para auxiliar na recuperação do estado, reconfiguração da pasta de Parcerias e Concessões (agora Secretaria da Reconstrução Gaúcha). A nova estrutura será comandada por Pedro Capeluppi, ex-integrante da equipe do ministro Paulo Guedes no governo Bolsonaro. Esta estrutura tem foco econômico, a se observar pelas quatro subsecretarias: Projetos de reconstrução, Projetos estruturantes, Inteligência mercadológica, Parcerias e concessões.

Nierdele lembra que Capeluppi vem do governo mais negacionista que o país já teve. Segundo ele, um governo que, como todos viram, trabalhou incansavelmente para ampliar o desmatamento e desmontar a legislação e as políticas ambientais.

“Por si só, esse histórico me deixa receoso sobre os rumos da reconstrução. Sem transparência e ampla discussão pública, corremos o risco de os recursos serem utilizados para recuperar financeiramente as empresas, mas ao custo de ampliar ainda mais a vulnerabilidade de toda a sociedade a novas catástrofes. Infelizmente, estão novamente colocando a economia na frente da questão ambiental, quando as duas deveriam andar juntas”, avalia Nierdale, que também escreveu um artigo na Folha de S.Paulo sobre a atuação do governo federal no Rio Grande do Sul.

A assessoria da secretaria da Reconstrução Gaúcha enviou ao Extra Classe esta referência de como irá funcionar o plano do Rio Grande. Ainda disse que irão receber a proposta das universidades e dos cientistas. Sobre a perspectiva de foco apenas econômico na reconstrução, em síntese, afirma que “a atuação será em três frentes: ações emergenciais, ações de reconstrução e um conjunto de ações chamado Rio Grande do Sul do futuro”. À prefeitura de Porto Alegre também foi solicitado posição, mas, até o fechamento da reportagem, não houve retorno. O espaço segue aberto.

Plano Marshall

Logo no início da tragédia climática, o governador do RS já deu o tom da reconstrução, ao falar em Plano Marshall. Esse plano, capitaneado pelos EUA, foi responsável pela recuperação econômica de países europeus alinhados após a Segunda Guerra Mundial. A tese foi refutada por diversos especialistas de diferentes áreas e instituições.

“Evocar tal plano é um equívoco e demonstra que não se tem noção da singularidade e da real natureza daquilo que vivemos no RS. O primeiro e principal problema é colocar o foco na recuperação econômica do estado, quando o principal norteador deve ser a recuperação da segurança, dignidade e autoestima das pessoas que foram afetadas”, enfatiza a pesquisadora da Ufes Cristiana Losekann.

Shigueo Watanabe Junior, especialista em mudanças climáticas e energia, que desenvolve projetos sobre os aspectos climáticos de políticas públicas no Instituto Talanoa, lembra que o Plano Marshall americano foi para brecar o avanço soviético para cima de uma Alemanha destruída pela guerra. “A tragédia gaúcha não é fruto de uma guerra – a menos para os que estão em guerra contra a natureza. A recuperação do estado tem que ser orientada para ouvir as comunidades e definir novos eixos que as tornem mais resilientes”, salienta.

Segundo a cientista política, é necessária uma combinação de políticas baseadas na recuperação de danos causados por desastres naturais e por empreendimentos. Como exemplo, cita a recente aprovada Política Nacional dos Atingidos por Barragens. “Esta, embora seja de natureza diferente, prevê dispositivos importantes que podem ajudar na elaboração da reparação neste caso”, observa Losekann.

Depois, o passo é a identificação dos atingidos. Na sequência, é necessária uma política de indenização e, finalmente, uma política de reconstrução de projeto de vida, ordena a professora da Ufes. “Nesta fase final, deve-se levar em consideração os riscos de novos eventos climáticos, o incentivo a criação de novas formas de economia e modos de vida que surjam como um aprendizado do desastre”.

Para Arnaldo Dutra, engenheiro com diversas atividades profissionais direcionadas para as áreas de saneamento ambiental, o governador Leite se mostrou incapaz de conduzir ações articuladas com os prefeitos para um plano mínimo de prevenção em regiões onde se sabia que as cheias iriam se repetir. “Com os estragos feitos, ele fala em Plano Marshall para reconstrução, sendo que os recursos viriam do governo federal, tudo muito midiático”.

Trata-se, por isso, de algo muito mais profundo do que incentivar os setores produtivos já existentes como num tipo de Plano Marshall, o sentido é amparar e cuidar da pessoa para que ela possa reconstruir a economia em novas bases, considera Losekann.

Porto Alegre não tem política

A pesquisadora em política ambiental Cristiana Losekann lembra que Porto Alegre ainda não tem uma Política e um Plano para Mudanças Climáticas e o RS elaborou um plano genérico chamado ProClima 2050, mas com foco equivocadamente na mitigação a partir do incentivo aos negócios verdes. “Não há detalhamento sobre as medidas de adaptação que deveriam ser o cerne de qualquer plano”, pondera.

De acordo com a cientista política, primeiro é importante distinguir mitigação (redução das emissões) de adaptação (medidas para evitar e contornar danos) e observar que o Brasil não é o principal emissor de gases. “Portanto, ainda que seja necessário, evidentemente, controlar as emissões, nossa principal questão está em se preparar para que os eventos extremos não gerem danos terríveis como os que estão ocorrendo nesta enchente de 2024”, conclui. Segundo ela, pensar adaptação climática é considerar que as desigualdades e vulnerabilidade que já existem ficam extremas em situações de catástrofes climáticas.

Arnaldo Dutra conhece a realidade da capital e do estado bem na prática. Foi presidente da Corsan, diretor do Dmae e Dmlu (Porto Alegre), da Comusa (Novo Hamburgo) e coordenador técnico do Pró-Sinos (São Leopoldo), além de presidente da Assemae (Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento) e membro do Conselho Nacional das Cidades. Ele ressalta que, em Porto Alegre, o sistema de contenção de cheias, diques e o muro da Mauá, foi construído nos anos 60 e 70, tendo como parâmetros a enchente de 1941 que alagou a cidade. “O tempo de recorrência foi de 100 anos. O sistema de proteção conta ainda com comportas no muro e estações de bombeamento de águas pluviais distribuídas por todas as partes”, referindo-se que é hora de projetar e construir nova obras, condizente com o atual momento.

Dutra ainda diagnostica que o governo estadual e a maioria dos prefeitos não levaram a sério o aviso dos especialistas que vêm, há bastante tempo, alertando sobre as mudanças climáticas, do aquecimento global e do desequilíbrio que tal exploração vem causando no planeta terra. “As fórmulas usadas deram certo até aqui, para o futuro precisamos repensar quase tudo. E para que isto tenha sucesso, é importante ouvir a sociedade, romper o tecnicismo e replanejar as cidades de forma integrada”, projeta o engenheiro.

Prevenir sai 15 vezes mais barato que remediar

Um levantamento feito pelo Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres (UNDRR) concluiu que para cada dólar investido na redução e prevenção de riscos, pode-se poupar até 15 dólares na recuperação pós-desastre. Cada dólar investido em tornar as infraestruturas resistentes a catástrofes poupa quatro dólares em reconstrução. A organização salienta que benefícios econômicos, em termos de custos do investimento na prevenção e na resiliência, são claros.

E, no Rio Grande do Sul, o valor do orçamento para a Defesa Civil é de apenas R$ 0,70 por habitante. Os dados estão na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2024, consultados pelo Greenpeace Brasil. Do total de mais de mais de R$ 80 bilhões do orçamento, foram destinados equivalente só 0,009% da receita total do estado para questões climáticas. Em entrevista à Folha, o governador reconhece que sabia dos alertas de cheias, mas não investiu mais porque tinha a agenda fiscal como prioridade.

Ou seja, se tivesse investido em prevenção, poderia ter economizado 14 vezes mais em relação aos valores necessários agora na recuperação e, acima de tudo, teria poupado muitas vidas, dor e sofrimento. Para não se repetir essa postura equivocada da pauta climática, a cientista Cristiana Losekann diz que é relevante uma política baseada no cuidado da pessoa afetada pelo desastre, mas também se deve incluir a compreensão do evento climático a fim de mudar a consciência e o comportamento. “Isso pode ser construído através da criação de canais de informação e comunicação que evidenciem a imbricação entre ação humana e natureza”, sugere.

Além disso, o entendimento de, como a ocupação do solo, as matrizes econômicas e a cultura do consumo são as causas das alterações climáticas, é fundamental. “A lição que já aprendemos é que, se nos colocarmos em guerra contra rios, ventos, oceano, vamos perder sempre”, conclui Losekann.

Reconstrução deve prever aquecimento

Outro ponto, segundo Shigueo Watanabe Junior do Instituto Talanoa, é adotar uma frase da sueca Greta Thunberg: “cada décimo de grau conta”. “Isso vale para ações que evitam o aumento do aquecimento da atmosfera. E vale para a adaptação que leva em conta que o aquecimento ainda aumentará por um bom tempo, e precisamos estar preparados para impactos maiores”, explica.

O negacionismo científico e político atrapalham o nível de conscientização em relação à preservação do meio ambiente e precisam ser combatidos, afirma Watanabe. Ele lembra, em meio à crise climática no Sul, o Trump pediu a executivos de petróleo e gás americanos US$ 1 bilhão para sua campanha presidencial. “Em troca, prometeu, já no primeiro dia, uma série de ordens executivas para aumentar a exploração e queima dos produtos fósseis”.

Conforme os especialistas em planejamentos climáticos, isso é uma afronta e a sociedade precisa reagir, principalmente não votar em candidatos negacionistas. “A disputa de narrativa não é tanto se o aquecimento existe ou não, mas a ferrenha defesa do atual status quo, dos padrões de consumo dos países desenvolvidos e o das classes mais privilegiadas do Sul Global”, avalia Shigueo Watanabe.

Capitalismo de choque sob a lama


Sobrevoo sobre áreas alagadas de Porto Alegre no dia 17 de maio / Giulian Serafim/PMPA

Porto Alegre e o Rio Grande do Sul seguem debaixo d’água e lama, sendo o tamanho do estrago ainda imensurável, mas o prefeito Sebastião Melo (MDB) já correu para anunciar a contratação da consultoria Alvarez & Marsal para fazer o plano de recuperação. Da mesma forma, o governo do estado ignorou as universidades e firmou contrato com A&M (30 dias sem ônus), e fará acordo em termos semelhantes com a McKinsey e a EY (antes Ernst&Young). Empresas estrangeiras especialistas em entrar no jogo nos piores cenários para capitalizar.

André Roncaglia, professor de economia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP,  destaca a lógica da multinacional. “Aqui entra o mote neoliberal “nunca desperdice uma crise séria“, que aparece nas exortações de “não é hora de apontar culpados” e “não politizemos esta tragédia””, escreveu em sua coluna na Folha, em 16 de maio.

Assim foi na pandemia do coronavírus, e é na maior crise climática do RS: grandes grupos econômicos correm para faturar com a tragédia e sugerir privatizações dos serviços públicos, argumentam os especialistas. O fenômeno é descrito como capitalismo de desastre, debatido pela autora canadense Naomi Klein no livro “A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo do desastre“. Inclusive, ela analisa a reestruturação de Nova Orleans após furacão Katrina, em 2005, onde a A&M também atuou.

O conceito ‘choque’ vem do economista Milton Friedman, vencedor do Nobel de Economia em 1976 e um dos principais influenciadores da linha econômica liberal dos Chicago Boys. No Brasil, o economista Paulo Guedes, ex-ministro do governo Bolsonaro, é um dos seguidores desta linha econômica. Friedman defendia que, o período após um trauma coletivo, é o mais propício para reformas que, em outras ocasiões, dificilmente seriam aceitas, como privatizações radicais.

No caso da capital e do estado, tem-se à disposição o conhecimento das universidades públicas e privadas, mas se decidiu usar consultorias estrangeiras. A Ufrgs, a saber, é considerada a melhor federal do país. Além disso, dezenas de cientistas então trabalhando para finalizar os projetos e os entregar aos órgãos públicos, entretanto, não sabem como serão recebidos pelos governantes. “Temos a capacidade instalada local para resolver o problema, mas precisamos de escuta”, diz a pesquisadora Marcia.

Plano de privatização

“Cabe um parêntese para dizer que, desde o início da gestão do prefeito Marchezan, ele anunciou seu desejo de privatizar o Dmae, iniciando um processo de retirada de autonomia e a não reposição de pessoal que saía. O governo Melo deu sequência ao processo de desmonte e durante seus quase quatro anos de governo trabalhou buscando o melhor arranjo econômico para vender o Dmae, não se preocupando em fazer a gestão do saneamento da cidade e sequer em repor minimamente o quadro de servidores”, relata o ex-diretor do Dmae Arnaldo Dutra.

Dutra reforça a importância de que um desastre ambiental como o atual, com tamanho grau de sofrimento humano, tem que ter condão de fazer cada um refletir e tirar o aprendizado para buscar soluções para o futuro. “Mudanças climáticas estão aí e vieram para ficar. No caso de Porto Alegre, precisamos revisitar o sistema de contenção de cheias, avaliando sob o prisma desta enchente a necessidade de novas obras”, aponta.

Para o professor de sociologia da Ufrgs, diante de tudo, a conclusão é simples: “um erro”. Ele argumenta que as universidades e instituições de pesquisa do Rio Grande do Sul têm toda competência para propor alternativas viáveis de reconstrução, porque os pesquisadores conhecem as experiências internacionais e, sobretudo, entendem das particularidades do estado. “Na condição de professor da Ufrgs, sinto-me profundamente incomodado com o fato de que, geralmente, não convidam a gente para pensar os projetos e, depois, descobrem os erros que foram cometidos, quando os consultores já foram embora com mais alguns milhões do nosso dinheiro público nas suas contas, aí buscam socorro junto as nossas universidades”, lamenta Nierdele.

Edição: Extra Classe